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Desvio de função da FUNAI impacta os povos nativos

Aldeia indígena Halataikwa

Aldeia indígena Halataikwa

O ano de 2019 iniciou com a concretização de tudo aquilo que o atual presidente prometia, e também com a agenda que sempre acalentou. Nunca um presidente foi tão caninamente fiel aos interesses do agronegócio e dos latifundiários, não à toa que, desde o primeiro dia, mirou o inimigo número 1 destes setores, os povos indígenas.

Diversas ações foram feitas, desmonte da frágil política conquistada a duras penas pelos povos indígenas, da saúde, educação, legalização para grileiros de territórios com demarcação, desmonte da assistência nas mínimas necessidades, desmonte da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), omissão em relação às invasões e queimadas, assassinato de lideranças, descaso em relação à Covid-19, são algumas das ações mais conhecidas desse governo.

O que queremos refletir neste artigo não é algo novo, não é nada que não saibamos, mas que teremos que repetir, para combater com a nossa memória e com a verdade, os inúmeros e diferentes ataques que sofrem os povos indígenas ao longo de mais de 500 anos da invasão.

Não iremos aprofundar neste artigo, mas precisamos lembrar as diversas ações etnocidas ao longo desses cinco séculos, e refletimos por que a FUNAI publicou a Resolução nº 4, no dia 22 de janeiro de 2021, estabelecendo “critérios complementares para a autodeclaração indígena”. Não iremos dar uma resposta jurídica, porque a APIB (Articulação dos Povos Indígenas) fez o INFORME N. 01/2021 – AJUR/APIB e a assessoria jurídica do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), já soltou uma Nota Técnica sobre a ilegalidade (https://cimi.org.br/2021/02/assessoria-juridica-cimi-nota-tecnica-resolucao-funai-restringe-autodeclaracao-indigena/), mas é importante que pensemos a questão política, pois essa não é a primeira nem a última ação etnocída dos colono-capitalistas.

Pequeno histórico do Etnocídio

“Não é a primeira vez que profetizam nosso fim; enterramos todos os profetas”, Ailton Krenak

Lembrando, como já falamos, não conseguiremos aprofundar nem esgotar no artigo essa reflexão, que exigiria um espaço muito maior, para que pudéssemos trazer muito mais elementos.

A primeira ação de apagamento foi imposta aos Tupinambá, que passaram a sofrer sistemática perseguição dos invasores, inconformados por terem sido derrotados, perseguiram os Tupinambá até que se declarou que haviam completado o Genocídio e que não mais existiam os Tupinambá. Esse foi um dos atos das Reformas Pombalinas, que se não tinham mais os Tupinambá como principal foco de suas ações, os usaram como exemplo para mostrar o que acontecia com os que faziam resistência. E, não olvidamos, declarou ainda o governo-mor do Brasil que se alguém se autodeclarasse Tupinambá seria punido com a morte, assim, a nação Tupinambá se manteve, camuflada durante o dia, como a Mãe-da-Lua, e cantando a noite, junto com as Corujas, “ressurgindo” em 2003 com o levante Tupinambá em Olivença, Ilhéus-BA.

Essa ação burocrática, se por um lado apagava diversas identidades, tornando os indígenas vassalos “D’El Rey”, por outro lado passou a legitimar os estupros, “estimulando” e criando facilidades para os “casamentos” com mulheres indígenas ao mesmo tempo em que mantinham a escravização indígena acobertada pelas chamadas “Guerras Justas”, que poderíamos classificá-las de Guerras Sujas, pois permitiram a escravização de povos não convertidos, o que possibilitou mais apagamentos. Essa é a história, ou as histórias que eles querem apagar dos livros e de nossa memória ancestral, mas não conseguem, pois somos muitos se levantando, somos muitos cantando com as Corujas, mas que não mais nos camuflamos como a Mãe-da-Lua durante o dia. Pelo contrário, estamos nas ruas, nos manifestando, estamos nos tribunais peticionando, estamos nas escolas e nos movimentos estudando e, estamos cá e acolá escrevendo nossa história e falando disto também.

