O mundo está em crise, e os Estados Unidos só estão tornando a situação ainda pior: essa é, em resumo, a conclusão do relatório apresentado nesta segunda-feira (11/02) pela Conferência de Segurança de Munique (MSC), pouco antes do início do evento anual que reúne representantes das maiores potências mundiais na capital da Baviera.
Na edição deste ano deverão estar presentes o vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, o ministro russo do Exterior, Serguei Lavrov, e a chanceler federal da Alemanha, Angela Merkel.
“Uma nova era de grandes disputas de poder está se desenrolando entre Estados Unidos, China e Rússia, acompanhada de certo vácuo de liderança naquilo que se tornou conhecido como a ordem liberal internacional”, escreveu na introdução do relatório o chefe da MSC, Wolfgang Ischinger, um veterano diplomata e ex-embaixador da Alemanha nos EUA.
Ao menos uma das fontes dessa instabilidade está clara: o governo do presidente americano, Donald Trump, demonstra pouco interesse em preservar acordos internacionais. Suas declarações no Twitter costumam questionar abertamente instituições como a Otan e a ONU. Pior ainda: sob Trump, os EUA parecem prontos para abrir mão de seu papel de potência líder no que se costuma chamar de “o mundo livre”.
Em Munique, Ischinger disse que queria mencionar primeiramente a “boa notícia”: apesar de muitos “pontos de interrogação” no que diz respeito às relações transatlânticas, ele considera um sinal extremamente positivo que um número duas ou três vezes maior de parlamentares americanos deverá comparecer à conferência deste ano.
Ele ressaltou, em particular, a presença da líder democrata na Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, e do senador e ex-candidato à presidência pelo Partido Republicano Mitt Romney
O relatório acusa Trump de demonstrar um “entusiasmo irritante em relação aos autocratas de todo o globo”, sugerindo que seu governo estaria vivendo num mundo “pós-direitos humanos”. Segundo o documento, isso acabaria por minar o declarado esforço americano de liderar as “nações nobres do mundo na construção de uma nova ordem liberal”, como disse em dezembro o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, e de se opor aos poderes autoritários.
“Para os aliados transatlânticos de longa data, é difícil de engolir quando Trump elogia líderes não liberais, do Brasil às Filipinas”, diz o relatório.
“Documentos estratégicos dos EUA destacam a China e a Rússia como seus dois maiores concorrentes”, afirma o texto, ao observar que a rivalidade entre esses três países se apresenta de maneiras diferentes. O conflito entre Washington e Pequim está centrado principalmente nas questões econômicas e comerciais, enquanto Rússia e China se veem como uma aliança de autocracias contra o Ocidente, ainda que permaneçam em uma concorrência geopolítica entre si.
A rivalidade EUA-Rússia, por outro lado, continua permeada por acusações e contra-acusações sobre questões envolvendo armamentos. A Conferência de Munique enxerga poucas perspectivas de que isso possa melhorar em breve. Após o cancelamento do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF), outras medidas para o controle de armas estão agora sob ameaça, avalia o relatório. “Parece pouco provável que possam renovar o tratado New START sobre armas nucleares estratégicas para além de 2021, quando ele deverá expirar”, diz o documento.
Ano decisivo para a Europa
E o que dizer da Europa, que aparenta desempenhar um papel estratégico cada vez menor nessas deliberações? “A União Europeia está particularmente mal preparada para uma nova era de grande disputa de poder”, diz o relatório. Isso fica claro com o novo debate sobre a “autonomia estratégica” da Europa, no qual não parece haver um plano B para como o continente poderá se emancipar em termos de políticas globais de segurança.
Ischinger disse que 2019 deverá ser um ano decisivo para a UE, especialmente em razão das eleições para o Parlamento Europeu em maio e da nomeação do novo presidente do Banco Central Europeu em outubro. Por isso, segundo o diplomata, é importante que a conferência deste ano demonstre aos participantes não europeus que “a UE está preparada para lutar por seus interesses através da autoafirmação”.
O relatório afirma que o mundo deve se preparar para um “novo interregno” – um período onde há ausência de liderança – no qual os defensores restantes dos valores liberais tentarão navegar da melhor forma possível por um período de incertezas e instabilidade. “Alguns dos postulantes ao papel cada vez maior de guardiões da ordem liberal são engajados, mas incapazes; outros são ao menos moderadamente capazes, mas não desejam ou não conseguem levar suas capacidades adiante”, diz o relatório.
Uma consequência desse período de transição seria a abertura de possibilidades para as chamadas nações do segundo plano, como Canadá, Japão e o Reino Unido, para qual o relatório dedica um capítulo à parte. Enquanto os britânicos foram essenciais para a formação da ordem liberal do pós-Guerra e ainda possuem grande cacife geopolítico como membros do Conselho de Segurança da ONU, as consequências imprevisíveis de sua saída do bloco europeu deixam o país em uma posição inédita.
“O que ficou claro, porém, é que os procedimentos do Brexit continuarão a criar feridas em ambos os lados do Canal [da Mancha] durante anos a fio”, diz o relatório, apesar das repetidas manifestações de Londres, Paris e Berlim de que essas potências continuarão a trabalhar juntas.
“Quem assumirá as responsabilidades? Há potências capazes de assumir essas responsabilidades? A UE também pode desempenhar algum papel ou é fraca demais? E, se for, quem então poderá fazê-lo?”, pergunta Ischinger. “Ou apenas vamos deixar acontecer: que a ordem liberal internacional, baseada nas instituições, nas regras e na lei, se desmantele, peça por peça? Para os interesses alemães e europeus, isso seria algo trágico, um desenvolvimento catastrófico.”
Aliança de multilateralistas
Em mensagem de vídeo antes de sua participação na conferência, Merkel disse que quer trabalhar para manter as instituições internacionais, o que, segundo diz, seria tão importante agora como foi durante a Guerra Fria.
Merkel afirmou que a Alemanha apoia a ordem liberal internacional, um sentimento reforçado por seu ministro do Exterior, Heiko Maas, que recentemente clamou pela criação de uma “aliança de multilateralistas”. As dificuldades para tal, porém, já ficaram evidentes com a disputa entre a Alemanha e a França, parceiros estratégicos, sobre o gasoduto Nord Stream 2, planejado para ligar a Rússia ao território alemão.
Uma nova pesquisa realizada pela Fundação Friedrich Ebert revelou que apenas 42% dos franceses, em contraste com 59% dos alemães, acreditam que seu país deve permanece neutro em questões internacionais. Da mesma forma, um número maior de alemães (65%, ante 50% dos franceses) rejeita o envolvimento de seu país em intervenções militares, algo que reflete as diferenças políticas e culturais entre Berlim e Paris.
“A crise atual da parceria transatlântica é um desafio maior para a Alemanha do que para a França, que sempre perseguiu uma abordagem mais independente”, conclui o relatório. Entretanto, ainda não está claro de que modo essas diferenças podem ser superadas.
Parece improvável que possa haver progressos durante a Conferência de Segurança de Munique. Há poucos dias, o presidente francês, Emmanuel Macron, cancelou sua participação no evento em razão de problemas políticos em seu país.
Fonte: DW made for minds