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Comunidades tradicionais lutam para combater incêndios e preservar florestas em meio a conflitos pela terra, no Maranhão e no Tocantins

Por Karina Custódio, Maria Regina Telles e Monalisa Coelho 

Aumento do calor, perda de animais, destruição de casas, roças, prejuízo à saúde mental de adultos, crianças e idosos, assim como à saúde física, devido ao excesso de fumaça. São algumas das consequências do fogo que têm atingido comunidades tradicionais no Maranhão e no Tocantins. Em comum, os moradores das comunidades relatam problemas na regularização das terras, o que vem acompanhado de constantes ameaças dos invasores.

“Nunca aconteceu como na sexta, queimando duas casas, numa delas a mulher está gestante. Perderam tudo, incluindo documentos e dinheiro, que estava guardado para comprar itens do enxoval”, contou Raimunda Nonata Costa da Silva, liderança de Alto Alegre do Maranhão (MA). O incêndio citado aconteceu no dia 18 de novembro, no Território Quilombola Boa Hora 3/Marmorana, onde vivem cerca de 150 pessoas, sendo quase 40 famílias. 

No Brasil, segundo levantamento da Fundação Cultural Palmares, veiculado na Agência Senado, são em torno de 3.600 grupos quilombolas e apenas 154 foram titulados. De acordo com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), 1.700 grupos estão aguardando a conclusão dos estudos antropológicos ou a emissão de laudos técnicos para conquistarem seus títulos definitivos. Segundo o site InfoAmazonia, o Maranhão é o estado que tem a maior demanda por titulação de terras quilombolas do país.

Essa morosidade na titulação de terras, assim como na comunidade quilombola Marmorana, favorece a ação de grileiros no Maranhão, num contexto de injustiça ambiental, que decorre, entre outros fatores, da exploração do trabalho escravo, problema que se repete a gerações, de acordo com a liderança da localidade, que relembra o pagamento desigual que o avô recebia. A maior incidência de danos ambientais acompanha populações historicamente vulnerabilizadas, também no estado do Tocantins. Em 2021 a Mata do Mamão, região onde indígenas Ãwa isolados foram identificados em 2019, foi atingida por um grande incêndio e em junho deste ano o fogo atingiu uma área próxima e ameaçou novamente os indígenas.

 

“Todos os anos, ocorrem grandes incêndios dentro da Ilha do Bananal (TO), incêndios ilegais para renovação de pasto, pois existe o arrendamento de gado por alguns indígenas que vivem na Ilha”, relatou Kamutaja Silva Ãwa, presidente da APÃWA-TO, associação indígena do seu povo, sobre o fogo que atingiu a Terra Indígena Ynãwebohona. Kamutaja esclarece que embora o registro dos indígenas tenha ocorrido na Mata do Mamão, os indígenas já foram vistos em outras áreas próximas.

Kamutaja Ãwa – presidente da APÃWA-TO

A partir desses depoimentos, é possível perceber que os números de queimadas no Tocantins e no Maranhão continuam aumentando, conforme dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE) que evidenciam essa realidade. 

 

Ranking do fogo

 

O Tocantins ocupou a segunda posição no ranking nacional de desmatamento nos primeiros oito meses deste ano, com relação aos focos de queimadas, ficando atrás somente do Mato Grosso. Entre as 13 terras indígenas mais desmatadas na Amazônia Legal, três estão no Maranhão, a terra indígena Awá é a sexta com o maior desmatamento, Bacurizinho e Alto Turiaçu, vem respectivamente em 12º e 13º lugares.

 

Ainda conforme o Inpe, entre os dias 1° de janeiro a 11 de agosto, houve o registro de 5.003 focos de queimadas na região tocantinense. Para o mês de outubro, foram registrados 13.911 focos de incêndios no bioma Amazônia, número que representa alta de 20,4% quando comparado com o mesmo período do ano passado. O Maranhão  foi o terceiro colocado, com 1.269 focos registrados, ficando atrás apenas do Pará e do Amazonas. 

 

Segundo o  Inpe, a Amazônia registrou em agosto de 2022, um recorde histórico de queimadas, 33.116 focos de incêndio. Os números superam 2019, quando houve o chamado “Dia do Fogo”, em 10 de agosto. 

