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China: Cientista genético é alvo de investigação por experimento “inaceitável”; entenda

He Jiankui, durante seu pronunciamento na Conferência de Edição do Genoma Humano realizada nesta quarta-feira em Hong Kong. KIN CHEUNG AP

Tudo se voltou contra He Jiankui, o cientista que chocou o mundo há três dias ao anunciar o nascimento de gêmeas que ele modificou geneticamente. Seus colegas no Congresso de Edição Genética Humana em Hong Kong declararam o experimento “profundamente perturbador” e “irresponsável”. E as autoridades chinesas, que já haviam anunciado a abertura de uma investigação, proibiram que o geneticista e sua equipe continuem o trabalho.

O experimento é “inaceitável”, disse o vice-ministro chinês de Ciência e Tecnologia, Xu Nanping, em uma entrevista transmitida pela rede de televisão estatal chinesa, a CCTV. O ministro afirmou que o cientista “ignorou os princípios éticos e morais que governam a comunidade acadêmica” e “violou descaradamente” as leis chinesas.

Talvez He Jiankui se imagine como um novo Robert Edwards, o pai da fertilização in vitro. Ele mesmo comparou a reação a seus trabalhos com as duras críticas que os pioneiros da reprodução assistida tiveram que suportar em 1978, quando anunciaram o nascimento de Louise Brown, a primeira “bebê de proveta”. Mas, sem submeter sua pesquisa à revisão de outros cientistas, sem revelar a verdade a alguns de seus colaboradores e passando por cima do consenso internacional contra a edição genética em bebês, sua experiência provocou uma rejeição tão imediata quanto generalizada. E sua reputação, mais do que a de um aspirante a Prêmio Nobel, parece ser a de um charlatão, destinado não aos louros, mas ao opróbrio.

Ele não parece lamentar. Nesta quarta-feira, diante de um auditório abarrotado, com 700 pessoas, e uma audiência de mais milhares de pessoas conectadas online, He apareceu com passo firme para dar explicações a um congresso em Hong Kong. “Estou orgulhoso. Estou muito orgulhoso”, disse este jovem cientista, quase completamente desconhecido até domingo passado e com poucas publicações em seu currículo, enquanto respondia com desenvoltura, mas sem grandes detalhes, a uma bateria inteira de perguntas dos moderadores, da mídia e do público especializado.

Era o momento que esperava fazia pelo menos dois anos. Tinha pisado no tablado como uma estrela de cinema. Fazendo-se esperar alguns segundos, cruzando com passos decididos até o púlpito. Uma pasta na mão como concessão à imagem de um cientista. Começou seu discurso com um sorriso: “Desculpem pelo vazamento dos resultados antes de uma revisão científica”.

As exclamações abafadas do público eram audíveis. O vazamento foi bem intencional e tinha sido providenciado por ele: contratou um agente de relações públicas; já um mês antes tinha entrado em contato com jornalistas; gravou vídeos no YouTube para anunciar sua conquista no dia em que começava o Congresso.

Seu pedido de desculpas aprofundou as contradições e as cortinas de fumaça em torno deste pesquisador em que se misturam, em uma proporção pouco clara, os papéis de cientista, publicitário e empresário. E cujas declarações contêm omissões, meias-verdades, imprecisões ou incorreções.

Relações públicas, vídeos e repórteres

Ele não hesitou em contatar os repórteres, mas ao longo de dois anos não considerou necessário apresentar um artigo sobre sua pesquisa a alguma publicação científica, onde deveria ter se submetido à revisão de outros especialistas. Nem pedir permissão às autoridades científicas chinesas ou a sua universidade, que, segundo admitiu em seu pronunciamento, manteve alheia as suas intenções. Nem mesmo a alguns de seus colaboradores, dado o risco, segundo comentou, de que não quisessem trabalhar com voluntários infectados com o vírus da Aids. E embora garanta que informou os casais exaustivamente, o documento de autorização apresenta como objetivo da pesquisa a busca de uma vacina contra a síndrome, e não a manipulação genética.

