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Artigo: A luta centenária da Barra da Aroeira para o reconhecimento de direito

Quilombo Barra da Aroeira - Foto: Divulgação

Quilombo Barra da Aroeira – Foto: Divulgação

Em agosto de 2019, foi publicado no site oficial do Ministério Público Federal (MPF), que a Justiça determinou a demarcação das terras do Quilombo Barra da Aroeira, no Tocantins. No texto, o MPF anunciava que fora publicada, no dia 15 de julho, decisão da Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) que garante a regularização fundiária de terras ocupadas pela comunidade remanescente do Quilombo Barra da Aroeira. A apelação do Ministério Público Federal foi julgada procedente e o Incra teria o prazo de um ano para concluir a demarcação das terras quilombolas, sob pena de multa de R$ 1 mil em caso de descumprimento. Já estamos em fevereiro de 2021 e até o momento o Incra não cumpriu com a determinação.

É importante esclarecer para o leitor que, a questão quilombola passou a fazer parte da agenda política brasileira de forma mais contundente a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, quando os remanescentes de quilombos passaram a ter direitos às terras que ocupam. Mas mesmo com a garantia através do processo de reconhecimento pelo Incra, fundamentado na Constituição Federal, o Brasil vivencia, no atual momento, um forte avanço de políticas que colocam sob ameaça conquistas que se fazem presentes no cotidiano de povos e comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, entre outros) localizadas em todas as regiões do país.

Segundo a Constituição, as terras quilombolas são áreas retiradas do mercado depois de regularizadas e não podem ser comercializadas. Talvez seja esse o motivo de inúmeros questionamentos promovidos por grupos econômicos hegemônicos, alguns partidos políticos e outros segmentos da sociedade com relação ao reconhecimento dos direitos territoriais dessas comunidades.

No que diz respeito aos quilombolas, estão em curso discursos e medidas que visam deslegitimar a sua posse das “terras tradicionalmente ocupadas”, vistas como um empecilho para a exploração da terra por parte do agronegócio e implementação de grandes projetos, como a construção de hidrelétricas.

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O discurso encontra ressonância nas atitudes do presidente do Brasil (sem partido) eleito para o pleito de 2019/2022, Jair Bolsonaro, que em eventos oficiais como Chefe do Executivo Nacional, faz questão de ressaltar a sua política para com as populações tradicionais. No dia 10 de março de 2020, a Agência Reuters noticiou que em um evento em Miami (EUA), exclusivo para empresários americanos, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que não irá demarcar mais terras quilombolas no país, apesar dos 900 pedidos que existem hoje prontos para serem assinados, assim como não ampliará as demarcações de terras indígenas. De acordo com a agência o presidente disse que as demarcações de terras quilombolas foram uma invenção de governos de esquerda para “atrapalhar o Brasil”. O fato é que, segundo levantamento da Organização Terra de Direitos, com base em informações do Incra, a destinação de recursos públicos para a titulação de territórios quilombolas sofreu uma queda de mais de 97% nos últimos cinco anos.

Quilombo Barra da Aroeira – Foto: Divulgação

História

Quer saber por que a importância da titulação para a Comunidade Quilombola Barra da Aroeira? Porque garante a posse definitiva de um território que pertence à família dos Rodrigues há 150 anos. No Tocantins são 38 comunidades certificadas, dentre elas, a Comunidade Quilombola Barra da Aroeira, situada numa área de 62.315 hectares, localizada nos municípios de Lagoa do Tocantins, Novo Acordo e Santa Tereza do Tocantins, onde 174 famílias vivem da agropecuária e do extrativismo. Barra do Aroeira faz divisa com o corredor ecológico do Jalapão e sua origem data de 1871, quando Dom Pedro II presenteou com terras um negro combatente da guerra do Paraguai, Félix José Rodrigues.

Atualmente encontram-se na Comunidade Quilombola Barra da Aroeira, centenas de pessoas descendentes do patriarca Félix José Rodrigues, o qual lhes teria deixado um território de “12 léguas em quadra”, ou 79 mil e duzentos

hectares, no norte de Goiás (atual Estado do Tocantins), território este que teria sido recebido pelo patriarca, fruto de uma doação feita pelo imperador D. Pedro II, como recompensa pela sua participação na Guerra do Paraguai.