 

Conforme um estudo publicado pela revista inglesa Nature Ecology & Evolution (2022), na Amazônia brasileira, “a maior parte dos incêndios de agosto e setembro de 2022 (35% deles) foi em áreas protegidas vulneráveis, terras indígenas e outras áreas públicas que não são obrigadas a se registrar no Cadastro Ambiental Rural (CAR) do Brasil”. A inscrição no CAR é obrigatória para todos os imóveis rurais do país e o primeiro passo para a regularização ambiental. “Embora o CAR não estabeleça a propriedade da terra, os grileiros têm usado este instrumento para reivindicar a propriedade de terras públicas ocupadas ilegalmente. Os incêndios ativos nessas áreas aumentaram 69% em comparação com agosto e setembro de 2021. Nos últimos anos, a Amazônia brasileira tornou-se altamente vulnerável à grilagem de terras e à especulação, e esses incêndios são o resultado”, afirma o estudo.

 

O fogo é ferramenta de ameaça nas comunidades

 

De volta à comunidade quilombola Marmorana e Boa Hora 3, no Maranhão, as ocorrências violentas contra pessoas de direitos coletivos e contra a natureza se acumulam. Dona Raimunda relatou que os incêndios que atingem as casas, também não são novidade. Em 2015, duas casas foram queimadas, mas eles não sabem quem foram os responsáveis. “Só tem suspeita, mas não tem concreto. Nessa época, a área estava passando pelo estudo antropológico e a gente estava se reunindo aqui na Boa Hora e chegou uma pessoa dizendo que lá em Marmorana estava sendo queimado. É uma comunidade só, com dois povoados: Marmorana e Boa Hora 3. O incêndio aconteceu só na Marmorana”. Marmorana é onde trabalham. Boa Hora é a sede da comunidade, ela explicou. “Agora aconteceu de novo. Só que agora foi mais claro, porque o grileiro desmatou e colocou fogo, e o fogo a gente tem certeza absoluta que foi de lá, porque é muito perto e foi à tarde, todo mundo tava em casa e viu que o fogo veio de lá”, afirmou.

 

Ela conta ainda que, “dentro da área que ele desmatou, tem uma parte muito bonita, de floresta, mas tem uma parte que a gente deixava, a gente não colocava roça lá, tem olho d’água, água limpinha. Essa parte agora foi agredida pelo grileiro”. A líder quilombola reforça ainda que a relação da comunidade com a terra é de trabalho. “Ao contrário do grileiro que chegou e desmatou, tocou fogo, quando a gente está em encontro, a gente ouve muito que a Terra é a mãe natureza, porque é na terra que a gente vive e é dela que tiramos o sustento. Então, a nossa relação com a terra é preservar.”, explica.

 

Nesse sentido, em 22 de novembro, organizações integrantes da Campanha Contra a Violência no Campo lançaram nota pública em defesa do território, exigindo que o Governo do Estado do Maranhão e o Governo Federal adotem medidas para proteger a vida, a saúde e a integridade da população, além da conclusão do processo de titulação quilombola; investigação ampla e célere dos graves crimes cometidos contra os quilombolas; doação de cestas básicas para as famílias que perderam tudo e a reconstrução das casas incendiadas. Comissão Pastoral da Terra (CPT), Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras do Estado do Maranhão (Fetaema), Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram algumas das organizações signatárias da nota.

 

A lógica de violação de direitos é uma constante, o modus operandi dos invasores. As comunidades indígenas Ãwa, Javaé, Karajá e Xambiá, que vivem na Ilha do Bananal, passaram por um histórico de conflitos, iniciados ainda na colonização, com posseiros e fazendeiros que viviam em seu entorno. Na ilha, há três processos de demarcação sem conclusão, dois do Povo Javaé e um do Povo Ãwa. Este último, se arrasta desde 2009, e a comunidade já enfrentou inúmeras ameaças de morte.

 

Neste ano, o acampamento Itaho (TO), onde parte do Povo Ãwa vive também quase foi atingido por um incêndio. (créditos-Kamutaja Ãwa).

O arrendamento de terras na Ilha do Bananal não é um processo recente. O antropólogo André Amaral relata em sua dissertação de mestrado que já na década de 1960 a própria Fundação Nacional do Índio (FUNAI, nomeada anteriormente como Serviço de Proteção Indígena) negociava com pecuaristas o aluguel dos territórios indígenas. O processo de arrendamento, embora gerasse retorno financeiro para as aldeias, não era pacífico. Os Povos Indígenas enfrentavam invasões, estupros e, muitas vezes, eram proibidos de plantar em seu próprio terreno.

 

Em 1990, os Javaé pediram ao Ministério Público Federal (MPF) que retirassem os pecuaristas de seu território, já que o arrendamento, como determina a Constituição Federal é um crime, mas a retirada não impediu a continuação da prática e, em 2009, uma decisão do MPF-TO permitiu o retorno do gado aos territórios indígenas e o arrendamento das terras passou a ser mediado por organizações originárias.

