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A polêmica do Fundo Eleitoral: regra contraditória permite gasto maior para vereador do que para deputado federal

Apesar de a polêmica em torno do valor total do Fundo Eleitoral para a disputa municipal de 2020 ter ganhado destaque, especialistas da área apontam que outras questões deveriam chamar a atenção da população. Entre as críticas estão a falta de transparência e as regras contraditórias, que permitem, por exemplo, um gasto maior na campanha para vereador neste ano do que para deputado federal em 2018.

“Os tetos de gastos das eleições de 2020 são relativamente altos. Por exemplo, na cidade de São Paulo, um candidato a vereador vai poder gastar mais do que um deputado na eleição passada. Isso aumenta a demanda por dinheiro de todo mundo. Seria muito melhor se a gente tivesse um teto inferior à campanha de deputado, afinal a campanha de deputado acontece em todo o estado e a de vereador só no município”, afirmou ao HuffPost Brasil a professora Lara Mesquita, pesquisadora do Centro de Política e Economia do Setor Público da FGV (Fundação Getulio Vargas).

Em 2018, um candidato a deputado federal poderia gastar até R$ 2,4 milhões. Em 2020, o teto varia de acordo com o número de eleitores dos municípios, com base nos valores de 2016, corrigidos pela inflação. Em São Paulo, um candidato a vereador na última disputa podia gastar até R$ 3,2 milhões.

De acordo com a especialista, que participou de reuniões com integrantes do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) em 2019, “a Justiça eleitoral está constantemente buscando aprimorar seus mecanismos, mas não basta a população pressionar contra o aumento do Fundo Eleitoral”. “Tem que pressionar a Justiça. Tem contas de campanhas sendo julgadas anos depois da eleição, às vezes depois de o candidato cumprir o mandato e concorrer a outro cargo”, completa Mesquita.

O Congresso Nacional aprovou em 17 de dezembro a Lei Orçamentária Anual para 2020, com reserva de R$ 2 bilhões para o Fundo Eleitoral. No total, os partidos devem ter em torno de R$ 3 bilhões em recursos públicos, ao somar o Fundo Eleitoral com o Fundo Partidário. A forma de prestação de contas das campanhas e das siglas, contudo, é diferente. 

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Transparência do dinheiro dos partidos

Desde 2016, os candidatos precisam preencher, no sistema da Justiça Eleitoral, informações sobre o recebimento de recursos ou a realização de despesas em até 72 horas. Esses dados são publicados imediatamente e podem ser acessados pela população. 

As contas partidárias, por sua vez, são informadas só uma vez ao ano. Só em setembro de 2019 que foi possível conhecer os dados de movimentação de dinheiro nos partidos em 2018, por exemplo.

Em 2019, o Movimento Transparência Partidária propôs ao TSE que houvesse um tratamento semelhante tanto para contas partidárias quanto para eleitorais. Foi sugerido um prazo mensal. “Já existe uma determinação para entidades bancárias enviarem todos os meses os extratos dos partidos para a Justiça Eleitoral”, afirmou à reportagem o cientista político Marcelo Issa, fundador do movimento.

“Só com informações atualizadas a gente consegue identificar, de maneira a evitar risco de prescrição, qualquer indício de irregularidade. Por exemplo, no ano passado, só foi possível a identificação das candidaturas laranja porque as contas eleitorais são mais transparentes”, acrescenta.

O TSE  divulgou uma minuta de resolução que prevê a divulgação em tempo real, mas sem prazo para os partidos apresentarem as informações. “Essa previsão genérica de tempo real teria pouco impacto na prática sem a previsão desse prazo para alimentação do sistema ou para apresentação das contas”, afirma Issa.

“Ou seja, mantendo o prazo de uma vez ao ano, o que deve ocorrer é a alimentação do sistema seguir uma vez ao ano e termos a publicação logo na sequência – mas não teremos a possibilidade de acompanhar ao longo do ano como os partidos estão usando os recursos.”

Resoluções do TSE estabelecem que financiamento de campanhas femininas em 2020 deve ser proporcional ao número de candidatas.

Quanto gastar em campanhas eleitorais?

O debate em torno de quanto se deve gastar com campanhas eleitorais ganhou força com o fim das doações empresariais, decidido pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 2015. A decisão foi vista como uma tentativa de evitar relações de corrupção entre empresas e políticos, expostas pela Operação Lava Jato.

