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Consciência Negra: o que mudou desde o laçamento da música dos Racionais MC’s

Divulgação

Há 21 anos, o grupo paulistano Racionais MC’s lançava um álbum que seria considerado ícone e maior referência da história do rap nacional. Sobrevivendo no Inferno rapidamente se tornou um marco da música brasileira, alçando Mano Brown, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue ao título de maiores expoentes do estilo no país.

Com letras contundentes sobre o cotidiano da periferia e em presídios de São Paulo, o disco vendeu mais de um milhão de cópias, ganhou prêmios e um clipe marcante da música Diário de Um Detento, que narra a história do massacre do Carandiru por meio das memórias de um presidiário.

Neste mês, a editora Companhia da Letras lançou um livro para celebrar o disco histórico, com letras, fotos e críticas. O álbum dos Racionais também estará ao lado de livros de Camões e Guimarães Rosa na lista de obras obrigatórias para o vestibular 2020 da Universidade de Campinas (Unicamp).

Uma das músicas mais famosas do álbum, Capítulo 4, Versículo 3 começa de uma maneira diferente, denunciando uma série de dados negativos sobre violência e exclusão contra a população negra. Em participação especial, o também rapper Primo Preto recita: “60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial / A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras / Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros / A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo”.

As fontes dos dados não são citadas na letra.

Mais de duas décadas depois da música de ser lançada, a BBC News Brasil verificou pesquisas, estudos e dados públicos para saber se aquele cenário descrito pelos Racionais continua o mesmo. A reportagem conseguiu atualizar três dos quatro índices citados na música. A exceção foi o trecho sobre os jovens da periferia que já sofreram violência policial.

 A cada quatro mortos pela polícia, três são negros

Em Capítulo 4, Versículo 3, os Racionais dizem que, nos anos 1990, a população negra era a maior vítima da letalidade policial. Segundo a letra, três em cada quatro mortos pelas forças de segurança eram negros.

O índice permanece o mesmo 21 anos depois do lançamento da música.

Recentemente, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública analisou 4.254 registros de boletins de ocorrência de mortes decorrentes de intervenções policiais entre 2015 e 2016, o que representa 78% do universo dos casos no período.

Na música, os Racionais dizem que, nos anos 1990, população negra era a maior vítima da letalidade policial — Foto: Klaus Mitteldorf/BBC

Segundo o estudo, 76,2% dos mortos pela polícia no Brasil eram negros (pretos e pardos). Ou seja, três em cada quatro vítimas eram negras no período analisado, exatamente o cenário descrito na letra dos Racionais. Os brancos representam 22,6% do total (963 pessoas).

Em números absolutos, o índice significa que, entre 2015 e 2016, ao menos 3.240 pessoas negras foram mortas pelas forças policiais do país – o número pode ser maior, pois o estudo não teve acesso a todos os casos do período.

Para Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum, esse dado se repete porque, em sua maioria, as vítimas de operações policiais continuam vivendo nos mesmos lugares.

“Isso acontece porque os lugares onde a polícia mata são os mesmos desde sempre, as periferias, vulneráveis não só à violência, mas também a coisas como renda per capita mais baixa, alta evasão escolar. O índice ser o mesmo até hoje é um reflexo do racismo estrutural. A violência policial é só mais um fator”, diz.

A cada quatro horas, um negro morre violentamente

A música dos Racionais afirma que, a cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo.

Na época em que ela foi composta, no final dos anos 1990, São Paulo vivia um período mais violento do que o atual – pelo menos em termos de assassinatos.

Naquele ano, a taxa de homicídios no Estado era de 36 casos para cada 100 mil habitantes, segundo o Atlas da Violência, levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2016, esse número foi de 10,88 – uma queda 69% em 21 anos.

Segundo dados do DataSUS, do Ministério da Saúde, 749 jovens negros (de 15 a 24 anos) foram vítimas de homicídio no Estado de São Paulo em 2016. Ou seja, 2,05 pessoas por dia – 0,34 a cada quatro horas, número bastante menor que o cenário da música.

Entre os brancos, o número é ligeiramente menor – 0,27 vítimas a cada quatro horas, segundo o DataSUS.

Edi Rock aponta para o Capão Redondo, bairro da periferia de São Paulo onde surgiram os Racionais — Foto: Klaus Mitteldorf/BBC

Por outro lado, um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mediu a vulnerabilidade à violência dos jovens negros e brancos de 15 a 29 anos por Estado. O indicador expressa a razão entre a taxa de mortalidade por homicídio. Quanto maior o risco relativo, maior a proporção de mortes de jovens negros em relação à de jovens brancos em um mesmo Estado.

Segundo a pesquisa, jovens negros têm 2,71 mais chances de morrer por homicídio do que os brancos no país como um todo – em São Paulo, esse é número é de 1,6.

Em outros Estados, a proporção de jovens negros assassinados em relação aos brancos é grande. Um dos exemplos é o Rio Grande do Norte, que hoje tem a pior taxa de homicídios do Brasil – 68 casos a cada 100 mil habitantes.

