“Eu trabalhei tanto pela nossa terra que até fiquei velho cedo, mas isso pra mim não é motivo de abatimento, é motivo de orgulho. Cada ruga aqui representa o suor no arado da terra que já é cultivada pela minha família há três gerações. A escola que meu pai me deu foi o cabo da enxada e eu vou continuar lutando nesta terra até o último dia da minha vida”. O relato é do lavrador Diolin Batista dos Anjos, de 70 anos, que se enche de orgulho ao contar sobre o amor à comunidade Kalunga. “Meu avô e meu pai estão enterrados ali e é onde eu também quero morrer. Eu só não queria que esse dia chegasse antes de ter na nossa mão o papel que diz a terra que a gente tanto trabalhou é nossa.”
O desabafo de Diolin representa a realidade e o sonho de mais de 200 famílias quilombolas que atualmente residem na região Sudeste do Tocantins, município de Paranã, onde trabalham na terra há séculos, mas não conquistaram o título efetivo do território. A regularização fundiária, inclusive, foi a principal demanda apresentada pelos representantes das comunidades Prata, Claro, Ouro Fino e Kalunga, durante atendimento realizado pelo projeto “Defensoria Quilombola”, na última quinta-feira, 19.
Realizado pela Defensoria Pública do Estado do Tocantins (DPE-TO), em Paranã, e pelo Núcleo da Defensoria Pública Agrária (DPagra), o atendimento aconteceu na Escola Estadual Floresta, no povoado Campo Alegre, e teve o objetivo de ouvir e dar encaminhamento de providências às principais demandas das comunidades atendidas, sejam elas individuais ou coletivas.
Durante atendimento, todos os representantes das comunidades falaram sobre a urgente necessidade da regularização fundiária. “São inúmeras famílias amedrontadas que, frequentemente, recebem ameaças de fazendeiros que chegam destruindo os nossos bens e gritando que ou a gente sai ou a gente morre. Mas sair pra onde mesmo? A gente não sabe fazer outra coisa na vida, tudo que temos é a nossa terra. Quando tivermos a regularização já não vamos ter mais tanto medo de morrer de ameaça”, declarou o lavrador José CesárioTorres, de 79 anos.
Representante da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Estado do Tocantins, Jackson Corcino Magalhães lembra que a regularização fundiária é uma demanda comum em todas as comunidades quilombolas do Tocantins. Ele recorda que a Fundação Cultural Palmares já certificou 44 comunidades no Estado, porém, nenhuma possui o título efetivo do território. “Algumas estão com o processo em andamento, mas falta a demarcação, outras já têm a demarcação e cartografia, mas aguarda relatório do antropólogo. Tudo é cercado de muita burocracia e nenhuma regularização definitiva”, lamenta.
Durante ação do projeto, foi verificado que as comunidades quilombolas enfrentam, além dos desafios pertinentes à regularização de seus territórios, uma variedade de demandas que abrangem questões como a dificuldade de acesso à água, energia e educação.
Individual
Nos atendimentos individuais, a equipe do DPagra e da Defensoria de Paranã, coordenada pelo defensor público Magnus Kelly Lourenço Medeiros, atendeu casos relacionados à aposentadoria, mediação e acordo para divórcio, defesa administrativa em caso de multa ambiental, dentre outras.
Os servidores da DPE-TO de Paranã realizaram os atendimentos individuais não só para os quilombolas como também para a comunidade em geral. Morador de Campo Alegre, Cilenar Machado elogiou o projeto da Defensoria Pública. “Eu não sou quilombola, mas estou sempre junto das comunidades para ajudar no que for preciso. Projetos como estes mostram que as famílias que mais precisam podem contar com um auxílio de credibilidade como a Defensoria para defender os seus direitos”, disse.
Problemas
De acordo com o presidente das comunidades Claro, Prata e Ouro Fino, Dionísio Rômulo Cesário, as comunidades negras, que se autodeclaram remanescentes, buscam reconhecimento e políticas públicas que reduzam a desigualdade social. Segundo ele, a certificação como comunidade quilombola deveria facilitar conquistas e direitos como assistência técnica para a produção e comercialização, acesso a insumos, inclusão social, recuperação e educação ambiental, além de ter as estradas da região recuperadas, bem como os benefícios trazidos por outras obras. “Na prática somos um povo que vive na precariedade, necessitando do básico para a sobrevivência como água, saneamento básico e energia elétrica”, relata.
O presidente da Associação Quilombo Kalunga, Vilmar Souza Costa, disse que a situação precária faz até mesmo com que as pessoas deixem suas comunidades. “A maior parte das comunidades quilombolas é formada por idosos. Os jovens estão saindo, desistindo de lutar pela terra em meio a tanta vulnerabilidade social. Nossos jovens estão saindo em busca de uma melhor condição de vida. Mas nós que ficamos temos de nos unir e garantir mais forças por um futuro melhor, buscar projetos de geração de renda, investimentos no turismo para então nos fortalecermos como povoado”, contou Vilmar Souza.
Encaminhamentos
De acordo com o defensor público Magnus Kelly Lourenço de Medeiros, coordenador do projeto em Campo Alegre e do DPagra, será realizado um relatório a partir das demandas anunciadas pelos moradores. A partir dele, serão oficiados os órgãos responsáveis para que sejam tomadas as devidas providências e medidas judiciais cabíveis. “As demandas das comunidades quilombolas são semelhantes, principalmente no que se refere à luta pela regularização fundiária e direitos básicos de saúde, educação e dignidade humana”, descreveu.
O Defensor Público ressaltou, ainda, que a Instituição já solicitou um relatório técnico antroplógico ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para delimitação da terra. Porém, o órgão informou que não possui recurso e solicitou prazo até o mês de dezembro para que sejam tomadas as providências. Enquanto isso, há uma liminar de uma Ação Civil Pública que impede a titulação de terra enquanto o processo não for finalizado. “Isso significa que nenhum fazendeiro pode ter a titulação da terra antes da conclusão desses trabalhos”, orientou.
Defensoria Quilombola
Desde o ano de 2012, a Defensoria Pública atua na defesa dos direitos das comunidades do Tocantins. O projeto “Defensoria Quilombola” já visitou mais de 30 comunidades, levando acesso à justiça. De acordo com o defensor público Magnus Kelly, quando a Defensoria Pública promove a defesa territorial não está defendendo uma terra que representa apenas moradia, mas que representa também o direito à identidade cultural, à cidadania agrária e à dignidade dessas comunidades.
fonte: DPE-TO / Jornalismo