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Como são feitas as cenas de sexo em filmes e séries? Com a palavra, os envolvidos

André Lamoglia e Manu Ríos interpretam Iván e Patrick, que se envolvem em um romance em “Elite”, da Netflix. / Netflix/Divulgação

A magia transmitida pelas telas pode ser tão fascinante que há quem acredite que as cenas de sexo do cinema e da TV são reais. “É tudo uma simulação, tudo falso”, responde a coordenadora de intimidade Jessica Steinrock em entrevista à CNN Brasil.

Talvez você não saiba o que faz uma coordenadora de intimidade – e não se preocupe, essa profissão é nova até mesmo em Hollywood. “Um coordenador de intimidade é, na verdade, muito parecido com um coordenador de acrobacias. Fazemos algo parecer que está acontecendo mesmo quando não está”, conta Steinrock.

Segundo a profissional, ela também trabalha como uma defensora do ator, se certificando que o elenco tenha seus limites respeitados e que haja consentimento atrás e na frente das câmeras.

Ela costuma compartilhar suas experiências e curiosidades do dia a dia na profissão no TikTok:

https://www.tiktok.com/@intimacycoordinator/video/7207534427654655274

Antes desse profissional existir na indústria cinematográfica, aconteceram casos polêmicos, como no filme “O Último Tango em Paris”, de 1973. Há uma cena chocante em que o personagem Paul, interpretado por Marlon Brando, estupra Jeanne, personagem de Maria Schneider, usando manteiga como lubrificante.

Schneider tinha apenas 19 anos na época, enquanto Brando tinha 48. Ela contou em uma entrevista ao Daily Mail, em 2007, que a cena não estava no roteiro original e que o ator teve a ideia de fazer a simulação pouco antes de começarem a filmar.

“Eu fiquei tão brava”, lembrou. “Marlon me disse ‘Maria, não se preocupe, é só um filme’, mas durante a cena, mesmo que o que Marlon estivesse fazendo não fosse real, eu chorei lágrimas de verdade”.

A atriz ainda disse que se sentiu humilhada e “um pouco estuprada” por Marlon e pelo diretor Bernardo Bertolucci. Depois da cena, Marlon não se desculpou. “Felizmente, foi apenas um take”, afirmou a atriz.

Esse é o tipo de situação que, com um coordenador de intimidade presente, não aconteceria.

“Vemos muitas dinâmicas de poder em jogo, onde é realmente difícil dizer não a algo, mudar de ideia ou ter essa necessidade atendida sem ter um defensor, alguém a quem recorrer, alguém a quem fazer perguntas vulneráveis”, explica Jessica Steinrock.

É por esse motivo que para se tornar este profissional é preciso de um conjunto de habilidades e treinamento específicos. Jessica é, inclusive, CEO de uma organização que treina novos profissionais.

“Pedimos que coordenadores de intimidade tenham uma sólida formação em saúde mental, defesa, consentimento e poder”, explica. “Queremos ter certeza de que as pessoas que estão no set possam realmente proteger, apoiar e defender os atores, os membros da equipe, qualquer pessoa que precise naquele momento”.

O primeiro contato com o profissional

André Lamoglia e Manu Ríos interpretam Iván e Patrick, que se envolvem em um romance em “Elite”, da Netflix. / Netflix/Divulgação

O primeiro passo do trabalho do coordenador de intimidade é ler o roteiro e ter certeza de que entendeu a história. Para isso, há sempre uma conversa com o diretor para entender a visão dele.

“Eu também entro em contato com os atores para ter certeza de que eles sabem o que está acontecendo na cena e para eu mesma me certificar que tenho todas as informações necessárias para apoiá-los”, diz Steinrock.

André Lamoglia, o Iván Carvalho da série “Elite”, confessou à CNN que nunca havia feito uma cena íntima antes da produção espanhola e chegou a sentir um misto de tensão e curiosidade. “Mas, depois que cheguei aqui, que a gente tem todo o processo, que estuda, ensaia, as coisas vão ficando mais tranquilas”, disse.

O primeiro contato que Lamoglia teve com Lucía Delgado, coordenadora de intimidade da produção, foi virtual. Em uma reunião, ela explicou qual era o trabalho dela.

“Os contatos seguintes são algo mais voltado ao projeto. Com relação a cena que a gente tem, como é que eles pensaram em trabalhar naquilo e como é que a gente pode se expor àquela situação”, explica.

