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Brasileiros assumem o topo do surfe de ondas grandes

Divulgação

Já fazia uma hora e meia que o brasileiro Rodrigo “Koxa”, com a prancha, e o português Sérgio Cosme, pilotando o jet ski, aguardavam pelo único objetivo do dia: pegar uma onda gigante na Praia do Norte, em Nazaré. Era 8 de novembro de 2017, e a ondulação que chegara àquele trecho da costa oeste de Portugal prometia gerar as condições mais extremas já vistas. Seria possível apenas surfar de tow-in – modalidade na qual o surfista entra na onda rebocado por um jet ski.

“Koxa, é bomba, queres ir?”, perguntou Sérgio, ao observar a série de ondas que despontava no horizonte. “Go! Go!”, respondeu Koxa, sem hesitar. Eles deram a volta no pico – no jargão do surfe o local com boas ondas – e, enquanto a massa d’água se erguia e ameaçava a quebrar, o português puxou o brasileiro de 38 anos. Conforme descia a ladeira, a onda virou um prédio. “Tive que me concentrar e ir descendo. Ficou tudo escuro. Na sombra, o maior paredão d’água, com a barulheira da espuma atrás. Nunca tinha surfado com tanta velocidade”, lembra Koxa. No caminho até a base, ele direcionou sua prancha para a esquerda, fugindo do rebuliço e completando a onda – aproximadamente 11 segundos da mais pura adrenalina. “Serginho, você me colocou na onda da minha vida”, ele exclamou ao ser resgatado pelo parceiro de equipe.

Na noite de 28 de abril, aconteceu a cerimônia do Big Wave Awards, premiação da World Surf League (WSL) considerada o “Oscar” do surfe de ondas grandes. Pela “montanha” que pegou em Nazaré, Koxa não apenas conquistou a categoria Biggest Wave, como quebrou o recorde mundial de maior onda surfada. Um painel de especialistas da WSL avaliou a onda em 80 pés (24,384 metros), contra os 78 pés da onda que o havaiano Garrett McNamara surfou em novembro de 2011, então detentor da marca no Guinness Book.

Koxa é o apelido de Rodrigo Augusto do Espírito Santo. Ele nasceu em São Paulo, mas ainda na infância mudou-se com os pais para o litoral sul do estado. Primeiro, em Santos; depois, para o Guarujá. Começou a competir aos 9 anos, venceu seu primeiro campeonato aos 12, mas não teve tanto sucesso. Pensou em desistir da carreira no surfe mas, em 1995, leu uma matéria sobre os “big riders” cujas carreiras se desenhavam longe das competições. Aos 15, Koxa subia no avião para ir até as ondas grandes e tubulares de Puerto Escondido, em Oaxaca, cidade no sul do México.

Rodrigo Koxa: “Nunca tinha surfado com tanta velocidade”

Três anos depois, Koxa realizava o primeiro feito da carreira. Em Punta Docas, no Chile, pegou uma onda de 60 pés (18 metros) que até hoje é a maior já surfada na América do Sul. Depois, alternou temporadas de inverno no Havaí com viagens atrás dos tubos desafiadores do Taiti.

Em 2013, Koxa resolveu desafiar a Praia do Norte de Nazaré, que na época surgia para o mundo. Ele embarcou sozinho para Portugal, empolgado com a ondulação gigante que apontava nas previsões. Lá, serviu de piloto de apoio na equipe do brasileiro Sylvio Mancusi e do franco-brasileiro Eric Rebière. No final do dia, conseguiu pegar três ondas.

Mas no ano seguinte Koxa passou por um trauma que lhe rendeu sessões de análise. Em 29 de novembro de 2014, as ondas gigantes que abriam para a esquerda eram mais perigosas, pois a ondulação de norte intensificava a correnteza que puxava para as pedras. Confiante, arriscou mesmo assim. Ao sair pela crista da onda, seu parceiro Rafael Tapia não estava lá para resgatá-lo. E pior: uma montanha gigante se aproximava.

