Uma fenda à beira de um cânion na cidade de Itapeva, no interior de São Paulo, intrigava os arqueólogos. A região apresentava sinais de ocupação pré-histórica e aquele local poderia servir como abrigo para alguns dos moradores que, há milhares de anos, iniciaram a ocupação do território que hoje compreende o estado paulista. Mas havia uma pedra no meio do caminho que separava os cientistas da fenda de Itapeva.
Ou melhor, uma caminhada de cinco dias pela floresta, subindo paredões rochosos e em companhia de mosquitos, cobras e outros animais selvagens. Antes de prepararem suas mochilas de mantimentos e cantis com água, entretanto, os arqueólogos digitaram algumas coordenadas no computador: automaticamente, um drone levantou voo e chegou rapidamente à fenda. Pela tela, os pesquisadores descobriram o alarme falso — não havia nenhum sinal de ocupação humana. E um belo perrengue foi evitado.
Apesar de os arqueólogos estarem acostumados a carregar diferentes apetrechos tecnológicos em seu ambiente de trabalho, como câmeras fotográficas e equipamentos para medir ângulos e distâncias, novos recursos se fazem cada vez mais presentes nos locais de escavação. Além de drones, há scanners a laser, câmeras de altíssima resolução e equipamentos que registram imagens em 360 graus: tudo isso para coletar o maior número de dados possível e recriar os sítios arqueológicos em realidade virtual.
Batizada de ciberarqueologia, a tabelinha entre ciência da computação, pesquisas de engenharia e conhecimento em ciências naturais molda uma nova maneira de os cientistas encontrarem os vestígios que contam a história do passado da humanidade.
Os primeiros modelos em 3D de grandes sítios arqueológicos foram realizados ainda na década de 1990. Até então, as reconstruções virtuais de cidades da Antiguidade, como Roma e Pompeia, não passavam de recriações fotorrealistas das principais estruturas arquitetônicas, feitas com base em informações coletadas em mapas, desenhos e documentos antigos.
Com a evolução dos equipamentos digitais, como os radares a laser, novas possibilidades surgiram no horizonte. Mais do que simplesmente remontar o passado, tornou-se possível criar ambientes virtuais altamente precisos e imersivos. Pessoas de qualquer lugar do mundo podem acessar e explorar sítios arqueológicos por meio de sistemas de realidade virtual.
O italiano Maurizio Forte, professor da Universidade Duke nos Estados Unidos e um dos pioneiros da ciberarqueologia, foi o responsável por trazer esse conceito para o Brasil. Com a experiência de ter conduzido o processo de reconstrução virtual do vilarejo de Villa de Livia, na Itália, e das ruínas do assentamento neolítico de Çatalhüyük, na Turquia, o pesquisador foi convidado em 2013 para um workshop sobre o tema na Universidade de São Paulo.
Nessa viagem, Forte conheceu o professor Marcelo Zuffo, engenheiro que coordena o Centro Interdisciplinar de Tecnologias Interativas (Citi), da Escola Politécnica da USP. Apaixonado por realidade virtual, o brasileiro resolveu mergulhar fundo no tema. “Saímos do encontro com um pacto de fazer um projeto juntos. Depois de seis meses, a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) lançou um edital cujo objetivo era fomentar a ciência de dados em áreas que tradicionalmente não se conversavam”, revela Zuffo. “Isso caiu como uma luva.”
ESCAVAÇÕES DIGITAIS
Após um período de estudos e planejamento, a equipe do professor Zuffo foi a campo no primeiro semestre de 2016. O teste inicial de escaneamento a laser permitiu a obtenção de um modelo tridimensional em alta resolução de um dos fornos da Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema, construída na cidade de Iperó, interior paulista, a partir de 1810. Também foi modelado em 3D o Monumento Nacional Ruínas Engenho São Jorge dos Erasmos, construído em 1534 no litoral paulista.
Ainda era pouco. “A maioria das experiências em ciberarqueologia estão ligadas à arquitetura monumental”, afirma o professor Astolfo Araújo, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. “Mas 99,9% da arqueologia que é feita no mundo não têm nada a ver com monumentos. Nossa abordagem está mais preocupada com o registro que é realizado em qualquer escavação.”
