Ícone do site Gazeta do Cerrado

Antropólogo analisa documentário “Romana”, de Helen Lopes

“Romana”, de Helen Lopes

Por Diogo Bonadiman Goltara

Helen Lopes, diretor do documentário e Marco Aurélio Jacob, diretor de fotografia. Foto Maria José Cotrim

Estreou no dia 07 de junho o documentário “Romana” (24min), do diretor Helen Lopes. Quem compareceu à sala de cinema do Sesc Palmas pôde ver as belas cenas em preto e branco da mestra de Natividade serem exibidas em uma casa lotada. Lopes e sua equipe demonstram que não é preciso dispor de muitos recursos financeiros para a produção audiovisual de qualidade, mas apenas a sensibilidade e a disposição para deixarem-se afetar por aquilo que documentam.

Pré Estréia no Cinema do Sesc Palmas, Tocantins

Durante o debate que aconteceu logo após a exibição do documentário, Lopes afirmou que tudo o que imaginava estruturar um provável roteiro foi deitado por terra ao ser confrontado com o que a mestra tinha a dizer para a câmera. “O que eu imaginava ser importante não fazia sentido para Dona Romana; as questões que ela nos colocava tornaram-se mais relevantes do que as nossas”. Com efeito, essa disposição para o diálogo é algo que sobressai no documentário.

Helen Lopes, o sociólogo Marcelo Brice e o antropólogo Diogo Goltara.

Dona Romana é mestra curadora em Natividade. Todas as suas atividades são realizadas em parceria com uma trindade de entidades espirituais, os “Três Curadores”, de quem ela recebeu uma missão de contenção de catástrofes social e cosmológica. Se por um lado ela cuida da saúde humana, por outro, seus rituais estão diretamente ligados às relações entre os planetas, responsáveis pelo equilíbrio total do universo, manifestando-se, por exemplo, na planta do seu santuário. Essa rede intrincada de ressonâncias nos leva a pensar em Pitágoras e seus experimentos com a acústica, que resultaram na teoria da “música das esferas”, uma espécie de harmonia cósmica da qual as relações constantes entre os harmônicos – componentes de qualquer som existente – não seriam mais do que a manifestação de relações presentes em toda a natureza. Para essa visão de mundo, o universo toca uma música, mesmo que não seja audível para nós.

Dona Romana. Foto Marco Aurélio Jacob

A missão de Dona Romana é nesse mesmo sentido reintegradora. De uma maneira impressionante, ela conecta seu santuário em Natividade a outros pontos do planeta. Mas além disso, há também uma conexão intensa entre a natureza e o humano. E parece que aqui está a sua maior subversão. Pois sabemos que as agruras atuais do meio ambiente – que caminha para uma catástrofe causada pelo ser humano – só é possível porque a visão de mundo eurocêntrica que é hegemônica em nossos circuitos de saber nos deslocou suficientemente do nosso meio a ponto de, por exemplo, sermos capazes de olhar para o cerrado, um dos maiores e mais importantes biomas do mundo, e ver apenas “fronteira agrícola”. Mais do que tudo, o filme explora a erudição de Dona Romana – filosofia, antropologia, física, poesia, artes plásticas, todos esses conhecimentos reunidos –, prova de um conhecimento que existe e resiste para salvar o mundo.

É possível identificar dois tipos recorrentes de tratamento das vozes nos documentários. Um deles é aquele que, procurando ratificar uma tese já pronta, utiliza imagens e falas como exemplos do argumento do diretor. Nesse caso, o conteúdo é, do seu ponto de vista, esotérico. Outro tipo é aquele que supõe retratar nos enquadramentos do écran a realidade “tal como ela é”, caso que poderíamos designar como exotérico. Em última análise, as duas tendências lidam com um conceito semelhante de verdade, que na verdade não é outra coisa senão a voz hegemônica do diretor. No estilo de representação que chamo de esotérico, a produção não procura esconder esse fato. Já na representação exotérica, a voz hegemônica é menos evidente, mas está lá, tanto ou mais pungente que no modo esotérico. E justamente por estar “escondida”, ela pode ser mais maléfica para a democracia das vozes. Quando se toma uma imagem como a verdade de um fato, estamos acreditando que uma versão – a do diretor – é a versão verdadeira. E a versão daquelas, daqueles ou daquilo que se representa?

E a tese de Dona Romana? Felizmente, o meio audiovisual é democrático. Sabe-se que existem impérios e que grandes e onerosas produções acabam se atrelando de um modo ou de outro à visão de mundo das empresas financiadoras (e é exatamente por isso que o financiamento público do audiovisual é importante). No entanto, o acesso à tecnologia e o desejo criativo de artistas dos mais diversos contextos socioculturais têm pluralizado de modo nunca antes visto o audiovisual. E é aqui que eu gostaria de situar “Romana”, destacando alguns aspectos do equilíbrio das vozes do diretor – metaforicamente no que se refere às suas tomadas de decisão – e de Dona Romana.

Inicio pela técnica, que está às mãos de Lopes para produzir esse efeito de dinamitar a sua própria voz e abrir o espaço a ser ocupado por Dona Romana. Vou me limitar à trilha sonora. É muito comum que documentaristas discordem do uso de som não original na produção de um filme desse tipo. No entanto, Lopes demonstra que, se bem utilizada, a música pode produzir um efeito benéfico. Enquanto Dona Romana conta sua história, ouvimos uma percussão simples e repetitiva. Esse som produz um efeito temporal muito interessante. Ao invés de impor camadas dramáticas, como geralmente acontece com a música tonal, cuja cadência depende de momentos de tensão e de relaxamento, impondo assim um ritmo dominante, a linha percussiva escolhida por Lopes promove uma sensação modal própria das músicas não ocidentais, pulso contínuo que se dobra sobre si mesmo sem retornar à mesma tônica, como em uma dança de repetições não coincidentes.

Fico tentado a dizer que dançam juntos o diretor e Dona Romana. A linha percussiva representa bem o posicionamento de Lopes. Ele não esconde atrás das lentes. Todavia, sua “presença” não abafa a de sua interlocutora. Fica claro que não se pretende “apresentar” Dona Romana por meio do filme, muito menos falar por ela, mas criar uma peça em parceria com ela. Nesse caso, é aqui que vejo o maior mérito do filme, que nas suas entrelinhas é uma intervenção a respeito do silenciamento das vozes socialmente dissonantes. O estado do Tocantins é repleto de mestras e mestres que, como Dona Romana, buscam resguardar um modo de vida sustentável e uma visão de mundo menos predatória. Em tempos e terras do agronegócio, tal visão instaura um modo de resistência necessário.

Acompanhe a entrevista com o Diretor neste link do facebook da Gazeta do Cerrado. 

Diogo Bonadiman Goltara é antropólogo e músico. Realiza pesquisa sobre religiosidade de matriz africana em comunidades remanescentes de quilombos no sul do Espírito Santo. É bolsista de pós-doutorado da UFES (CAPES/FAPES)

 

Sair da versão mobile