Caso a votação do projeto de lei 7180/14, conhecido como Escola sem Partido, seja adiada, o texto pode ser endurecido e criminalizar a conduta de professores. O substitutivo do relator, o missionário católico deputado Flavinho (PSC-SP), pode ser votado na comissão especial da Câmara dos Deputados sobre o tema na próxima semana.
Uma das bandeiras das bancadas católica e evangélica, a proposta altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação para proibir o desenvolvimento de políticas de ensino e adoção de disciplinas no currículo escolar “nem mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual‘, segundo parecer.
A votação na comissão especial estava marcada para última quarta-feira (31), mas foi adiada devido à presença de manifestantes contrários à Escola sem Partido. Como tramita em caráter terminativo, se aprovado, o texto segue direto para o Senado Federal, a menos que seja aprovado um requerimento para votar no plenário da Câmara. Para isso, é preciso apoio de 52 deputados.
Se chegar ao plenário, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) pode segurar a votação até o ano que vem, de olho no apoio de deputados progressistas para se reeleger no comando da Casa, já que a votação é em fevereiro. A mesma estratégia foi usada por ele no início de 2017.
De acordo com o presidente do colegiado, deputado Marcos Rogério (DEM-RO), caso a proposta não seja aprovada na Câmara neste ano, pode ser endurecida na próxima legislatura, devido ao perfil mais conservador dos novos eleitos. “Podem criminalizar a conduta do professor com uma emenda em plenário”, afirmou ao HuffPost Brasil.
Relator, o deputado federal Flavinho confirmou que deputados como Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e Marco Feliciano (Podemos-SP), ambos reeleitos, tentaram anteriormente tornar o PL mais rígido. “Inicialmente parte da bancada evangélica queria criminalizar”, afirmou à reportagem.
Ele disse que não incluiu a sugestão porque o objetivo principal não era punir, mas “esclarecer a população brasileira que nós temos um problema de doutrinação”. “Não sou favorável a criminalizar. A punição está prevista no nível institucional, passando pela coordenação pedagógica da instituição onde o professor doutrinador está agindo, chegando no diretor da escola, no supervisor de ensino. Já existem dispositivos”, explicou.
O que a Escola Sem Partido propõe
Segundo o projeto de lei resultante de movimento com mesmo nome em 2004, cabe ao professor respeitar o “direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”.
As regras de proibição de conteúdos sobre gênero se aplicam a livros didáticos e paradidáticos, avaliações para o ingresso no ensino superior, provas de concurso para o ingresso na carreira docente e nas instituições de ensino superior.
Uma emenda aceita pelo relator também ampliou a vedação para as políticas e planos educacionais, além de projetos pedagógicos das escolas. Outra emenda acatada proíbe estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula, de expressar qualquer “forma de dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero”.
A proposta também estabelece que professores não poderão usar sua posição para cooptar alunos para qualquer corrente política, ideológica ou partidária e prevê que as escolas deverão afixar cartazes com o conteúdo da lei.
As normas abrangem tanto escolas pública quanto particulares. Na educação básica, os colégios privados com ensino confessional “poderão veicular e promover os conteúdos de cunho religioso, moral e ideológico autorizados contratualmente pelos pais ou responsáveis pelos estudantes”, segundo o PL.
Escola sem Partido inviabiliza combate à discriminação?
O Brasil é o país com a 5ª maior taxa de feminicídios. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), o número de assassinatos chega a 4,8 para cada 100 mil mulheres. O Mapa da Violência de 2015 aponta que, entre 1980 e 2013, 106.093 pessoas morreram por sua condição de ser mulher.
A violência contra pessoas LGBT também é alarmante. Em 2017, foram registradas 445 mortes relacionadas à homofobia — uma vítima a cada 19 horas no Brasil — de acordo com o Grupo Gay da Bahia (GGB), que realiza o monitoramento de violências contra a comunidade há 38 anos.
Na avaliação de críticos à Escola sem Partido, ao proibir discussões sobre gênero e orientação sexual, a proposta impede avanços para combater a discriminação e, consequentemente, para reduzir os crimes de ódio.
