O Governo de Michel Temer publicou, nesta semana, um conjunto de novas regras que, na prática, dificultam o combate ao trabalho escravo no país. Uma das principais mudanças diz, por exemplo, que para que haja a identificação de trabalho forçado, jornada exaustiva e condição degradante, é preciso ocorrer a privação do direito de ir vir, o que no Código Penal não é obrigatório. A portaria deixa também nas mãos do ministro do Trabalho – e não mais da equipe técnica- a inclusão de nomes na chamada “lista suja”, que reúne empresas flagradas com trabalho análogo à escravidão.
As mudanças atendem a uma demanda antiga da bancada ruralista no Congresso e ocorrem justamente na semana em que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara analisou a segunda denúncia contra o Temer no âmbito da Lava Jato. Em nota, o Ministério do Trabalho afirmou que a portaria “aprimora e dá segurança jurídica à atuação do Estado Brasileiro” no combate ao trabalho escravo.
A medida, no entanto, recebeu uma chuva de críticas. O Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Trabalho (MPT) recomendaram a revogação da decisão do Ministério do Trabalho e afirmaram que a portaria é ilegal, ao condicionar a caracterização do trabalho escravo contemporâneo à restrição de liberdade de locomoção da vítima. Em 17 Estados do Brasil, fiscais do trabalho decidiram, inclusive, parar suas atividades desde quarta-feira em protesto à portaria. Segundo Carlos Silva, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), a maioria das fiscalizações permanecerão paralisadas até que o ministro revogue esta “portaria ilegal e absurda”, disse ao EL PAÍS.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) também se manifestou e declarou que o Brasil deixa de ser referência no combate ao trabalho escravo e vira exemplo negativo. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, defenderam a revogação imediata do documento.
Confira as principais mudanças que passaram a vigorar nesta semana:
– Alteração na definição do trabalho análogo à escravidão
Como é hoje: O Art. 149 do Código Penal determina, desde 1940, que reduzir alguém a condição análoga à de escravo significa submeter uma pessoa a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho, restrição de locomoção ou servidão por dívida. Essa lei foi sendo modificada ao passar dos anos, com novas regras como quanto ao tráfico de pessoas (aliciamento, coação, dentre outros).
O que determina nova portaria: Agora a condição análoga à de escravo significa: obrigar o trabalhador a realizar tarefas, com o uso de coação e sob ameaça de punição; impedir que o trabalhador deixe o local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto; manter segurança armada a fim de reter o trabalhador em razão da dívida; retenção de documento pessoal do trabalhador.
As demais variáveis – trabalho forçado, jornada exaustiva e condições degradantes – presentes no Código Penal ganharam também um novo limitador. Elas só podem ocorrer se tiver o cerceamento da liberdade de expressão ou de mobilidade do trabalhador.
Só é trabalho forçado “aquele exercido sem o consentimento por parte do trabalhador e que lhe retire a possibilidade de expressar sua vontade”. Já jornada exaustiva se dá com a “submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir”; e condição degradante é aquela caracterizada por “violação dos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador (…) no cerceamento da liberdade de ir e vir, seja por meios morais ou físicos, e que impliquem na privação da sua dignidade”.
Risco embutido: Caso uma pessoa seja submetida a condições degradantes e jornadas exaustivas, ela não poderá ser caracterizada mais como um trabalhador escravo.
Na avaliação do presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), o ministro Ronaldo Nogueira, não tem competência para colocar esse conceito restritivo.”Esse conceito que ele trouxe é da escravidão negra. A que historicamente foi abolida em 1888, é um retrocesso enorme e que tem alinhamento com o pleito dos ruralistas”.
– Novos limites da fiscalização
Como é hoje: a fiscalização do trabalho escravo leva em consideração o conjunto de violações, que nem sempre se apresentavam por completo.
O que determina a nova portaria: A partir de agora, todas as variáveis que determinam o que é trabalho escravo tem que estar presentes no momento da fiscalização. Se, por exemplo, não for identificado jornada exaustiva, segundo o atual critério, fica invalidado o trabalho análogo a escravidão.
Além disso, há uma lista criteriosa com novos protocolos a serem seguidos pelos fiscais: cópias de todos os documentos que demonstrem a ocorrência do trabalho forçado; da jornada exaustiva; da condição degradante ou do trabalho em condições análogas à de escravo; fotos que evidenciem as violações; descrição detalhada da situação encontrada; existência de segurança armada diversa da proteção ao imóvel; impedimento de deslocamento do trabalhador; servidão por dívida; existência de trabalho forçado e involuntário pelo trabalhador.
A medida mais polêmica, no entanto, fica por conta da necessidade de um boletim de ocorrência lavrado pela autoridade policial que participou da fiscalização.
Hoje, segundo Silva, menos da metade das operações realizadas em combate ao trabalho escravo tem acompanhamento policial. “Se o processo de fiscalização determinado pela nova portaria for seguido a risca, vamos ter uma queda abrupta de operações. Temos um histórico largo de negativas da polícia, alegando insuficiência de quadro para atender nossas demandas”, explica.
Riscos embutidos: A nova portaria burocratiza o trabalho de fiscal a quem cabe o ônus da prova do trabalho escravo. A jornada exaustiva, por outro lado, ficaria mais difícil de ser provada numa visita de fiscalização.
– O problema da “lista suja do trabalho escravo”
Como é hoje:A lista o trabalho escravo foi criada como um instrumento do Governo federal para divulgar o nome de empresas que foram pegas por fiscalizações do trabalho escravo. Na teoria, o instrumento deveria servir para restringir que estas companhias tivessem acesso a recursos de bancos públicos. No entanto, na prática, a maior função da lista era constranger os empresários. Em 2014, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski decidiu suspender a divulgação da lista, após um pedido da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). Num período de dois anos, o acesso à lista foi feito apenas por meio da Lei de Acesso à Informação. Em 2017, a justiça liberou sua divulgação.
O que determina a nova portaria: A atualização da lista suja deverá ser feita duas vezes por ano, no site no Ministério do Trabalho. A polêmica, no entanto, está por conta da forma como os nomes serão inseridos na lista. Anteriormente, um departamento técnico era o responsável pela divulgação. Agora, somente com a autorização do Ministro do Trabalho é que o nome de uma empresa poderá constar no documento.
Riscos embutidos: ministro terá o poder de postergar a inclusão de empresas na “lista suja” e a escolha pode se tornar menos técnica e mais política.
Fonte: FlipBoard