 

Um dos membros da comunidade apontou que suspeita que os pecuaristas são os responsáveis pelo incêndio que, neste ano, quase se alastrou até a Mata do Mamão, onde os indígenas Ãwa isolados foram registrados, mas por temer represálias, não quis se identificar.

 

Ele afirma que as aldeias precisam arrendar a terra para conseguir recursos e ajudar a população. A FUNAI é a responsável pela proteção dos Povos Indígenas e de sua cultura, mas para ele o serviço oferecido é incapaz de emancipar os indígenas da dependência dos arrendamentos. “Ela ajuda sim, mas não é igual antigamente. Hoje acho que a FUNAI tá difícil, né? Ainda mais nesse Governo passado, cortou muita coisa e, na verdade, cada ano que passa as coisas estão sendo cortadas. A FUNAI ajuda, consegue cesta, traz, mas não é a mesma coisa igual antes. Antigamente, a assistência era melhor pro nosso povo”, desabafou.

 

Outro motivo de críticas dos indígenas em relação ao Governo é o atendimento em saúde. Em maio deste ano, o Instituto Indígena do Tocantins denunciou a morte de Utai Kuheraru Karajá, bebê de 2 anos que morreu após esperar duas horas por transporte que a levasse até o hospital.

 

Relatores da Organização das Nações Unidas (ONU) já alertaram que o Governo Bolsonaro viola tratados internacionais e ameaça direitos indígenas. O atual presidente reproduz a lógica racista que levou os pecuaristas para dentro das terras indígenas. As denúncias do descaso de Bolsonaro contra os Povos indígenas datam de 2019. Três anos depois, em 29 de dezembro de 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) teve de agir para proteger a vida de indígenas isolados, pois a inércia do Governo continuava. Assim, foram determinadas ações imediatas da FUNAI para proteção de territórios de povos isolados que ainda estão sem demarcação.

 

O que os Governos têm a dizer

Para entender as causas de tantas queimadas nos dois estados, procuramos o Corpo de Bombeiros do Maranhão e do Tocantins, que registraram respectivamente, 17.082 e 12.048 focos de incêndio no ano corrente. No Maranhão, as causas são em sua maioria ação humana, desmatamento, limpeza de terreno e preparação para o solo em função do plantio. Já o Tocantins informou que a maioria dos casos de incêndios em vegetação tem origem desconhecida em razão da não realização da perícia em todos os incêndios, mas o CBM/TO, conclui que mesmo que não possa dizer em sua totalidade, mais 99,9% dos incêndios florestais têm causa humana. 

Segundo o CBM/MA, os municípios com maiores focos são: Mirador e Balsas, sul do estado, presença do agronegócio; Fernando Falcão, grande parte da população é indígena; e Alto Parnaíba, marcado por conflitos agrários. No Tocantins, a predominância é na região da Ilha do Bananal onde há além da criação de gado, grandes plantações de soja e captação de águas dos rios, no maior sistema de irrigação continuada da América Latina e nos municípios de Mateiros, Lizarda  (leste do estado) e Paranã (sul do estado TO). Ambos os estados não mapearam o perfil das populações que atualmente são mais impactadas pelos incêndios.

 

Sobre ações específicas no combate ao fogo em áreas quilombolas e indígenas, o CBM/MA se referiu somente a ações de apoio, quando solicitado, justificando que essas áreas são de responsabilidade do Governo Federal através do IBAMA/Prevfogo e ICMBio. No Tocantins, a resposta partiu da competência federal, mas foi além, citando o Comitê Estadual de Prevenção e Combate a Incêndios e Controle de Queimadas, o Comitê do Fogo.

 

Quanto ao orçamento, o CBM/MA informou que houve um investimento de R$3.718.235,00 reais para o combate e prevenção aos focos de incêndios em 2021, (incluindo verbas federais) e que em 2022 o investimento foi de R$2.744.700,00, uma redução de mais de 900 mil reais.

No que diz respeito à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais (SEMA), a pasta desenvolve, desde 2020, o Programa Maranhão Sem Queimadas que visa à prevenção e combate a queimadas e incêndios florestais, por meio de ações de sensibilização, orientação, conscientização quanto aos impactos socioambientais e econômicos, assim como prejuízos à saúde.