O relator da proposta discorda. De acordo com o deputado Flavinho, não há relação entre esses problemas e os termos proibidos, e a nova legislação não impossibilitaria um professor de agir para evitar que um aluno sofra preconceito por sua orientação sexual. “Ele pode fazer conforme preconiza a lei. Ele não pode dizer que a opção sexual (sic) de um homossexual na sala de aula neutraliza o fato de ser homem ou mulher. Isso é ideologia de gênero”, afirmou Flavinho.
Questionado se a mudança legal poderia impedir discussões sobre violência contra a mulher, por exemplo, por ser uma questão relacionado ao gênero, o parlamentar rejeitou o uso da expressão. “Como legislador, eu não olho para a questão de sexo, como está na Constituição, como gênero. Questão de gênero é uma nomenclatura ideológica, trazida pela esquerda e que tem cada vez mais tentado permear a legislação brasileira.”
Sexo, gênero e ‘ideologia de gênero’
O termo “ideologia de gênero” apareceu pela primeira vez em um documento eclesiástico em 1998 na Conferência Episcopal do Peru. De acordo com o artigo “Ideologia de gênero: a gênese de uma categoria política reacionária – ou a promoção dos direitos humanos se tornou uma ‘ameaça à família natural’?”, de Rogério Diniz Junqueira, da UnB (Universidade de Brasília).
Segundo o especialista, o termo faz parte de uma “retórica reacionária antifeminista” e, apesar da origem católica, foi construído a partir da mobilização de “figuras ultraconservadoras de conferências episcopais de diversos países, movimentos pró-vida, pró-família, associações de terapias reparativas (de ‘cura gay’) e think tanks de direita.”.
As ciências sociais nos últimos anos têm feito uma distinção entre sexo e gênero. O primeiro está relacionado a questões anatômicas e biológicas. O segundo trata-se de uma construção social do sexo biológico. A Constituição Federal, escrita em 1988, usa o termo “sexo”.
A identidade de gênero, por sua vez, é uma experiência pessoal de autopercepção. Uma pessoa que se identifica com o gênero determinado no momento do nascimento é cisgênero, em oposição às pessoas transgênero, transexuais e travestis.
Já a orientação sexual se refere à atração por outras pessoas. O termo é usado em vez de “opção sexual” por especialistas da área porque o entendimento é que a construção da sexualidade é iniciada na infância, quando o ser humano ainda não possui capacidade avaliativa plena.
Além de citar o termo usado pela Constituição, Flavinho destaca que os termos “gênero” e “orientação sexual” também foram suprimidos do PNE (Plano Nacional de Educação) em 2014. A alteração ocorreu após pressão da bancada religiosa no Congresso Nacional.
Lei da Mordaça nas escolas
Opositores ao projeto de lei chamam a proposta de “Lei da Mordaça”. O grupo Professores contra a Escola sem Partido, por exemplo, reúne a legislação que prevê ações como combate à discriminação e liberdade de ensino. Atualmente a Lei de Diretrizes Básicas da Educação estabelece que o ensino deve ser ministrado com “respeito à liberdade e apreço à tolerância”. A Constituição, por sua vez, prevê o “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” nas escolas.
Em parecer enviado ao STF (Supremo Tribunal Federal) em ação que trata de um projeto de lei similar aprovado em Alagoas, a Procuradoria-Geral da República afirmou que a medida é inconstitucional. A Corte deve julgar ações sobre o tema em 28 de novembro.
O projeto de lei também vai na contramão do que indicam pesquisas de opinião sobre o tema. Sondagem do Ibope encomendada pela instituição Católicas pelo Direito de Decidir, divulgada em junho de 2017, por exemplo, revela que 84% dos entrevistados concordam que professores discutam sobre a igualdade entre os sexos com os alunos. Outros 72% concordam com debates sobre o direito de cada pessoa viver livremente sua sexualidade, sejam elas heterossexuais ou homossexuais.
Pesquisa do projeto Sintonia Eleitoral, do portal G1 com o instituto Vox Pop Labs, publicada nesta semana, por sua vez, revela que 48% dos entrevistados concordam com a frase “professores deveriam ser livres para ensinar diferentes perspectivas políticas em sala de aula”, enquanto 43% discordam. Outros 8% são neutros e 1% não sabia responder.
Fonte: HuffPost Brasil