A Justiça Federal da 1ª Região, em Mato Grosso, suspendeu os efeitos do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre a demarcação da Terra Indígena (TI) Tereza Cristina, do povo Bororo. A decisão inédita determina que a Funai conclua a identificação e delimitação da terra indígena dos Bororo, sob pena de multa, e avalia que o Parecer não se aplica a este caso, devendo ser ignorado pelo órgão indigenista.
Trata-se da primeira vitória judicial sobre o Parecer 001/2017 da AGU, chamado também de “Parecer Antidemarcação”, cuja revogação vem sendo exigida pelo movimento indígena, por organizações indigenistas e pelo próprio Ministério Público Federal (MPF) há meses.
A decisão reflete uma Ação Civil Pública ajuizada pelo MPF de Mato Grosso em julho deste ano, visando garantir que a Funai e a União concluam a revisão dos limites da TI Tereza Cristina, reduzida ao longo do século XX por políticas do Estado brasileiro que legalizaram as invasões e o esbulho do território Bororo.
“Trata-se, sem dúvida alguma, de uma grande vitória, pois o MPF, por meio da Sexta Câmara de Coordenação e Revisão, já vinha tentando há alguns meses fazer com que o governo federal revisse tal posicionamento”, explica Ricardo Pael Ardenghi, procurador da República em Mato Grosso.
A TI Tereza Cristina foi delimitada com 25,6 mil hectares em 1976, uma extensão 40 mil hectares menor do que o primeiro ato de reconhecimento oficial da TI, ainda no século XIX, pelo Marechal Cândido Rondon. No início do século passado, títulos particulares foram emitidos pelo estado do Mato Grosso sobre parte da área original da “Colônia Indígena Tereza Cristina”, como foi denominada por Rondon.
Os Bororo nunca deixaram de lutar pela demarcação da totalidade de sua terra tradicional e, desde 1996, a publicação do novo relatório de identificação e redefinição dos limites da TI Tereza Cristina vem sendo adiada e suspensa por diferentes decisões judiciais e administrativas.
Em setembro de 2017, duas décadas depois do início do processo de revisão, a Funai informou que o processo estava suspenso com base no Parecer 001/2017 da AGU. Ardenghi explica que há vinte anos a Procuradoria da República do MT vem buscando soluções para a morosa demarcação da TI Tereza Cristina e que, após a paralisação do processo com base no Parecer da AGU, “o caminho que se abriu foi o questionamento judicial”.
Ao diferenciar ampliação de terras indígenas de revisão de limites, “a decisão mostra uma das irregularidades do Parecer da AGU, que tenta transformar em norma uma decisão pontual e já superada do STF”
Revisão de limites não é ampliação
Um dos pontos alegados pela Funai para a paralisação da demarcação da terra dos Bororo é que o procedimento trataria “de ampliação de terra indígena já regularizada, o que é vedado pelo Parecer 001/2017” da AGU.
O questionamento do MPF a este ponto, que é um dos centrais do Parecer Antidemarcação da AGU, foi acolhido na decisão da Justiça Federal.
Citando o MPF, o juiz Cesar Augusto Bearsi sustenta uma diferenciação entre a ampliação de terras indígenas e revisão de limites. Enquanto a ampliação decorre de “causas como o aumento demográfico, degradação ambiental da área ocupada, etc.”, explica, a revisão de limites “visa à correção da demarcação original que se deu em área menor do que a do território tradicional (e, neste caso, especificamente, menor do que o território já destinado aos indígenas)”.
“O processo administrativo em análise tem justamente o escopo de revisar os atos defeituosos (nulos)”, afirma a decisão. “Não se trata de simples ampliação de terra indígena, mas sim de algo totalmente diverso, que é a revisão da demarcação anterior sob o prisma de legalidade e constitucionalidade”.
“Ao fazer esse descriminem, a decisão judicial mostra uma das irregularidades do Parecer 001 da AGU, que tenta transformar em norma uma decisão pontual do STF, que inclusive já foi superada em decisões posteriores”, avalia o procurador do MPF/MT.
“Somente será descaracterizada a ocupação tradicional indígena caso demonstrado que os índios deixaram voluntariamente o território que postulam ou desde que se verifique que os laços culturais que os uniam a tal área se desfizeram” – STF, na ACO 362
Jurisprudência do STF
A Advogada-Geral da União do governo Temer, Grace Mendonça, vem afirmando que a publicação do Parecer Antidemarcação teve como finalidade dar “segurança jurídica” às demarcações de terras indígenas e garantir o cumprimento de uma suposta jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema.
Esse é outro ponto que vem sendo amplamente questionado pelo MPF e por entidades indigenistas, que vêm demonstrando que a AGU fez uma seleção arbitrária de deliberações que enfraquecem os direitos indígenas e deixou de fora um conjunto muito maior de decisões que vão no sentido contrário.