Foi engolido pela onda, cuja sensação é como estar em uma máquina de lavar gigante. Conseguiu voltar à superfície e respirar, mas logo foi atingido pela onda seguinte da série. Tapia tentou resgatá-lo, mas foi pego por uma onda e o jet ski virou. Já próximo ao desfiladeiro, uma série de ondas o arrastou para fora da pior zona de impacto, onde Garrett McNamara o resgatou.

Em 2011, McNamara descobriu o potencial das ondas da Praia do Norte e passou a se dedicar ao desenvolvimento do big surfe, o surfe de ondas grandes, em Nazaré. A monstruosidade das ondas não demorou a atrair big riders, como são chamados os surfistas de onda grande, do mundo todo, sobretudo europeus e brasileiros. Tamanhas ondulações (ou swells, no jargão do surfe) que chegam à baía se devem ao fenômeno conhecido como Canhão da Nazaré. A aproximadamente 500 metros da costa, um desfiladeiro submarino se estende por 211 km e chega aos 5 mil metros de profundidade. Swells enormes navegam pelo Atlântico e se chocam com esta fenda, gerando as montanhas d’água que tornaram a ida ao Farol da Nazaré uma atração turística.

Vida após quase-morte

Para quem está dentro d’água, no entanto, não há nada de lazer. “É uma onda temperamental”, define a big rider carioca Maya Gabeira. “Uma energia, uma imprevisibilidade e uma força extraordinária existem no local. É um lugar que realmente impõe muito respeito.”

Maya conheceu Nazaré em outubro de 2013, com os surfistas brasileiros que na época formavam sua equipe – Carlos Burle, Pedro Scooby e Felipe Cesarano. Maya passou duas semanas em Nazaré e retornou para Los Angeles. Porém, assim que chegou aos Estados Unidos, uma ondulação gigante apareceu nas previsões europeias, e ela pegou um voo de volta para Portugal. Em 28 de outubro, as “bombas” chegaram à Praia do Norte. Maya fez dupla com Burle. Ela decidiu ir na primeira esquerda de uma série de ondas gigantescas. No “drop” da crista até a base, a velocidade era tanta que a surfista se descolava da parede e aterrissava. Conseguiu fazer isso duas vezes, mas na terceira perdeu o controle e tomou um caldo quase fatal. Foi engolida pelo turbilhão. Subiu à superfície, respirou, porém logo as outras ondas da série a engoliram. Burle não a encontrou por cerca de 4 minutos e foi para a beira da praia, para onde Maya tinha sido arrastada e encontrada quase desacordada. Ela desmaiou durante a tentativa de resgate. Burle pulou do jet ski para salvá-la e tirá-la do mar.

Maya descobriu o big surfe aos 17 anos, no Havaí. Chegou lá em outubro de 2004 e ficou cerca de três meses na ilha de Oahu, na região do North Shore – conhecida como “o milagre das 7 milhas”, pela quantidade de ótimos picos ao longo da faixa costeira. Ela pôde entender melhor sobre a cultura do surfe de ondas grandes enquanto assistia ao prestigiado campeonato Eddie Aikau Invitational, que ocorre apenas quando as ondas na baía de Waimea superam 20 pés. No inverno seguinte, aos 18 anos, ela fez sua primeira sessão de big surfe – e não largou mais a modalidade. Destacou-se tanto que, no Big Wave Awards de 2007, então conhecido como XXL Awards, ela venceu a categoria de “melhor performance feminina”, ainda com 20 anos.