Um levantamento do Observatório da Violência do Rio Grande do Norte, entidade ligada ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, analisou 4.221 homicídios de pessoas entre 16 e 29 anos no Rio Grande do Norte entre 2015 e agosto de 2018. Segundo a pesquisa, 89% das vítimas jovens eram negras.

Proporcionalmente, o Rio Grande do Norte tem mais negros que São Paulo, entretanto. No Estado nordestino, 69,7% da população se autodeclara preta ou parda; no Estado do Sudeste, esse número é de 39,2%. No Brasil como um todo, 55,7% da população se autodeclara preta ou parda; os brancos são 43,2%.

Para Samira Bueno, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, diferenças de renda e escolaridade dos negros em São Paulo podem influenciar na redução das mortes.

“Há diferenças entre os Estados que coincidem com outros indicadores – renda per capita, escolaridade etc. Em São Paulo esses indicadores são melhores. Temos que pensar a vulnerabilidade do jovem à violência como uma questão de acesso a direitos”, diz.

Ainda assim, a pesquisadora diz que o perfil das vítimas de homicídio e o de mortos pela polícia são diferentes: há mais negros jovens entre os mortos pelas forças de segurança.

“Há uma seletividade da parte da polícia. É o estereótipo do criminoso, da figura que o sistema não vai conseguir corrigir. Lembremos do que disse um comandante da Rota em entrevista recentemente, que a abordagem policial tem que ser diferente na periferia e nos Jardins (bairro rico da zona oeste de São Paulo).”

Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros

Entre os dados citados na música dos Racionais, o único que reflete avanços na inclusão social de negros é o que se refere ao acesso ao ensino superior.

Na letra, o rapper Primo Preto diz que “nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros”.

Segundo o IBGE, em 2015, o dado mais recente disponível, 30% das pessoas com nível superior completo eram pretas ou pardas (5.424.514 pessoas). Os brancos representam muito mais – 68% do total (ou 12.450.621).

O percentual de negros com nível superior quase dobrou entre 2005 e 2015, fruto da política de cotas implantadas em universidades públicas e programas de bolsas e financiamentos para estudantes pobres, como Prouni e Fies.

Em 2005, 5,5% dos jovens pretos ou pardos em idade universitária frequentavam uma faculdade. Dez anos depois, eram 12,8%. Apesar desse avanço, o número está muito aquém do da população branca, que subiu de 17,8% para 26,5% no mesmo período.

Para Thaiane Rezende, mestre em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora da área, o aumento do número de universidades federais e de matrículas no ensino superior também explica a melhora. “Em 2003, tínhamos 45 universidades federais, em 2015 eram 63. O número de matrículas também cresceu, saltando de 567,1 mil para 1.214.635 no mesmo período”, diz, citando dados do Ministério da Educação.

Porém, diz, apesar da melhora, o objetivo ainda não foi alcançado, pois, além do acesso, a academia precisa repensar “práticas etnocêntricas”. “Precisamos romper e desconstruir ideias e posturas monoculturais e etnocêntricas. A universidade e o conhecimento acadêmico precisam ser ocupados e transformados a partir de formulações e pesquisas feitas por intelectuais negros, indígenas”, explica.

“A política de ação afirmativa será incompleta enquanto a academia não for radicalmente transformada a partir de uma perspectiva decolonial. A identidade e o referencial negro são fundamentais para essa política de conhecimento que começa com acesso de negros a universidade, mas vai muito além”, diz Rezende.

Além da universidade, em outros índices de educação, a população negra ainda tem participação menor do que a branca, mesmo sendo maioria numérica no país.

No ensino médio, por exemplo, enquanto 75,7% dos brancos estão frequentando a escola, entre os negros essa taxa é de 62%. Os dados são do Anuário Brasileiro da Educação Básica, levantamento da ONG Todos Pela Educação de 2017.

A escolaridade média dos negros é de 10,8 anos de estudo, segundo a mesma pesquisa. Já os brancos estudam 12 anos, em média.

A pesquisadora Thaiane Rezende cita uma metáfora para explicar por que esses números seguem desiguais: “O regime de escravidão ocupa mais de três quartos da história do Brasil. Se o Brasil fosse um vovô de 100 anos, ele teria vivido mais de 75 anos sob o regime de escravidão. Dá pra imaginar que um vovô de 100 anos, que teve apenas os últimos 25 anos para se reorganizar a partir de uma lógica que reconhece a condição de humanidade de pessoas negras, conseguiria cumprir esse dever de casa facilmente?”, questiona.

“O que quero dizer é que vivemos ainda sob os efeitos da construção escravocrata que dominou a maior parte da história do nosso país. Temos evidências qualitativas e quantitativas para afirmar que o racismo é estrutural na sociedade brasileira. Vivemos em um país onde a população negra tem as piores estatísticas em termos de vários indicadores sociais e econômicos”, completa.

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