A atriz Débora Nascimento já havia feito cenas íntimas antes da série “Olhar Indiscreto”, também da Netflix, mas esta foi a primeira experiência com uma coordenadora de intimidade. Ela exalta a importância da profissional para a mulher artista ter a voz mais ativa sem a necessidade de levantar o tom para ser escutada.

“Porque muitas vezes a gente fala, mas não é ouvida. Então é mais uma pessoa que está ali exatamente para nos ouvir”, diz.

Débora Nascimento interpreta Miranda na série “Olhar Indiscreto”, da Netflix. / Netflix/Divulgação

Segundo a atriz, a coordenadora de intimidade percebe até os mínimos detalhes. “Às vezes é só uma expressão e ela já sente, sabe? É um olhar, é um respiro. Ela vê que tem um problema e aí fala ‘espera aí, chega’”, conta.

“É quase como se tivesse uma melhor amiga para você dividir as nuances, as peculiaridades e os mínimos detalhes dessas cenas mais íntimas. Às vezes nem são cenas que tem toque íntimo com outro ator, mas que são delicadas, são cenas que você se sente mais vulnerável”.

Não é apenas para cenas de sexo

Por isso mesmo, Débora sugere que o nome do cargo poderia ser “coordenadora de vulnerabilidade”, já que a profissional está ali para qualquer cena em que o ator e a equipe possam se sentir desta forma.

“Às vezes uma cena de briga, uma cena de violência te deixa tão vulnerável”, desabafa. “Nossa, nessa série [Olhar Indiscreto] tinha cenas das quais saí tão ‘despedaçada’”.

Segundo Nascimento, a coordenadora de intimidade tinha um processo de “after”,  um cuidado pós-cena para ajudá-los a sair do personagem. “Com uma respiração guiada você traz o artista de volta”, explica.

Jessica Steinrock foi coordenadora de intimidade da série “Little Fires Everywhere”, disponível no Brasil no Prime Video. / Reprodução/Hulu

Consentimento dos atores

Jessica Steinrock sempre tem uma conversa com os atores para entender o que eles estão confortáveis em fazer. “Porque mesmo que o roteiro diga que eles estão nus, a forma como decidimos contar a história da nudez pode ser feita de várias maneiras diferentes”, explica.

Uma opção é mostrar apenas o ator dos ombros para cima, vestindo apenas um top no set. Ainda que não esteja nu de verdade, é possível manter essa insinuação na história.

“Mas o roteiro pode dizer que eles estão nus e o diretor quer uma cena grande e ampla de um humano totalmente nu. Essas são visões muito diferentes de uma mesma frase no script”, conta.

Também é preciso garantir que os parceiros de cena estejam confortáveis. André Lamoglia conta que há exercícios para você conhecer e ganhar confiança com o parceiro de cena, como o “jogo das zonas”.

“A zona do corpo”, explica. “Para tudo você pede permissão. Você fala ‘Posso pegar a sua mão para mostrar onde está tudo bem tocar?’ E aí a gente faz as zonas verdes, as zonas vermelhas”.

Fazer cenas de sexo é sexy?

“Os atores estão em posições desconfortáveis, às vezes fazendo um trabalho realmente vulnerável por muitas horas. Às vezes, filmar uma cena pode levar o dia todo e é divertido, adoramos a narrativa, mas não é tão sexy quanto parece no corte final”, conta Jessica Steinrock.

A coordenadora de intimidade também lembra que no set não há música tocando ao fundo, então é silencioso. “É um pouco estranho, sabe, você está fingindo fazer sexo com seu colega”, diz.

O futuro da profissão

Jessica Steinrock está muito animada para que em cinco, dez anos, o trabalho seja realmente sobre a arte de cenas íntimas.

“No momento, estamos focados em consentimento, educação e defesa, e em garantir que as pessoas saibam quais são seus direitos, como é essa base mínima de autonomia corporal”, explica.

Ela diz que já consegue ver uma grande mudança de cultura nos sets sobre como o consentimento funciona e como é feita a comunicação sobre limites, e que gostaria que isso se tornasse fundamental não apenas nas cenas íntimas, mas em todas elas.

“Para então, quando eu chegar, começar a trabalhar na arte, trabalhar na colaboração e não ter que pensar tanto em reforçar consentimento e limites, porque isso já fará parte da cultura de Hollywood”, afirma.

Confira o vídeo das entrevistas:

 

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