“Foi um momento em que realmente as portas se abriram para que seguisse isso como profissional”, lembra Maya. “Até então, eu era amadora, trabalhava em restaurantes, tinha uma situação financeira um pouco instável, vivia com pouco dinheiro, não tinha acesso a equipamentos.” Após o prêmio, ela assinou contrato de patrocínio com a Billabong e a Red Bull – da qual fazia parte Carlos Burle, pernambucano que, em 2001, foi campeão mundial do primeiro circuito de ondas grandes e quebrou o então recorde mundial com uma onda de 68 pés surfada em Maverick’s, na Califórnia. Burle e Maya iniciaram uma parceria que se estendeu por uma década. Ela conquistou o título de melhor do mundo cinco vezes: de 2007 até a 2010 e em 2012.

Maya Gabeira descobriu o big surfe aos 17 anos, no Havaí.

Na edição deste ano do Big Wave Awards, Maya teve o terceiro melhor desempenho entre as surfistas de ondas grandes. Ela mudou-se para a vila de Nazaré e, no inverno europeu de 2017, terminou de se recuperar de uma série de cirurgias na coluna. Em novembro, finalmente voltou a surfar na ondulação da Praia do Norte, onde Rodrigo Koxa quebrou o recorde mundial. Já em 18 de janeiro, aos 31 anos, pegou a maior onda da sua vida.

Naquela manhã, Maya formava dupla com Eric Rebière. Depois de três horas e meia na água, envolvidos em muito frio, paciência e ansiedade, uma série despontou no horizonte. “Olha, é essa!”, disse Rebière, no jet ski. Maya decidiu ir na segunda onda. “Meu Deus, gigante, não posso cair!”, pensou. Ela conta que fez uma linha mais conservadora – ficou no meio da parede da onda para conseguir completá-la. Saiu feliz, em êxtase, certa de que fizera história. “E aí, quer mais uma?”, brincou Eric. “Ah, não, é isso, só uma onda mesmo. Não quero mais nada, só ir para casa”, ela respondeu.

Na Universidade de Lisboa, Maya encomendou um estudo para avaliar o tamanho da onda. Miguel Moreira, professor da Faculdade de Motricidade Humana, a calculou em 82 pés (25 metros). Maya pleiteia no Guinness a criação do recorde de “maior onda já surfada por uma mulher”. A entidade, por sua vez, submete as medições oficiais de ondas à entidade principal do esporte, a World Surf League. A liga ainda não deu um parecer, porém Maya segue confiante. “Acho que tem uma resistência”, diz ela, sobre a criação do novo recorde. “Não é uma coisa fácil, que vá acontecer sem existir pressão, mas estou aí para fazer essa cobrança. Vai demorar um tempinho, mas tenho certeza de que sairá.”

Surfe performático de ondas gigantes

Lucas Chianca “Chumbo” é outro brasileiro que tem feito história no mundo das ondas grandes. No Big Wave Awards da temporada 2016/2017 – sua primeira focada no big surfe –, o surfista teve a segunda melhor performance e garantiu sua vaga para o Circuito Mundial da modalidade (apenas os 10 melhores entram nessa elite). Em abril, aos 22 anos, ele foi além: ganhou o prêmio de “melhor performance masculina” da temporada.

Lucas Chianca:“O big surfe hoje em dia não tem limite”

Chianca nasceu em Saquarema, na Região dos Lagos do Rio de Janeiro. Aos 3 anos, ele aprendeu a surfar na cidade que atualmente é palco da etapa brasileira do Circuito Mundial de Surfe de pranchinha. Aos 5, seu pai já o empurrava na prancha, em mares grandes para uma criança. Ele vivia entre as ondas de Saquarema e as salas de aula da capital fluminense. Com o passar dos anos, foi ficando cada vez mais atirado no mar. Estimulado pelo bombeiro e big rider Marcos Monteiro, Chianca sempre ia atrás das condições mais pesadas. Porém, quando o mar baixava, ele não rendia tanto.

Aos 19, embarcou para o Havaí pela primeira vez. Lyle Carlson, um californiano que faz pranchas sob medida na ilha de Oahu, enxergou o potencial do jovem brasileiro e lhe forneceu pranchas para surfar ondas grandes. Chianca trabalhou para se manter no arquipélago e, na primeira oportunidade, voou para a ilha havaiana de Maui surfar em Pe’ahi, o pico de ondas grandes também conhecido como Jaws.

