Texto: Nielcem Fernandes
Edição: Brener Nunes
“Essa portaria é particularmente escandalosa, porque sacrifica quase 20 anos de construção de uma política de combate ao trabalho escravo, reconhecida e parabenizada pela comunidade internacional, pela ONU (Organização das Nações Unidas) e pela OIT (Organização Internacional do Trabalho). Política essa que já libertou 53 mil trabalhadores da escravidão no Brasil. Isso nada mais é do que a expressão do interesse dos setores do agronegócio, do setor ruralista e outros setores que são campeões da prática do trabalho escravo”, declarou à Gazeta, o vice-presidente da Comissão de Erradicação do Trabalho Escravo do Tocantins (COETRAE-TO) e representante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), Frei Xavier Plassat sobre a Portaria n° 1129 de 13/10/2017 do Ministro do Trabalho, publicada no Diário Oficial da União de 16/10/2017, que altera de forma significativa a fiscalização e a punição para quem mantém pessoas sobre as condições análogas ao trabalho escravo prevista no Código Penal.
De acordo com Frei Xavier, a bancada ruralista há anos vem tentando, por meio do Congresso, adotar uma redução da definição que caracteriza o trabalho escravo, a redução da efetividade da “Lista Suja” e uma redução dos recursos para fiscalização desse tipo de prática. “Eles têm projeto para mudar o conceito de trabalho escravo tentando inventar uma figura de trabalho escravo, que para ser identificada, exige praticamente que o trabalhador seja amarrado ou permaneça sob constante vigilância de uma escolta armada”, disse.
O representante da CPT explica que está sendo criada uma série de exigências para a identificação da prática que podem ser resumidas a violência armada e o cerceamento de liberdade de ir e ver. “O trabalhador pode estar vivendo nas condições mais degradantes, ter uma jornada exaustiva e até beber a mesma água dos animais. Se não houver vigilância armada ou violência, a portaria decreta que não há trabalho escravo. Isso vai contra a definição claríssima que existe no Código Penal brasileiro no Artigo 149 que diz que qualquer uma das quatro hipóteses citadas no mesmo como: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes e o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador é suficiente para caracterizar o trabalho escravo”.
Outro regresso inerente a Portaria diz respeito às exigências para o enquadramento dos casos de crime para possibilitar a inclusão na “lista suja” do empregador, a quem será assegurado o exercício do contraditório e da ampla defesa diante da conclusão da inspeção do governo. Na prática, a portaria dificulta a punição de flagrantes situações degradantes. “A portaria decretada pelo Ministério do trabalho, afirma que o resultado da autuação feita pelos fiscais do trabalho só será válida para efeito de inclusão na “lista suja” para efeito de pagamento de seguro desemprego se vier junto um Boletim de Ocorrência (B.O) feito por um policial atestando comprovação da prática de trabalho escravo, como se fosse da competência de um policial essa determinação. Essa competência cabe exclusivamente a instância da fiscalização do trabalho que é protegida por normas internacionais que o Brasil assinou junto a OIT, garantindo a independência e autonomia dessa função”, ressaltou Frei Xavier.
Especialistas dizem que qualquer mudança teria de ser feita por lei, não via portaria, para Frei Xavier, a portaria viola a Lei Penal brasileira, das convenções internacionais e do princípio constitucional da autonomia dos poderes.
Comissão Pastoral da Terra, através de sua Campanha de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo, e a Comissão Episcopal Pastoral Especial de Enfrentamento ao Tráfico Humano da CNBB, se manifestaram por meio de uma Nota Pública divulgada no site oficial da CPT.
Confira a Nota na íntegra:
Quatro dias depois de defenestrar o chefe do combate nacional ao trabalho escravo (André Roston, chefe da DETRAE), o Ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, publicada no Diário Oficial da União de hoje, 16/10/2017, Portaria de sua autoria (n° 1129 de 13/10/2017) que, literalmente “acaba” com o trabalho escravo no Brasil.
A Portaria, numa canetada só, elimina os principais entraves ao livre exercício do trabalho escravo contemporâneo tais quais estabelecidos por leis, normas e portarias anteriores, ficando como saldo final o seguinte:
Flagrante de trabalho escravo só poderá acontecer doravante se – e unicamente se – houver constatação do impedimento de ir e vir imposto ao trabalhador, em ambiente de coação, ameaça, violência.
Para conseguir este resultado – há muito tempo tentado pela via legislativa, mas ainda sem o sucesso exigido pelos lobbies escravagistas – bastou distorcer o sentido de expressões e termos há muito tempo consagrados na prática da inspeção do trabalho e na jurisprudência dos tribunais.
Exemplificando, no lugar de ser simplesmente eliminadas dos qualificadores do trabalho escravo contemporâneo, a jornada exaustiva e as condições degradantes recebem na nova Portaria uma esdrúxula reformulação assim redigida:
Jornada exaustiva: “submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais”.
Condição degradante: “caracterizada por atos comissivos de violação dos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, consubstanciados no cerceamento da liberdade ir e vir… e que impliquem na privação de sua dignidade”.
Condição análoga à de escravo: “trabalho sob ameaça de punição, com uso de coação”; “cerceamento de qualquer meio de transporte”; “manutenção de segurança armada com o fim de reter o trabalhador em razão de dívida contraída”.
Simultaneamente impõe-se aos auditores fiscais do trabalho um elenco de exigências e rotinas visando a tornar, no mínimo, improvável o andamento administrativo dos autos de infração que eles se atreverem a lavrar ao se depararem com situações de trabalho análogo à de escravo. Óbvio, esse engessamento tem um endereço certo: inviabilizar a inclusão de eventual escravagista na Lista Suja, ela também re-triturada pela caneta do Ministro e sua divulgação doravante sujeita à sua exclusiva avaliação.
Na oportunidade estabelece a Portaria que os autos de infração relacionados a flagrante de trabalho escravo só terão validade se juntado um boletim de ocorrência lavrado por autoridade policial que tenha participado da fiscalização, condicionando assim a constatação de trabalho escravo, atualmente competência exclusiva dos fiscais do trabalho, à anuência de policiais.
Sem consulta nenhuma ao Ministério dos Direitos Humanos, outro signatário da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH n°4 de 11/05/2016, o Ministro do Trabalho rasga seus artigos 2 (al.5), 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 e resolve excluir o Ministério Público do Trabalho da competência para celebrar eventual Termo de Ajuste de Conduta com empregadores em risco de serem incluídos na Lista Suja, deixando esse monopólio ao MTE em conjunção com a AGU.
É falácia a alegação subjacente à Portaria de que os empregadores alvos de flagrante por trabalho escravo estariam desprotegidos. Foi exatamente objeto da Portaria Interministerial hoje rasgada definir mecanismos transparentes e equilibrados, por sinal referendados pela própria Presidente do Supremo Tribunal Federal.
A força do conceito legal brasileiro de trabalho escravo, construído a duras custas até chegar à formulação moderna do artigo 149 do Código Penal, internacionalmente reconhecida, é de concentrar a caracterização do trabalho escravo na negação da dignidade da pessoa do trabalhador ou da trabalhadora, fazendo dela uma “coisa”, fosse ela presa ou não. É por demais evidente que a única e exclusiva preocupação do Ministro do Trabalho nesta suja empreitada é oferecer a um certo empresariado descompromissado com a trabalho decente um salvo-conduto para lucrar sem limite.
16 de outubro de 2017
Comissão Pastoral da Terra – Campanha Nacional de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo “De Olho Aberto para não Virar Escravo”
Comissão Episcopal Pastoral Especial de Enfrentamento ao Tráfico Humano da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)