Ele diz que não procura alterações eugênicas. O que o move é o seu interesse em ajudar famílias com doenças incuráveis. Pois ele também é pai. E que a Aids é uma doença para a qual ainda não há vacina, e que conhece localidades na China onde 80% dos habitantes foram infectados e os pais tiveram que dar seus filhos a outras pessoas para cuidarem deles. Mas a verdade é que existem outros métodos muito mais simples para prevenir a infecção em recém-nascidos.

Ele também afirma que fez tudo como deveria. Que os casais voluntários receberam informações abundantes sobre o que implicava o experimento e os riscos, antes de concordar em participar. E que foi comentando suas pesquisas com outros colegas, chineses e estrangeiros. E que apresentou seus experimentos com ratos, macacos e embriões humanos em reuniões de especialistas, uma delas no ano passado em Nova York.

Mas os cientistas com quem ele conversou nos últimos dois anos garantem que em nenhum momento He disse que trabalhava com o objetivo de implantar embriões e conseguir uma gravidez bem-sucedida. Feng Zhang, um dos pais da tecnologia CRISPR, empregada pelo geneticista chinês, lembra que “ficou claro que ele tinha os mesmos problemas que outros pesquisadores sobre a falta de eficiência e precisão” desse método. “Eu disse a ele que a tecnologia não é suficientemente eficiente nem precisa para sua aplicação em embriões no mundo real, incluindo as aplicações de fertilização in vitro em humanos”, disse à publicação especializada SLAT.

Omissões

Na China, ele aparentemente também não revelou seus planos. Embora o experimento tenha sido conduzido em Shenzhen, no sul, onde He tem seu laboratório, ele recrutou os casais voluntários por meio de uma organização humanitária contra a Aids em Pequim. Obteve uma licença de sua Universidade, a SUST (Universidade Sul de Ciência e Tecnologia da China) e, embora esta instituição tenha custeado o experimento mediante recursos para start-ups, He garantiu que as despesas dos voluntários correram por sua conta. E que, embora tenha duas empresas especializadas em pesquisa genética, não colocou dinheiro de nenhuma delas.

A universidade se distanciou dele. E também o hospital com o qual ele supostamente colaborou, que denuncia a falsificação de assinaturas.

Como ele pôde atuar? Na China, as leis que regulam a pesquisa são vagas e sua aplicação é relativamente frouxa. A rigidez dos comitês de ética é altamente variável. A grande maioria dos acadêmicos e especialistas desenvolve seu trabalho dentro de rigorosos parâmetros éticos e científicos, mas a pressão para inovar em ritmo forçado e a abundante disponibilidade de dinheiro também tornaram possível iniciar projetos loucos que acabam dando em nada. Em 2016, dois cientistas do norte da China, Sergio Canavero e Ren Xiaoping, anunciaram sua intenção de fazer experiências com transplantes de corpo inteiro; um laboratório em Tianjin (leste da China) se propôs a clonar um milhão de vacas.

Não está claro, dada a opacidade da pesquisa, se o experimento de He pertence a este último grupo ou se realmente, e apesar da falta de detalhes, é sério. Os especialistas consideram perfeitamente possível que ele tenha conseguido. Como enfatizam, o CRISPR é uma tecnologia relativamente simples de usar. E ele tem o conhecimento necessário.

Talento de volta

Este filho de camponeses, nascido no sul da China em 1984, estudou Física na Universidade de Ciência e Tecnologia da China. Continuou os estudos nos Estados Unidos: um doutorado em biofísica na Universidade Rice e um pós-doutorado entre 2010 e 2012 em Stanford, no laboratório do Professor Stephen Quake, onde pesquisou sequenciamento genético.

Em 2012 retornou à China, incentivado em parte pelo programa “Milhares de Talentos”, que recompensa profissionais altamente treinados que queiram trabalhar no país, e obteve uma posição como professor associado na SUST, criada um ano antes em Shenzhen. Lá, seu trabalho se concentrou em pesquisas com macacos, ratos e embriões não viáveis.

Ou então era isso que dizia. Como ficou claro agora, seu trabalho principal era buscar a glória. Ou, como salienta José Pastor, diretor do laboratório da Universidade de Tsinghua, “quase certamente esse pesquisador não tem outro estímulo a não ser se tornar primeiro a fazer algo assim”.

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