A Lei de Terras de 1850 mercantilizou a ocupação das terras, em detrimento ao que vigorava no período anterior, quando poderiam ser ocupadas livremente, e que reconhecia o indígena. Porém, as ações dos grandes latifundiários eram de negar a existência dos indígenas. Já nesse período, os chamados “grandes proprietários” afirmavam não existir mais indígenas. Alguma coincidência com a atualidade?

A Lei de Terras estimulou os Grilos ou grilagem de terra, e um dos métodos utilizados era o envelhecimento de documentos de propriedade falsificada, datados em uma data anterior à data verdadeira, assim forjando o que só agora a gente conhece como marco temporal. Expulsaram muitos povos de seus territórios, na base da violência, forçando a retirada de muitos para o sertão, longe do local de origem. Expulsaram-nos da terra e agora criam narrativas falsas em relação à nossa movimentação pelo Território Nacional, dizendo que abandonamos ou saímos de determinada região. Nossos ancestrais não abriram mão do nosso território, nem nossos ascendentes, nem nós, nem nossos descendentes, fomos sistematicamente expulsos nestes 521 anos da invasão.

O outro momento data de 1910, com a instituição do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPI), aqui mais uma vez o Estado brasileiro mascara suas reais intenções, pois a sigla do órgão omitia a parte da principal ação da estatal, que era a busca de mão de obra, caçando aqueles que outrora foram forçados a se embrenhar pelos sertões, com a proposta de integração nacional dos indígenas. Uma entre tantas atuações era a conversão social de indígena para o status de ‘trabalhador’, uma vez que fariam a construção de estradas de ferro, telégrafos e das fábricas que surgiam nas grandes cidades (revolução industrial brasileira), entre outros trabalhos pesados.

Ou seja, apagando a sua memória ancestral, arrancando-o do seu território, afastando da terra e da cultura e proletarizando-o, porque esse é o ideal do capitalismo, que as pessoas tenham a cabeça de explorado e pensem nesse trabalho repetitivo, alienado e sem questionamentos. Assim, atende-se aos interesses dos patrões, desejosos de que pensemos cada vez mais como eles e esqueçamos que existem outras formas de existir, sem precisar ter a sua força de trabalho explorada, como nossos ancestrais viviam. É para essa liberdade que queremos voltar e por isso lutamos.

Essas ações também são carregadas de manipulações. Em 1922 o SPI estimava a existência de uma população de 1,5 milhão de indígenas, em 1940, com a introdução de outros critérios, esse número caiu para 58.027 e em 1950 para 46.208, contagem realizada com base em informações do SPI. Nesse caso, o que vemos é quanto menos indígenas houver oficialmente no país, menos políticas públicas para esse segmento da população o Estado brasileiro precisa implementar, e menos pessoas legítimas a reivindicar o direito originário ao território; essa é a lógica de toda ação do Estado brasileiro e seus governantes.
Esse período, não coincidentemente, foi o mesmo da Marcha para o Oeste (1937-1945), quando vastos territórios foram invadidos, povos deslocados, momento que agudizou a situação de povos indígenas como os Guarani Kaiowá, Kadiwéu, Guató, Kinikinau, Ofaié-Xavante e Terena no Mato Grosso do Sul.

Após o fim do SPI, que teve uma dura e criminosa atuação contra os povos indígenas, reconhecida em CPI (que foi criada após forte onda de denúncias e mobilização de indigenistas e povos indígenas) à época da sua extinção, foram comprovados diversos crimes cometidos por esse órgão, entre eles: assassinatos de indígenas, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena; dilapidação do patrimônio indígena; arrendamento de terras indígenas; venda de madeiras; exploração de minérios; doação criminosa de terras; adulteração de documentos oficiais; entre outros.

