ma ilusão ronda as casas e as ruas do Brasil: a ilusão de que as crianças são puras, livres de racismo e, portanto, garantia de um futuro mais esperançoso para quem acredita num país com igualdade de gênero e sem preconceito. É uma ilusão, repito, e extremamente danosa para a sociedade.
Sim, de fato elas nascem puras. No entanto, há um consenso entre educadores de que, já a partir da primeira semana de vida, elas passam a absorver tudo o que lhes cerca. Do sorriso dos pais às expressões de ódio e conflitos, da cultura da igualdade às variadas formas de racismo, tudo é exposto e recebido por nossas crianças.
Se ela conviver com formas de preconceito, absorverá seus efeitos. Se educada em padrões ancorados na diversidade, as chances de aceitá-los como os padrões corretos serão infinitamente maiores.
Eis por que é tão fundamental que o trabalho de inclusão – de cor, de gênero, de classe social, de qualquer espécie, portanto – comece na infância. Na primeira infância.
Aos mestres, com carinho
Para quebrar a cadeia histórica e generalizada do ódio e do preconceito, a primeira tarefa é parar de ensinar ódio e preconceito. Por causa da autoridade e do afeto, as crianças tendem a incorporar os discursos dos pais e da escola – aqui entendida como um todo, incluindo professores, ambiente escolar, suas bibliotecas e seus livros, os brinquedos disponibilizados a alunos e alunas.
Interromper esse fluxo que alimenta o racismo no Brasil exige interromper a educação do racismo. Exige que professores e pais parem de expressá-lo.
E não se trata de palpite, mas de realidade. Fiz uma pesquisa com cerca de 900 negros de diferentes classes sociais no Brasil e a esmagadora maioria apontou: grande parte do racismo que enfrentaram e enfrentam veio e vem da escola básica. É nessa faixa escolar que as crianças se mostram sem filtros e, por isso mesmo, verbalizam o racismo com normalidade. Aliás, expressam a “normalidade” que observam em seus cotidianos.
Nessa “normalidade”, faltam protagonistas negros nas novelas, nos livros infantis e nos desenhos animados. Nessa “normalidade”, o padrão familiar são os pais brancos e heterossexuais. Nessa “normalidade”, as lojas infantis estão repletas de brinquedos brancos e eurocêntricos e mesmo as chamadas escolas alternativas confundem diversidade com o fato de terem 3 ou 4 bonecas da cor negra à disposição das crianças.
Outra ilusão.
O racismo que acontece nas escolas é também uma forma de bullying. Uma violência sutil e subliminar que resulta numa interação diferente segundo a cor. Um estudo da ONU feito no ano passado em 18 países, com a participação de 100 mil crianças e jovens, mostrou que metade deles sofreu bullying por razões que vão da aparência à etnia. No Brasil, a porcentagem dos que sofreram alguma forma de racismo na escola chegou a 43%, próximo dos índices registrados em outros países da América Latina. Isso sem levar em conta as formas mais sutis de preconceito.
Racismo presente
A verdade é que o Brasil ainda é um país estética, política e economicamente racista. Um racismo presente na família e na escola, na cultura e no comércio, que impõe às crianças uma cultura racista – da sua formação aos produtos que consome.
É essa cultura que impede as crianças brancas de comprar brinquedos com a nossa linda cor de pele negra, do mesmo modo que impede as crianças negras de se verem como tal – 85% das crianças negras com menos de 5 anos escolhem uma boneca branca como a bela e boazinha, e a negra como a feia e a má.
Contra tal cultura, sempre perversa, não basta lutar contra o racismo. Não basta dizer “é preciso parar de ser racista”. Lutar contra tal cultura exige ação e engajamento. Exige falar sem medo dentro de casa e na escola – está provado que se cérebro é exposto a uma ideia por mais de três vezes começa a assimilá-la como verdade.
Isso vale para alguém da família, para um professor ou para um roteirista de TV – por que não pedir a eles, por exemplo, por meio das redes sociais, mais diversidade na cor da pele dos personagens? Ou pedir nas escolas particulares que bolsas sejam concedidas a crianças negras desde cedo, ao invés de esperar pelas cotas nas universidades? Essa é uma maneira de nos engajarmos como cidadãos de maneira direta, sem intermediação de governos ou instituições
Engajar-se significa lutar pelo compromisso da escola por uma narrativa diversa – nos livros didáticos, nas bibliotecas, nos seus espaços de brincadeira e formação. Quanto mais exigirmos isso, mais traremos essa pauta para a sociedade, e mais a mudança poderá, de fato, existir. Sem ilusões, sem falsas esperanças.