Para aplicar a tecnologia em uma área que tivesse maior relação com o trabalho cotidiano dos arqueólogos, a equipe decidiu investigar um tema ainda pouco explorado pelos pesquisadores brasileiros. “Estamos tentando entender o que aconteceu no estado de São Paulo, já que pouco se sabe sobre os grupos antigos de caçadores e coletores que andaram por aqui”, destaca Araújo.
Nessa nova etapa, além de recorrer à tecnologia para encontrar os vestígios, os pesquisadores utilizaram a realidade virtual a fim de expandir as possibilidades de trabalho nos sítios arqueológicos.
Por mais meticuloso que seja o ofício dos arqueólogos, escavações dos sítios arqueológicos são como destruições controladas. “Um historiador analisa um documento e o devolve para a biblioteca. No nosso caso, lemos e destruímos o documento ao mesmo tempo”, diz o professor Araújo. Por mais detalhista que seja a anotação do local, uma vez que o sítio arqueológico é escavado e os artefatos são encontrados, ele deixa de existir na prática — afinal, ninguém enterrará todos aqueles itens novamente.
A ciberarqueologia, entretanto, permite que se realize o escaneamento do local, coletando informações de milhares de pontos por milímetro. O registro dos artefatos ganha volumes e formas, e o sítio arqueológico destruído volta a existir na tela do computador ou nos óculos de realidade virtual utilizados pelos pesquisadores.
DO REAL PARA O VIRTUAL
Para a realização do escaneamento do sítio arqueológico, os arqueólogos utilizam o Lidar, sigla em inglês para detecção de luz e variação, que funciona como um radar em que um laser substitui as ondas de rádio. O equipamento faz uma varredura e capta a luz refletida pelos objetos, armazenando dados como a distância e as formas dos itens. Em seguida, são utilizadas as fotos em 360 graus, que mapeiam os detalhes e o panorama do sítio arqueológico.
Com o auxílio dos drones equipados com câmeras que filmam em 4K, são registradas todas as minúcias que o profissional desejar analisar, como a geografia do local ou os detalhes de um pequeno objeto.
Nem tudo é tão fácil: nos primeiros testes, o controle do drone era manual, o que limitava a eficiência da captura dos registros. “Fomos escanear um sítio, tiramos 150 fotos, perdemos o dia todo e a qualidade ficou horrível”, conta Marcelo Zuffo. Era preciso criar uma tecnologia que automatizasse o processo. Nasceu, assim, o programa Ícaro VR. “Se quero escanear uma maçã com precisão de um décimo de milímetro, digito os parâmetros no computador, o algoritmo do Ícaro VR calcula e fico olhando o drone trabalhar.”
Se a bateria está acabando, o drone retorna de modo autônomo à pista de pouso para recarregar e segue a tarefa de fotografar. “É um ganho de produtividade altíssimo, registrando até 2 mil fotos em um único dia. Com o método pronto, reconstruímos a Praia de Ipanema inteira em apenas uma manhã.”
Na arqueologia, cada pedacinho de pedra encontrado no local escavado, chamado de quadra, é gravado como um ponto pelo taqueômetro, equipamento eletrônico que mede ângulos e distâncias para registrar a localização dos objetos encontrados. No caso do escaneamento de uma quadra escavada, não há automação que resolva: com o scanner Lidar, os arqueólogos posicionam o equipamento na escavação e realizam os registros, vasculhados centímetro por centímetro — literalmente.
Com as informações reunidas no sítio arqueológico, os cientistas retornam ao laboratório para analisar os registros. “A geração de dados é monstruosa. Cada grãozinho de terra é escaneado. A gente pode escanear o Theatro Municipal inteiro que isso precisará de menos memória do computador do que uma escavação de um metro quadrado cheio de lascas de pedras”, diz Zuffo.
É necessário, então, transportar os dados brutos do computador para o ambiente virtual, fazendo a reconstrução em 3D dos objetos reais e transformando-os em milhares de pontos capazes de serem analisados pela plataforma de realidade virtual.