Com a extinção do SPI, em 1967 foi criada a FUNAI [Fundação Nacional do Índio] com objetivo claro de continuar e acelerar a política assimilacionista e integracionista e atuar para que os povos indígenas não impedissem a ‘marcha do desenvolvimento’, previsto no Plano de Integração Nacional [PIN], que se propunha a integrar o país, mas leva todo tipo de violência aos povos indígenas, desde tortura, criminalização e mortes. Logo após o AI-5 (1968) os povos indígenas passam a fazer parte da Doutrina de Segurança Nacional, provocando ações ainda mais assimilacionistas, com o interesse do expansionismo do capitalismo. Para isso construíam estradas, hidrelétricas e estimulariam a ocupação do território, tendo como estratégia estímulo à criação de fazendas nos territórios indígenas.

A visão da ditadura civil-empresarial-militar sobre os povos indígenas e desenvolvimento nacional foi expressa pelo chefe da FUNAI em 1972, o general Ismarth de Araújo, em entrevista ao jornal ‘O Estado de S. Paulo’, definindo que a sua política para os povos indígenas: “índio integrado é aquele que se converte em mão de obra” e que essa integração se daria de forma “lenta e harmoniosa”. O que nos lembra das falas dos atuais governantes.

No período da ditadura, o governo implementou diversos programas de ocupação na Amazônia Legal e no Nordeste. Mas não só governos ditatoriais atenderam aos capitalistas, a SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) na Amazônia Legal, implementada em 1959, foi responsável pela expulsão de uma grande parcela da população indígena do Nordeste, tendo intensificado sua ação etnocida a partir de 1964, com o golpe militar. Da mesma forma foi a SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento Amazônia) na Amazônia Legal. Ou seja, as ações do Estado brasileiro, que tem como pano de fundo o desenvolvimento, tem contribuído sistematicamente com o etnocídio.

Redemocratização e afirmação da identidade e territorial

Com muito esforço de indígenas organizados na UNI (União das Nações Indígenas), indigenistas, militantes da defesa dos direitos humanos, conquistamos dois artigos na Constituição Federal de 1988, com a inestimável contribuição do jurista Dalmo Dallari, que contribuiu significativamente no processo de elaboração do capítulo e dos dois artigos que defendem nossos direitos na Constituição Federal.

A Constituição Federal de 1988 traz um fio de esperança aos povos indígenas quando estabelece no Art. 231: “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Junto com a Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais de 1989, que apesar de ser ratificada pelo Brasil em 2002 já repercutia na luta dos povos indígenas, rompendo com a tutela imposta pelo Estado brasileiro expressa no Estatuto do Índio de 1973 em seu Artigo 7º: “Os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeitos ao regime tutelar estabelecido nesta Lei”. Com essa revogação, fortalece assim, entre outros, o processo de retomada das identidades apagadas.

A Portaria 4 de 22 de janeiro de 2021, fere então todos os princípios legais, conquistados na Carta Magna e posteriormente ampliados pela Convenção 169. Paralelamente, ela nega toda a história de violência e violação, ou melhor, torna toda essa história, escrita com o sangue dos povos indígenas, como insignificante.

O que está por trás da política eugenista e etnocida do governo Bolsonaro e do Estado brasileiro?

“Nossas terras são invadidas, nossas terras são tomadas, os nossos territórios são invadidos… Dizem que o Brasil foi descoberto; o Brasil não foi descoberto não, Santo Padre. O Brasil foi invadido e tomado dos indígenas do Brasil. Essa é a verdadeira história que realmente precisa ser contada”. (Marçal Tupã’i, líder Guarani-Nhandeva, no discurso feito ao Papa João Paulo II, por ocasião de sua visita ao Brasil, em 1980)

Nesse momento em que existe uma enorme concentração de terras no Brasil, nas mãos de poucas pessoas, 50% das terras no campo, estão nas mãos de menos de 50 mil pessoas e grupos. Sabendo que o Brasil tem uma população superior a 200 milhões, constata-se essa injustiça social.