A decisão da Justiça Federal do MT cita uma das decisões do pleno do STF que vão em sentindo contrário ao Parecer da AGU: a decisão unânime no caso da Ação Civil Originária (ACO) 362, julgada em agosto do ano passado.
Essa sentença do STF afirma que “somente será descaracterizada a ocupação tradicional indígena caso demonstrado que os índios deixaram voluntariamente o território que postulam ou desde que se verifique que os laços culturais que os uniam a tal área se desfizeram”.
“Os Bororo foram vilipendiados, tiveram suas terras tradicionais usurpadas, mas delas não se desligaram”, sustenta o juiz Cesar Augusto Bearsi, da 3ª Vara Cível Federal do MT, com base no precedente do STF. “Vejo que não se desnaturou a ocupação tradicional dos Bororo sobre a integralidade das áreas que devem compor a TI Tereza Cristina (sonegadas pela demarcação de 1976 a ser revisada)”.
Direitos indígenas não prescrevem
Outro ponto alegado pela direção da Funai, em sua justificativa para a paralisação da demarcação da terra indígena dos Bororo, foi que “o já citado parecer da AGU traz, ainda, entendimento firmado pelo STF sobre o prazo decadencial de cinco anos para que a Administração Pública possa rever seus atos”.
A decisão judicial avalia que este aspecto também não deve ser aplicado à situação da TI Tereza Cristina, mesmo que o ato defeituoso a ser revisto seja a demarcação reduzida feita em 1976.
“O artigo 231 da Constituição Federal, parágrafo quarto, define que os direitos dos povos indígenas sobre suas terras são imprescritíveis. Ao demarcar uma terra, o Estado apenas reconhece aquilo é direito originário destes povos. Portanto, essa questão dos prazos decadenciais para revisão de atos do administrativo não se aplica às demarcações de terras indígenas”, explica Adelar Cupsinski, assessor jurídico do Cimi.
“Essa decisão evidencia as contradições da AGU e do seu Parecer com o que vem sendo decidido de longa data pelo Poder Judiciário”
Novo fôlego contra o Parecer
Desde a publicação do Parecer 001/2017, em julho do ano passado, o movimento indígena e entidades indigenistas vêm se manifestando contra a medida. O Parecer foi assinado pela Advogada-Geral da União, Grace Mendonça, e chancelada por Michel Temer, logo após negociação com a bancada ruralista que salvou o emedebista de uma investigação por corrupção que poderia afastá-lo da presidência.
O Parecer obriga toda a administração pública federal a aplicar as condicionantes definidas pelo STF para o caso específico da terra indígena Raposa Serra do Sol, entre eles a vedação de “ampliação” de terras indígenas e o marco temporal, tese segundo a qual os indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988.
Na prática, o Parecer serviu para paralisar as demarcações de terras indígenas e fazer diversos processos demarcatórios em estágio avançado retornarem à Funai para revisão. A insegurança gerada pela medida também vêm sendo denunciada por servidores do órgão indigenista oficial, que podem ser penalizados caso não cumpram as orientações inconstitucionais contidas no Parecer.
Até o ministro da Justiça, Torquato Jardim, já reconheceu que o Parecer vem causando “dificuldades” e que se trata de “uma decisão muito específica para aquele grupo, para aquela região do país”.
No dia internacional dos Povos Indígenas, 9 de agosto, um ato em Brasília foi marcado pelo lançamento de uma carta assinada por mais de 130 entidades indígenas, indigenistas e socioambientais exigindo a revogação imediata do Parecer Antidemarcação da AGU. O ato foi uma resposta às frequentes alegações da ministra Grace Mendonça de que o Parecer está sendo “mal compreendido” e que a AGU pretende fazer “esclarecimentos” sobre sua aplicação.
“Essa decisão evidencia as contradições da AGU e do seu Parecer com o que vem sendo decidido de longa data pelo Poder Judiciário”, explica o assessor jurídico do Cimi. “Ela fragiliza ainda mais o Parecer, que continua sendo mantido pela AGU apesar dos questionamentos e reclamações das principais organizações indígenas do Brasil”.
Na nota técnica em que pede a anulação do Parecer, o MPF já afirmou que ele viola a Constituição Federal, Leis e Tratados Internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário.
“A decisão é um alento para os indígenas Bororo, que há mais de duas décadas aguardam a redefinição dos limites de seu território tradicional”, avalia Ricardo Pael Ardenghi. “Sem dúvida alguma, com esse precedente, muitas outras ações podem ser judicializadas, haja vista que a fundamentação é a mesma, e bastante robusta, materializada em duas notas técnicas produzidas pela Sexta Câmara do MPF”.
Para o secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto, o Parecer da AGU resulta de um acordo político entre o governo Temer e os representantes do agronegócio e não tem legitimidade. “Essa decisão é muito importante e fortalece a compreensão de que o enfrentamento ao Parecer, já feito pelos povos indígenas no âmbito político, deve se dar também pela via jurídica”, avalia.
Confira aqui a decisão da Justiça Federal
Por Tiago Miotto, da Ascom/Cimi