Apesar de contar com potentes supercomputadores para dar conta do trabalho, o processo é semiautomático, ou seja, depende do olho e da meticulosidade da equipe do professor Zuffo para ser desenvolvido. Somente para recriar um sítio arqueológico como o de Bastos, localizado na cidade paulista de Dourado, foram tiradas 65 mil fotos: cada imagem ocupava ao menos 300 megabytes.
EM BUSCA DO PAULISTA PERDIDO
Descoberto em 1887 e escavado desde a década de 1970, o Abrigo de Itapeva guarda pinturas rupestres de mais de 4 mil anos. Com base nas informações desse sítio arqueológico foram construídas as três primeiras versões do Archeo VR, nome dado à plataforma de realidade virtual utilizada pelos pesquisadores. O resultado é surpreendente: a percepção de profundidade é perfeita, com direito a vertigem ao ser transportado para um lugar mais alto. Sem contar o realismo das imagens, muito superior ao mais avançado dos videogames.
Com um simples comando, uma quadra de escavação surge, revelando todos os artefatos encontrados. As inscrições na rocha são iluminadas para serem analisadas detalhadamente. Até uma pedra repleta de inscrições que havia sido dinamitada por caçadores de relíquias foi reposicionada virtualmente em seu local original.
É preciso se esforçar para relembrar que o usuário da plataforma ainda está em um laboratório científico. “Estávamos em uma reunião para apresentar o que o computador tinha encontrado. O aluno começou a mostrar as imagens e, de repente, surge uma espiral que eu não conhecia”, revela o professor Astolfo Araújo. “Fiquei estupefato: milhares de pesquisadores já haviam andado por lá e ninguém tinha visto esse detalhe.”
Mas o projeto não para por aí: após meses de testes, a equipe estabeleceu uma conexão de internet por fibra ótica de 10 gigabytes por segundo de velocidade com a Universidade Duke. É quase 3,5 mil vezes mais rápida que a média da velocidade da banda larga no Brasil. A transmissão de dados em tempo real permitirá que os pesquisadores de São Paulo e da Carolina do Norte trabalhem de forma colaborativa na quarta geração do Archeo VR.
“Realizaremos sessões multidisciplinares de análise arqueológica com pesquisadores daqui e dos Estados Unidos trabalhando juntos. Essa será a consumação do projeto”, afirma Marcelo Zuffo. O professor ressalta que, apesar de não substituir o trabalho em campo, a utilização de realidade virtual abre a possibilidade de descobrir evidências arqueológicas até então desconhecidas pelos cientistas.
Para o professor Astolfo Araújo, a expectativa de reunir novas informações sobre o sítio arqueológico de Bastos é grande. Depois de passar 16 dias coletando dados durante o mês de julho, o pesquisador acredita no grande potencial para descobertas: nesse sítio arqueológico, considerado o mais importante já descoberto em São Paulo, foram localizados vestígios de 12,5 mil anos. São contemporâneos de Luzia, um dos fósseis humanos mais antigos da América, descoberto em uma gruta próxima a Belo Horizonte.
Por meio do estudo das lascas de pedra encontradas e da comparação com os objetos achados em outros lugares, é possível determinar se esses grupos de humanos pertenciam a uma mesma cultura. “A impressão que temos é de que o atual território do estado de São Paulo teve uma confluência muito grande de grupos vindos de outras regiões”, destaca Araújo. “Há potencial de encontrarmos uma variabilidade cultural monstruosa.”
O engenheiro Marcelo Zuffo acredita que sua contribuição para o trabalho está apenas no começo. Apesar de o financiamento da Fapesp ter se encerrado no dia 30 de junho, o potencial das descobertas levou o professor a bancar com recursos próprios as últimas pesquisas no Sítio Bastos.
Apaixonado pela arqueologia pré-histórica e confiante no potencial revolucionário de suas pesquisas, ele já faz planos para os próximos meses. “Colocarei os alunos para reconstituírem diversas lascas no computador e combiná-las juntas como um quebra-cabeça virtual. Assim teremos uma ideia da técnica que foi utilizada pelos povos para lascar essas pedras.” A cultura pré-histórica do Brasil está agora em muitas dimensões.
Por Felipe Floresti
Fonte: El País