Em uma investigação do Site De Olho nos Ruralistas, descobriu-se que 7.739 imóveis rurais cadastrados no CAR [Cadastro Ambiental Rural], fazem parte de territórios indígenas demarcados e homologados, ou seja, já reconhecida em definitivo, no total de 12.310.790 hectares estão registrados em nome de fazendeiros, ou seja, o agronegócio está cada vez mais expandindo suas cercas e invadindo os Territórios dos Povos Indígenas. Só para se ter uma ideia, vinte e cinco povos têm sobreposição ou registro de 90% total do seu território.

Um exemplo do que significa a concentração de terras e riqueza no país, estudo da OXFAM sobre desigualdade no Brasil, de 2017, cinco bilionários detêm a mesma riqueza da somatória dos 100 milhões mais pobres. Destes cinco, 4 são empresários do agronegócio.

E no dia 1 de fevereiro de 2021, o agronegócio-ruralista elegeu dois representantes seus para presidir o Poder Legislativo: Arthur Lira, presidente na Câmara, e Rodrigo Pacheco, no Senado, ambos da Frente Parlamentar da Agropecuária.

O que isso quer dizer? Está mais do que evidente que o Agronegócio está preparando o bote nos territórios já legalizados e definitivos dos povos indígenas, apesar de ser ‘Cláusula Pétrea’ os artigos que tratam dessa questão. Esse governo já anunciou que não respeitará o que está previsto na Constituição e tem agido dessa forma, no que diz respeito aos povos indígenas. Como sabemos desde o primeiro dia, ele afirma que atenderá os interesses dos ruralistas definindo a sua não política para os povos indígenas. “Se eu assumir [a Presidência do Brasil] não terá mais um centímetro de terra para indígena”, afirmou durante a campanha em Dourados (MS), no dia 8 fevereiro de 2018.

Nesse momento os ruralistas, que já pautam boa parte das ações neste governo, têm um presidente da FUNAI, aliado com os seus interesses, a sua indicação concernente aos seus interesses.

Importante, sempre que formos olhar para o “ser indígena”, rever a historiografia do Brasil e as políticas públicas implementadas pelo Estado brasileiro em detrimento desta população. Importante também saber que o termo genérico “indígena” é, por si só, uma forma de apagamento identitário, um ultraje à identidade étnica de uma vasta diversidade cultural e social, sendo os povos reconhecidos pelo Estado brasileiro apenas uma parcela das etnias existentes no Brasil. Uma grande questão é: por que o Estado brasileiro tem interesse em apagar os povos originários?

Outra questão muito importante é a razão do Estado brasileiro apagar esses povos sistematicamente, como podemos concluir ao analisar as políticas públicas implementadas desde o século 18, ainda no contexto de um Estado colônia, mantendo as mesmas atitudes durante o império e nos períodos de República, quando as políticas públicas para a população originária deixaram de ser punitivas e passaram a ser assistencialistas, supostamente inclusivas e ou protetivas.

O Estado brasileiro sempre agiu para cortar toda a ligação que esses povos têm com o seu território, ou seja, não importa em qual contexto político – Colônia, Império ou República – o Estado brasileiro sempre teve o interesse de afastar os originários do Território originário. A razão disso é de fato a manutenção da posse e exploração territorial.

Indígenas no Censo

Nessa ocasião pela primeira vez os povos indígenas são considerados no Censo do IBGE em uma série histórica, que a partir de 1991 foi demonstrando o apagamento existente com o aumento sucessivo de suas identidades. Em 1991; 294 mil, em 2000: 734 mil; 2010: 896,9 mil indígenas e 305 etnias, e apesar do IBGE refutar a autodeclaração de 110 povos, foi um número bem superior aos censos do período integracionista e assimilacionista do SPI.