Como resposta, o Congresso criou, em 2017, o Fundo Eleitoral. Em 2018, foram destinados R$ 1,7 bilhão e concorreram 28.216 candidatos aos cargos de presidente, governador, senador, deputado federal e estadual/distrital.

Defensores do aumento do Fundo Eleitoral em 2020 alegam que a disputa municipal conta com muito mais participantes. Em 2016, 16.565 candidatos concorreram ao cargo de prefeito nas 5.568 cidades. Para as 57.958 vagas de vereador, foram 463.375 candidatos.

“Caso [o valor total] fosse distribuído igualmente, daria algo em torno de R$ 7 mil por candidato. Não é um valor absurdo desse ponto de vista, mas o fundamental é que tenha transparência para que a gente possa avaliar se esses gastos são condizentes com a finalidade de uma campanha eleitoral”, diz o fundador do Transparência Partidária. “Agora, do nosso ponto de vista, sempre deve estar presente o norte da redução dos custos de campanha”, completa Issa.

O Fundo Eleitoral não é dividido igualitariamente entre todos candidatos. O TSE estabelece critérios de repartição para os partidos – incluindo o número de parlamentares na Câmara e no Senado, por exemplo – e cada sigla repassa os recursos para os candidatos de acordo com estratégias políticas.

Emendas parlamentares

Em 2019, o Congresso decidiu que os recursos públicos para campanha não precisam sair do montante de emendas parlamentares. Eles podem vir de outras fontes – por isso, um aumento desse montante poderia resultar em menos dinheiro para áreas como saúde e educação, por exemplo.

As emendas são um mecanismo que permite o deputado destinar dinheiro para ações específicas em seu estado. “Alguns deputados podem querer fazer um uso clientelístico das emendas, mas elas não precisam ser isso, e a gente não tem indícios de que elas, em sua maioria, cumpram esse papel”, afirma Lara Mesquita, da FGV. “Tem várias pesquisas acadêmicas que não apontam, de maneira generalizada, as emendas com papel clientelista ou de compra de voto. É difícil falar se era melhor quando saía das emendas.” 

Para a pesquisadora, é preciso conciliar a grave crise econômica e fiscal pela qual o País passa com o financiamento da democracia. “Se a gente vai fazer sacrifícios na saúde, educação, investimento em infraestrutura, por que políticos deveriam poder fazer eleições livres de qualquer constrangimento financeiro?”, questiona.

Mesquita também aponta entraves para a cultura da doação da pessoa física no Brasil. “Mesmo entre os partidos políticos, faz mais sentido se esforçar para ganhar uma grande doação de um empresário do que pedir pequenas doações para profissionais liberais, pessoas que recebem um, dois, três salários mínimos. Em 2018 os grandes doadores individuais foram grandes empresários. Isso não ajuda a criar uma cultura em que a sociedade inteira contribua”, ressalta.

O Congresso aprovou uma reserva R$ 2 bilhões para o Fundo Eleitoral em 2020. No total, os partidos devem ter em torno de R$ 3 bilhões em recursos públicos, somados o Fundo Eleitoral e o Fundo Partidário.

Brecha para caixa dois

Em 2019, os parlamentares também afrouxaram as regras de prestação de contas em uma minirreforma partidária. Uma das alterações é a possibilidade de usar o dinheiro para assessoria, consultoria e advogados, sem limites e com prestação de contas paralela, o que abre brecha para prática de caixa dois.

“Essa alteração na lei segue a linha geral que a gente vem observando desde que a Lei dos Partidos e a Lei das Eleições foram promulgadas em 1995, 1996. Todas as alterações de lá para cá são sempre nessa linha de diminuir sanções aplicáveis”, afirma Marcelo Issa. “A legislação só vai ser alterada se houver de fato bastante mobilização e engajamento da população porque são questões que afetam diretamente interesses dos parlamentares, dos partidos.”

Tecnologia na Justiça Eleitoral

Uma melhora na contabilidade eleitoral é vista como essencial pela Transparência Partidária. “A gente tem até um paradoxo, porque a Justiça Eleitoral tem um sistema muito avançado de urnas eletrônicas e contabilização dos votos, mas para auditoria e fiscalização, o nível de tecnologia ainda é muito baixo”, aponta Issa.