Em outubro de 2016, Chianca foi convidado por Carlos Burle para treinar em Nazaré. Pedro Calado, Pedro Scooby e Felipe Cesarano, também destaques da atual geração brasileira, foram chamados, mas não puderam ir. Assim, Burle e Chianca se conectaram na amizade e no trabalho. Nas ondas portuguesas, nascia uma relação que já rendeu frutos.

“Com o Burle, tudo ficou muito mais fácil”, avalia Chianca. “Ele já sabe o caminho das pedras, então é só seguir. ‘Vai para tal lugar e faz isso’. Eu ia, fazia e dava certo. Então, sou muito grato. Sem ele, acho que nem 50% das coisas teriam acontecido.”

Nos dias 10 e 11 de fevereiro, a dupla disputou a etapa de Nazaré Challenge do Circuito Mundial na Praia do Norte. Para Burle, já com 50 anos, seria o último campeonato na elite. Para Chianca, o primeiro título conquistado no big surfe, manobrando em ondas de 20 pés surfadas na remada, ou seja, sem ajuda do jet ski.

Antes dessa competição, no entanto, Chianca viveu os 17 dias mais intensos de sua vida, entre surfe e voos. Em sua casa no Rio de Janeiro, soube que uma ondulação promissora chegaria a Nazaré. Comprou uma passagem de última hora e, em 29 de dezembro de 2017, desembarcava em Portugal. No dia 1º de janeiro, começava 2018 surfando uma das maiores ondas da sessão. Ele conta que passou oito dias de “swellsperfeitos para a remada”, vertente do big surfe que alcança mares maiores e com abordagens mais radicais, com manobra e tubos. O menor dia teve 15 pés de onda.

Nesse meio tempo, Burle ligou para Chianca: “Olha, se prepara que tu vai ter que ir para Jaws”. No pico de Maui, mais dois dias de mares gigantes. “No primeiro dia, me dei super mal. Só tomei vaca. Estava destruído da viagem, com jet lag”, lembra o jovem big rider. “No dia seguinte, o mar estava épico, perfeito, gigante. Foi um dia histórico para mim, porque, na remada, peguei meu primeiro tubo para a direita e a minha maior onda para a esquerda.”

Assim que voltou para Oahu, a dupla soube que a ondulação chegaria também a Mavericks, praia a 3 km da Baía Half Moon, na Califórnia. De acordo com a previsão, eles teriam apenas duas horas para aproveitar aquelas boas condições de direção de ondulação e de vento. “Não tínhamos nada a perder, precisávamos fazer uns trabalhos de filmagem lá mesmo, então demos esse tiro”, conta Chianca. “Só que a gente nunca pensou que o mar estaria tão grande. Na água, diziam que era o maior Mavericks já visto nos últimos 10 anos.”

Na onda californiana, Chumbo afirma ter surfado a onda mais especial de sua vida. Pegou outras duas montanhas gigantes e, em seguida, “terror e pânico”, define ele. O barco de sua equipe virou, de tão intensas que estavam as condições. Mas o saldo foi positivo. Afinal, a saga atrás dos maiores swells da temporada não apenas rendeu o prêmio de melhor surfista de ondas grandes, como consagrou o estilo mais performático e inovador da abordagem em mares de ondas gigantes, sobretudo na remada.

“Não é mais descer reto a onda e sobreviver à explosão, agora é ‘performar’, manobrar até o final dela. O resgate está muito melhor e facilita bastante para seguirmos nesse caminho, além do colete inflável, que é a nossa vida”, observa Chianca. “O big surfe hoje em dia não tem limite, porque a nova geração busca mais a evolução no esporte. Eu, sem dúvidas, não vou poupar meus esforços para isso.”

Fonte: National Geographic

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