Um menino negro, na beira do mar, admira de olho grande e boca aberta os fogos da virada do ano na praia de Copacabana. Está aparentemente sozinho, veste uma bermuda molhada, com os pulsos entrelaçados na altura do umbigo, enquanto em outro plano, na areia, a massa vestida de branco comemora a entrada de 2018. Alguns dão as costas ao menino, ao mar e aos fogos para tirar suas selfies, e outros comemoram absortos o espetáculo. A imagem em preto e branco, tirada pelo fotógrafo Lucas Landau para agência Reuters, está tomando as redes sociais de milhares de brasileiros com infinidade de legendas diferentes. A fotografia fala de um menino negro de nove anos numa praia durante uma festa, mas, vista a repercussão, fala também de como a interpretamos.
Os primeiros compartilhamentos da foto, que originalmente foi enviada em cores à agência, viram nela da “invisibilidade do nosso cotidiano” à “imagem da exclusão social”. Muitos enxergaram um menino perdido, pobre, assustado, sendo ignorado pela massa branca. Viu-se até a imagem das “consequências do golpe” e foi um “soco no estômago” de outros tantos. “Essa é a nossa humanidade hipócrita”, “que essa imagem sirva de reflexão para o que podemos ser em 2018: mais sensíveis, mais tolerantes, mais inclusivos”, “de um lado o encanto. Do outro a indiferença”, legendavam os internautas. Houve também quem, fugindo da interpretação racial, viu a autenticidade de uma criança curtindo o espetáculo enquanto os adultos davam as costas à pirotecnia para tirar seu melhor autorretrato. E também quem aproveitou a imagem e criou memes exaltando pautas da esquerda.
Enquanto a foto viralizava, ativistas do movimento negro lançavam uma outra questão: enxergaríamos essa foto da mesma maneira se o protagonista fosse um menino branco e loiro?
“O problema não é a foto, é a interpretação dela, do seu contexto. As pessoas que olham aquela foto estão pré-condicionadas a entender que a imagem de uma pessoa negra é associada a pobreza e abandono, quando na verdade é só uma criança negra na praia. Essa precondição é racismo estrutural, que vem da má educação do povo brasileiro sobre ele mesmo”, lamenta o escritor Anderson França.
França vê nesta foto o “fetichismo do preto, assim como há fetichismo pelo nazismo, fetichismo pelo oprimido assim como há fetiche pelo opressor”. “Usamos o discurso incoerente de que estamos preocupados com a dor dele, mas na verdade nós sentimos prazer. Por isso nós escrevemos embaixo da foto textos enormes elucubrando sobre o abandono daquele menor, quem possivelmente seria o pai ou a mãe, por que ele fugiu, por que ele passa fome… Nós fetichizamos o sujeito. E ainda há quem queira um souvenir: comprar a foto. Mas não estão comprando a foto, estão comprando o que pensam sobre a foto”.
Sob o apelo “Parem com os estereótipos de crianças negras”, Mayara Assunção, do Coletivo Kianda, um grupo de mulheres negras que discute maternidade, arte, educação e cultura, escrevia: “Eu vejo uma criança que parou para olhar a queima de fogos no meio de uma festa. Sinceramente, nós temos que parar de achar que todo menino negro e sem camisa está abandonado, triste, sozinho, infeliz e contrastando com a felicidade dos outros. Temos que parar de achar que todo menino sozinho é criança que vive em situação de rua. Temos que parar de achar um monte de coisas. Inclusive, que é legal expor nossas crianças para a branquitude começar o ano com pena e compaixão de nós. Ah, por favor né, a gente tem essa mania horrível de reforçar os estereótipos de nossas crianças: ‘Que pena!’, ‘É o retrato do Brasil!’, ‘Imagem muito impactante, reforça as desigualdades do país’. Parem! Vocês nem sabem quem é aquele menino. E vocês não querem saber também. Para 2018, menos estereótipos para crianças negras por favor.”
Suzane Jardim, educadora e historiadora e cuja reflexão sobre a repercussão da imagem foi compartilhada mais de mil vezes, sustenta que “a questão é perceber como o corpo negro deixa de ser dotado de individualidade para se tornar um símbolo que dialoga com a culpa de pessoas que o percebem como inferior na primeira olhada”. E alerta: “Não há na imagem qualquer indicação de status social, precariedade ou abandono. Há uma criança sem camisa no mar observando fogos de artifícios maravilhada em uma imagem que de fato é bela, mas nada diz sobre questões sóciopolíticas”. Para Jardim “dar a essa imagem esse caráter de ‘retrato da desigualdade’ é presumir pela corporeidade do sujeito (no caso criança, negra, sem camisa) que ali há precariedade e sofrimento, o que só pode acontecer em uma sociedade que liga a negritude a esses elementos”.
O fotografo, que preferiu não ampliar o debate com a reportagem até encontrar a família da criança, não sabe o nome do menino. Nem se estava sozinho. Nem se era do Rio. Nem se mora num condomínio de luxo ou numa favela. “Eu estava a trabalho fotografando as pessoas assistindo aos fogos em Copacabana. Ele estava lá, como outras pessoas, encantado. Perguntei a idade (9) e o nome, mas não ouvi por causa do barulho. Como ele estava dentro do mar (que estava gelado), acabou ficando distante das pessoas. Não sei se estava sozinho ou com a família”, disse Landau em seu perfil de Facebook. A fotografia, como completou Landau, abre margem para várias interpretações. “Todas legítimas, ao meu ver. Existe uma verdade, mas nem eu sei qual é”. O fotógrafo foi criticado por expor a criança sem o consentimento dos pais e oferecer seu e-mail a quem se interessou em comprar a fotografia. Landau nega: “Nada foi comercializado por mim, e nem será, sem a autorização da criança e dos responsáveis”.
Pessoas virando as costas para a pobreza ou apenas uma criança?
A complexidade do debate que uma única foto alimentou se explica pela situação atual do país, segundo o psicanalista Tales Ab’Saber, autor do livro Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica. “A foto tem uma vida própria. O movimento negro se inquieta com o clichê e a redução do papel do negro e a esquerda branca –e negra– vê nessa imagem o risco da cisão social brasileira, num tempo em que isso está de volta na pauta política. Vê pessoas festejando a vida e virando as costas para a pobreza, para nossa realidade”, explica Ab’Saber. “São duas correntes progressistas diferentes olhando em níveis diferentes, e a imagem fala das duas. As duas questões importam, não são excludentes”.
O fotógrafo e jornalista Fernando Costa Netto, proprietário da Doc Galeria de fotojornalismo e fotografia documental, enxerga o poder da imagem, “a fotografia com capacidade para mudar a vida de uma pessoa”. “É a fotografia derrubando presidentes, denunciando superlotação em hospitais, documentando as barbaridades das guerras ou mostrando o que a gente já sabe, o abismo entre os de branco e o pequeno sem camisa nessa foto do Lucas. Mesmo que a foto aponte outra coisa quando encontrarem o menino, o Brasil está muito bem espelhado pela foto em Copacabana”, avalia Netto. “Nós estamos aqui discutindo a força e o papel da fotografia, preconceito, o réveillon no Rio, a estética, a emoção, o documento, questionando… A fotografia está cumprindo o papel”.
Por Maria Martín
Fonte: El País