O modo como as informações circulam, a seletividade do que é ou não notícia no país, os interesses privados dos veículos de comunicação e a qualidade dessas informações sempre foram questões centrais no debate sobre mídia, eleições e definição do voto no Brasil. Mas o processo eleitoral deste ano trouxe outros desafios. Por isso, ao longo da campanha, o Intervozes analisou as medidas adotadas por diversos agentes que, mirando o campo digital, se lançaram no combate às chamadas fake news, e os eventuais riscos deste processo para a liberdade de expressão.

Passada uma semana do pleito, estudos e levantamentos divulgados mostram que as medidas colocadas em prática por plataformas digitais, agências de checagem, pela mídia tradicional e pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) não foram suficientes para evitar o impacto negativo da disseminação de desinformações nas eleições. O que fazer a partir de agora então?

Neste último texto do especial “Eleições & Desinformação”, apresentamos uma síntese dos resultados dessas ações e apontamos questões que nos parecem centrais de serem consideradas daqui pra frente no enfrentamento às notícias falsas – incluindo a necessária pluralização do sistema de comunicação brasileiro, com foco no fortalecimento da liberdade de expressão no país.

Checagem de informações nas redes sociais: enxugando gelo?

Uma das principais frentes de combate às chamadas fake news nas eleições envolveu a parceria entre plataformas digitais e agências de checagem. Enquanto as últimas tinham como objetivo classificar informações em diferentes escalas entre o falso e o verdadeiro, as primeiras testaram no Brasil mecanismos de redução de alcance de notícias consideradas falsas (como fizeram Facebook e Google), alerta aos usuários sobre a classificação das notícias (Facebook) ou sobre se a fonte era originária de terceiros (WhatsApp) e mesmo exclusão de páginas e perfis considerados “mal-intencionados” ou disseminadores de spam (Facebook e Twitter).

Os acordos, entretanto, não impediram a disseminação de notícias falsas nas plataformas. Balanço divulgado no dia 31 de outubro pela “Aos Fatos” mostra que a agência “desmentiu” 113 “boatos” durante as eleições, número pequeno comparado à quantidade de desinformação que circulou na rede. As 113 notícias verificadas foram compartilhadas 3,4 milhões de vezes no Facebook e no Twitter, mas o número de pessoas alcançadas foi muito maior. No WhatsApp, o volume da disseminação é impossível de ser acompanhado, devido ao caráter fechado da rede.

Os números divulgados pela agência Lupa apontam no mesmo sentido. Somente no final de semana do primeiro turno, a agência classificou como inverídicas 12 informações que, somadas, tiveram mais de 1,17 milhão de compartilhamentos no Facebook.

Faltam, por outro lado, dados para medir o alcance das próprias checagens, para saber não apenas o número de pessoas que teve acesso às informações verificadas como também se elas chegaram aos mesmos alvos antes atingidos pelas notícias falsas.

Nos dias 27 e 28 de outubro, a coalizão formada pelas iniciativas de checagem Lupa, Aos Fatos, Boatos.org. Comprova, e-Farsas e Fato ou Fake, em articulação direta com o TSE, checou 50 notícias consideradas falsas. Elas foram divulgadas sob a hashtag #CheckBR nas mesmas plataformas nas quais foram recolhidas –  Facebook, WhatsApp e Twitter –, além dos veículos e canais das empresas checadoras. Segundo Cristina Tardáguila, da Agência Lupa, a coalizão permitiu um alcance das correções que seria impossível de qualquer agência desenvolver sozinha: 679 mil visualizações no Twitter, entre as 8h de domingo (28) e 11h da segunda-feira (29).

Estudo da Avaaz divulgado neste sábado (3/11) concluiu que mais de 98% dos eleitores de Bolsonaro foram expostos a uma ou mais notícias falsas durante a campanha – e que mais de 89% deles acreditaram que tratava-se de verdades. Ou seja, as checagens ainda ficaram longe de atingir os destinatários das desinformações a ponto de desmentir com eficácia o que estava em circulação.

A checagem ignorada pelos órgãos de fiscalização

Vale lembrar também que os limites do trabalho de checagem não se restringem a quantidade de fatos checados, seu alcance e velocidade de disseminação. Como apontou Fernanda da Escóssia, ombudsman da agência Lupa – única a contratar um profissional dedicado à análise e críticas internas durante as eleições –, “a forma como esta campanha foi coberta, analisada, checada não diz só sobre os candidatos. Nem só sobre os eleitores. Diz sobre o passado e o futuro, sobre o que de relevante foi produzido pelo jornalismo e o que de ultrajante foi visto como aceitável. Diz sobre as perguntas feitas aos candidatos e a forma como a desinformação foi combatida”.

Ao longo das eleições, a jornalista fez várias críticas ao trabalho da agência, semelhantes a críticas que já fizemos neste espaço. A mais importante talvez seja sobre o que as agências deixaram de fora. Em sua coluna de 27 de setembro, por exemplo, a ombudsman criticou a Lupa por não ter checado vídeos com falas de Bolsonaro e seu vice que haviam circulado naquela semana, tendo preferido destinar esforços para verificar falas do candidato João Goulart Filho, que teria entre 0% e 1% de intenções de votos.