Durante 150 anos da doação da terra, os herdeiros de Félix Rodrigues foram sendo empurrados forçadamente e atualmente tem garantido como comunidade quilombola apenas 12% da área original, enquanto o restante foi ocupado por dezenas de fazendas. O sentimento de urgência para que a titulação se efetive também é compartilhado pela presidente da Associação Comunitária dos Quilombos de Barra de Aroeira, Maria de Fátima
Rodrigues, bisneta de Félix Rodrigues. “Estamos preocupados, precisamos de nosso título, pois esse governo que está aí não gosta de quilombo, para ele, nós somos preguiçosos, gordos, tem lá aquele caso de comparar nós com arroba, mas a gente não quer esmola não, queremos trabalhar no que é nosso, garantir o futuro dos nossos filhos aqui na terra dos nossos ancestrais.

Quilombo Barra da Aroeira – Foto: Divulgação

Mobilização

Vamos contar aqui a história de luta da comunidade para conseguir a titulação. A mobilização local em Barra da Aroeira para o reconhecimento teve início no começo da década de 1980, quando o grupo intensificou contatos mais sistemáticos com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Porto Nacional, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Grupo de Consciência Negra do Tocantins (Gruconto) e a Comunidade de Saúde, Desenvolvimento e Educação (Consaúde).

O RTID da comunidade Quilombola Barra da Aroeira foi publicado pelo Incra/TO, no Diário Oficial da União, no dia 23 de novembro de 2011, está disponível ao público na página oficial do órgão. O documento beneficia as famílias descendentes de ex-escravizados, situadas numa área de 62.315 hectares, localizada nos municípios de Lagoa do Tocantins, Novo Acordo e Santa Tereza do Tocantins, distante 12 km do perímetro urbano desta última, localizada nas margens dos córregos Brejo Grande e Aroeira, no km 15 da Rodovia TO-247. O documento determinou as terras ocupadas tradicionalmente pelas famílias, por meio de estudos antropológicos que identificaram a origem, a memória oral e documental do grupo relativa à sua história, tradições, saberes, práticas materiais e simbólicas.

Entretanto, o processo de legalização de garantia das terras ocupadas pelos quilombolas vem sendo conduzido de forma bem lenta, a exemplo da Barra da Aroeira, que foi reconhecida em 2006, recebeu o RTID do Incra somente em 2011, e até este ano, 2021, ainda não recebeu o título definitivo da terra, conforme relatamos no início do texto.

Vista aérea do quilombo Barra da Aroeira – Foto: Divulgação

Processos

Segundo dados da Comissão Pró-Índios de São Paulo (2020), apenas 9% das comunidades quilombolas vivem em áreas tituladas. São cerca de 1.700 processos tramitando no Incra, sendo que 44% deles foram abertos há mais de 10 anos. Já 85% dos processos não contam sequer com o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), fase inicial que identifica os limites do território quilombola a ser titulado.

Considerando o tamanho do território nacional, com base em dados do IBGE (2019), os territórios quilombolas hoje titulados abrangem 0,12% do território nacional. Estima-se, ainda conforme os dados, que a titulação de todos os quilombolas do Brasil não chegará a 1%, sendo que os demais estabelecimentos agropecuários representam cerca de 40%.

Essas comunidades são detentoras de características culturais peculiares que as distinguem umas das outras e da sociedade, onde a terra é usada para produção de alimentos necessários à sua sustentabilidade; é o local onde os seus antepassados viveram e estão enterrados, estabelecendo, assim, o sentimento de pertencimento.

A garantia à terra pela Constituição Brasileira de 1988, e a publicação do Decreto 4.887, em 2003, possibilitou produzir novos conhecimentos, registrar saberes, conhecer e valorizar a presença do negro e o papel de protagonista da história e cultura dos afro-brasileiros na região. Entretanto, falta ao poder público entregar o título definitivo de propriedade da terra e promover políticas públicas que garanta a sua permanência no território conquistado.

 

Por Maria Helena Borges – Jornalista e Mestranda em História das Populações Amazônicas da Universidade Federal do Tocantins (UFT), campus de Porto Nacional.

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