O cientista político também compara a situação com o funcionamento da Receita Federal. “São mais de 25 milhões de declarações de imposto de renda todos os anos e a Receita consegue identificar a maior parte de irregularidades porque tem tecnologia envolvida. São feitos cruzamentos rapidamente. Na Justiça Eleitoral, são 30 e poucos partidos e, a cada dois anos, milhares de candidaturas”, diz.

Em 2018, a Transparência Partidária desenvolveu um sistema que poderia disparar alertas quando ocorressem situações em que há suspeita de candidaturas laranja, por exemplo. Esse modelo foi apresentado ao TSE, que informou não ter um mecanismo similar. A área técnica da corte, contudo, tem trabalhado nesse sentido.

“São mais de 25 milhões de declarações de imposto de renda todos os anos e a Receita consegue identificar a maior parte de irregularidades. Na Justiça Eleitoral são 30 e poucos partidos e, a cada dois anos, milhares de candidaturas”, afirma Marcelo Issa, do Transparência Partidária.

Campanha de graça

Outra sugestão dada pelos especialistas é a Justiça Eleitoral esclarecer, por meio de campanhas para a população, algumas questões, como a prestação de serviços de forma gratuita para candidatos. “Devia deixar muito claro o que é irregular. Se você disponibiliza seu tempo para distribuir santinho de candidato no metrô, isso é uma doação. Você está doando através da sua hora de trabalho e isso deveria ser declarado. Assim como quando você cede uma sala comercial, a sua casa ou um carro [para campanha]”, ressalta Lara Mesquita.

No caso de “santinhos”, por exemplo, todo material de campanha eleitoral impresso deve conter o número de inscrição no CNPJ ou o número de inscrição no CPF do responsável pela confecção e de quem a contratou, além da tiragem e das dimensões do produto, de acordo com a Lei 9.504/1997.

Nesse caso, um eleitor que queira contribuir legalmente teria de doar dinheiro para a campanha ou produzir os santinhos como pessoa física, pegar a nota e formalizar a doação do material no valor da nota, conforme os limites legais de doação de pessoa física. Em 2018, esse teto era de 10% dos rendimentos brutos no ano anterior ao pleito.

A resolução de 2014 do TSE prevê que, “qualquer eleitor poderá realizar pessoalmente gastos totais até o valor de R$ 1.064,10 não sujeitos à contabilização, desde que não reembolsados, hipótese em que o documento fiscal deverá ser emitido em nome do eleitor”, mas que “bens e serviços entregues ou prestados ao candidato” caracterizam doação e estão sujeitos às normas de declaração.

Dinheiro para mulheres e limites para o autofinanciamento 

Entre as novidades para as eleições de 2020 apontadas como positivas está o limite do autofinanciamento, que deve reduzir a vantagem de candidatos muito ricos. O teto é de 10% do máximo para a campanha do cargo ao qual o candidato concorre. 

Outra mudança é que os recursos públicos destinados a candidaturas femininas terão de ser proporcionais ao número de mulheres na disputa, conforme estabelecido em resoluções do TSE. A regra vale tanto para o Fundo Eleitoral quanto para o Fundo Partidário. 

Desde 2018,  é obrigatório que ao menos 30% do Fundo Eleitoral vá para mulheres na disputa eleitoral, mesmo patamar mínimo de candidaturas. Agora, o valor precisará ser proporcional. Se houver 40% de candidatas mulheres, por exemplo, 40% do dinheiro irá para elas. 

As iniciativas são parte de um caminho de consolidação de ações da Justiça Eleitoral para promover a equidade de gênero na política. As mulheres são 52% do eleitorado brasileiro, mas quando se mede a presença nos cargos de poder, os números são bem menores. Elas são 15% dos deputados federais e dos senadores e 14% dos vereadores. No Executivo, apenas um estado é governado por uma mulher e elas estão à frente de 12% dos municípios.

A expectativa é de que a participação feminina na política cresça em 2020. Em 2016, foram eleitas 649 prefeitas em 5.568 municípios. No mesmo ano, dos 57.419 vereadores que ganharam as eleições, 7.809 eram mulheres, o que equivale a 13,6% do total.

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