Na coluna do dia 5 de outubro, Fernanda voltou ao assunto, ao criticar o fato de a agência ter checado em tempo real o debate realizado com os presidenciáveis na Globo, na noite anterior, enquanto Bolsonaro, que dava entrevista exclusiva na Record, ficar sem suas declarações verificadas.

Mesmo quando checadas, muitas das informações falsas continuaram sendo disseminadas nas redes sociais, diante da omissão da Justiça Eleitoral e das plataformas digitais. As ações tímidas do WhatsApp e do TSE já foram analisadas neste espaço. Mas o caso do “kit gay” precisa ser destacado.

Mesmo classificado como falso e proibido pelo TSE, dias depois do primeiro turno o material voltou a ser veiculado pela campanha de Bolsonaro. A apenas quatro dias do segundo turno, apareceu na propaganda eleitoral do então candidato no rádio e na TV. Segundo pesquisa IDEIA Big Data/Avaaz divulgada em 1º de novembro, 83,7% dos eleitores Bolsonaro acreditaram na informação de que Fernando Haddad (PT) teria
distribuído o kit para crianças em escolas quando era ministro da Educação.

Pistas para enfrentar o debate daqui pra frente

O cenário é preocupante e, diante do impacto no processo eleitoral, há uma tendência do Congresso Nacional voltar a propor leis autoritárias para coibir a disseminação das chamadas fake news. Antes das eleições, já circulavam no Parlamento mais de 30 propostas para regular o tema. Dois pontos que caracterizavam os textos seguem especialmente preocupantes.

O primeiro deles é a opção por criminalizar os usuários de internet que compartilharem notícias falsas. Alguns textos falam de penas de reclusão de até oito anos. Inviável do ponto de vista prático – vamos realmente prender milhões de brasileiros? –, a medida só terá como resultado concreto a autocensura dos cidadãos, que deixarão de compartilhar qualquer conteúdo nas redes, com medo de irem pra cadeia. As consequências para o
acesso à informação e diversidade na circulação de opiniões podem ser seríssimas.

Outro ponto presente nos projetos de lei transfere para as plataformas a tarefa de definir que conteúdos são falsos e a obrigação de tirá-los de circulação em 24 horas. A medida aumenta ainda mais o poder de intermediação das plataformas e transfere para empresas privadas uma decisão que cabe à Justiça, aumentando o risco de censura privada na rede.

Longe de achar que empresas como Google, Facebook e WhatsApp não devem ser responsabilizadas nos processos de disseminação de notícias falsas, outras medidas nos parecem muito mais democráticas, como a redução do compartilhamento em massa de conteúdos e análises sobre a legalidade no uso de dados pessoais, no impulsionamento pago de conteúdos, na concorrência e na transparência no funcionamento de seus algoritmos.

Nunca é demais lembrar que a legislação brasileira já possui mecanismos para coibir informações falsas. A Lei Eleitoral já proíbe o uso de perfil falsos e robôs para propaganda eleitoral, a compra de banco de cadastros de usuários de Internet e telecomunicações e o envio massivo, automatizado e/ou orquestrado de mensagens, como aconteceu no caso WhatsApp. A mesma lei também traz punições para casos de divulgação de informações inverídicas e o Código Penal criminaliza casos de injúria, calúnia e difamação. O que precisamos é que este extenso marco normativo seja efetivamente aplicado pela Justiça – algo que não ocorreu nessas eleições.

Outra medida é garantir o cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados, aprovada em 2018, com a criação de uma autoridade independente para fiscalizar empresas e poder público no tratamento de dados. A implementação efetiva da LGPD será fundamental para evitar a produção e distribuição individualizada e industrializada de conteúdos para grupos de eleitores nas próximas eleições.

Por fim, outra medida benéfica seria garantir o acesso pleno à Internet ao conjunto da população brasileira. Hoje, com os chamados pacotes tarifa-zero (zero rating) que privilegiam aplicativos como o WhatsApp e o Facebook, parcela significativa dos cidadãos, sobretudo os mais pobres, possuem acesso limitado à informação.

No Brasil, nas classes DE, 80% dos indivíduos têm acesso à Internet somente pelo telefone celular (TIC Domicílios 2017), em planos com pacotes de dados baixíssimos, que impedem checar e comparar conteúdos recebidos nessas plataformas com outras fontes de dados.

Enfim, a um sistema de mídia altamente concentrado em conglomerados da imprensa tradicional, somam-se agora os monopólios digitais, trazendo novos desafios para o combate à desinformação, que tanto ameaça a democracia brasileira.

Promessa de pluralidade e liberdade de expressão, a Internet não pode ser transformada num espaço dominado por quem possui mais recursos e ferramentas para distorcer o debate público. Ou enfrentamos democraticamente essa questão agora ou o risco de tudo se repetir em dois anos só aumentará.

 

 

 

Fonte: Congressos em Foco