Na esfera federal, a redução se repete. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) informou que o orçamento para combate e prevenção aos incêndios nas unidades de conservação federais, em 2022, foi de R$ 95.650.000, 00, menor do que em 2021, que foi na ordem dos 120 milhões. Para 2023, não foi disponibilizada a previsão orçamentária. Quanto ao efetivo, o ICMBio informou que são 48 brigadistas atuando no Tocantins e 54, no Maranhão, e que esse efetivo é o mesmo desde 2019. A previsão para contratação em 2023 é de 1.400 brigadistas para atuarem em todo o território nacional.

O silêncio também é resposta

O questionamento sobre quanto foi investido na prevenção, combate e apoio de comunidades atingidas por incêndios, feito ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), à Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Naturais do Maranhão e à Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Tocantins, permaneceu sem resposta. Do mesmo modo, o Governo do Maranhão não se posicionou sobre o conflito em Mamorana até a publicação da matéria. A FUNAI também se manteve em silêncio sobre a proteção dos povos indígenas da Ilha do Bananal (TO) e em relação às medidas determinadas pelo MPF em 2019 para salvaguardar os isolados Ãwa.

Injustiça Climática

As histórias das comunidades de Dona Raimunda Nonata e de Kamutaja Ãwa são narrativas paralelas de estados vizinhos na Amazônia Legal, que se inserem num universo onde séculos de exploração da natureza e crimes contra comunidades tradicionais cobram seu preço. De acordo com a Organização Meteorológica Mundial (OMM), os últimos seis anos foram os mais quentes do planeta desde 1880.

Brigadista indígena na Ilha do Bananal há dez anos, Vantuires Javaé dá detalhes da relação do calor com os incêndios.

“Quando você aumenta a temperatura o clima fica mais quente, automaticamente o material combustível ele se torna maior, a vegetação seca com mais facilidade, por isso que os incêndios são maiores.”

Quem paga a conta das mudanças climáticas são as comunidades historicamente violentadas por aqueles que devastavam o meio ambiente. O brigadista explica as consequências dos incêndios nas comunidades Javaé, Karajá e Ãwa.

“Queima a vegetação e isso diminui a caça deles, queima a mata ciliar e os rios vão sofrer mais assoreamento”. Além de interferir no modo tradicional de alimentação, Pedro Paulo Xerente, presidente da ABIX Associação dos Brigadistas Xerente, é categórico ao afirmar que as queimadas afetam a saúde dos indígenas. “Os incêndios prejudicam a qualidade do ar e dificultam a respiração, principalmente dos idosos! Muitas vezes, as casas queimam por  consequências aos incêndios”.

Pedro Paulo Xerente, presidente da ABIX Associação dos Brigadistas Xerente

Resistência

 

Desde 2018, uma brigada de incêndio,  capacitada pelo IBAMA, na Terra Indígena (TI) Caru, que é compartilhada pelos povos Guajajara, Awá e Awá-Guajá, no município de Bom Jardim, no Maranhão, está conseguindo evitar incêndios na região. De 2015 a 2017, nessa localidade, aconteceram queimadas, em sua maioria criminosas, causadas por madeireiros e caçadores, de acordo com Rosilene Guajajara de Souza, liderança da TI Caru e vice-presidente da Associação Comunitária Irazu, da Aldeia Maçaranduba. Outra TI muito atingida pelos incêndios foi a Arariboia. “Na época, houve muita mobilização para tentar combater esse grande incêndio e algumas brigadas de outros estados vieram dar esse apoio. Ficamos muito preocupados por conta de parentes que vivem lá, os Awá-Guajá, povo em isolamento voluntário, sem contato nem com nós mesmos indígenas”, conta.

 

 

Ainda segundo Rosilene Guajajara, a Brigada de Incêndio da TI Caru, surgiu em 2016, e é composta por 15 brigadistas indígenas e não indígenas. É o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) que faz a seleção e capacitação da Brigada. “Eles atuam com prevenção fazendo palestras. Nós andamos fazendo palestras de sensibilização no entorno e produzimos material com fotos, conversando com a população vizinha da TI sobre o fogo. Alguns deles fazem queima de forma errada, eles vão, orientam a forma certa, qual o horário, o risco que ele causa e o grande impacto que nós sofremos com a perda de muitos animais que morrem queimados. Então, essa iniciativa parte deles mesmo, a brigada faz um planejamento e aí faz um calendário de atividades, eles planejam 100 povoados, aí eles vão a cada dia aos povoados”, explica sobre a mobilização popular.

 

*Este conteúdo foi produzido com apoio do programa Jornalismo e Território, da Énois Laboratório de Jornalismo. Para saber mais, acesse www.enoisconteudo.com.br ou @enoisconteudo nas redes sociais.

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