O Nordeste foi uma das regiões onde mais cresceu, nesse período, o número de indígenas, que passaram por um processo de retomada de suas identidades, já que tiveram que esconder a sua identidade durante muitos anos, fazendo rituais escondidos, assim como nos relatou o Seu Zequinha, Pajé Xukuru. Ou ainda, grupos que sequer sabem da sua identidade indígena, tomando conhecimento somente após a Constituição de 1988, como relatou Pretinha Truka, Truka de Cabrobó, que à época morava em Minas Gerais e não fazia a menor ideia que era indígena até o dia que seu pai recebeu um misterioso telefonema, juntou os filhos e filhas, e falou que eram indígenas e que o seu Cacique ligara falando que poderiam voltar para o seu território. Assim os Pankararu, que moravam na periferia de São Paulo, começavam a voltar para seu território no final da década de 1990.

Essas e tantas outras histórias compõem o cenário de enfrentamento, resistência e re-existência dos povos indígenas.

Nesse período, os enfrentamentos começam a se acirrar, já que pela primeira vez com alguma clareza, a legislação reconhecia os territórios indígenas, o que acabaria intervindo nos interesses do latifúndio no Brasil, não eram poucos os pronunciamentos dos agroparlamentares contra os “falsos indígenas”, mas também associando o tamanho dos territórios que seriam demarcados, com o número de indígenas, denunciando que havia muito território para poucos indígenas. Logo atacavam duas frentes no campo da retórica, o do “Falso Índio” e o de “muita terra para pouco índio”. Daí o interesse que se reduza o número de indígenas, pois está faltando terra para os indígenas no Brasil.

Nesse momento de intensa campanha contra os povos indígenas, começa uma tentativa de dividir os povos indígenas, jogando para dentro do movimento indígena a dúvida sobre quem poderia ou não ser indígena, tentando encobrir o que estava por trás: o debate da terra.

A negativa de todo o processo de violência que ocorreu ao longo dos séculos traz as teorias nazistas de raça pura, que não têm relação com nenhum povo indígena, pois nossas nações indígenas são resultados de milênios de relação com outros povos, inclusive com povos navegantes, que chegaram aqui bem antes dos europeus, como nos mostrou o indígena colombiano e economista, professor Hector Mondragon.

Desde aquele momento que vem ocorrendo o acirramento de processos de criminalização, invasão dos territórios, assassinatos, escravização, que só não tem sido pior porque as organizações indígenas como a APIB [Articulação dos Povos Indígenas do Brasil], a COIAB [Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira], APOINME [Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo], Aty Guasu [Grande Assembleia do Povo Guarani Kaiowá], ARPINSUL [Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul] que tem sido apoiada por organizações como o CIMI [Conselho Indigenista Missionário], GT Indígena do Tribunal Popular, e apoiadores internacionais como a Survival, que conseguiram não só uma forte articulação interna, mas despertar um olhar atento da opinião pública internacional para o que estava e está ocorrendo nos territórios indígenas.

2021: Ano do Censo

Esse ano é ano de Censo, será o quarto em que a categoria “indígena” será incluída, que muito provavelmente comprovará esse processo de retomada das identidades indígenas, que vem ao longo dos anos retirando o manto das tentativas de apagamento histórico.

Não sabemos ainda, não há como prever o resultado do Censo, mas temos a certeza de que o número de indígenas crescerá muito, dada a dimensão que o debate da retomada das identidades indígenas tem tomado, o que tem tido uma efervescência enorme entre diversos povos. É o que mostra a experiência dos Kariri e Tupinambá, reconstruindo essa pertença aos seus grupos, retomando a sua consciência ancestral, que pressupõe uma relação com seu grupo social, espiritualidade, relação com a mãe natureza e a busca pelo Bem Viver, que projeta um outro tipo de relação e reprodução da vida, que nos faz rechaçar os signos e símbolos impostos pelo Colonizador-Capitalista a partir da invasão, um modo de ser egoísta, fetichizado, destruidor e desumanizador.

Se pegarmos as pesquisas que têm sido realizadas sobre DNA pela Universidade de São Paulo já encontramos fortes sinais de que esse processo vem com força. A USP identificou em pesquisa recente que 34% da população carrega o DNA Mitocondrial, também localizou na cidade de São Paulo que 15% da população carrega em seu DNA Mitocondrial uma origem indígena, o que surpreendeu os pesquisadores e indica que a população indígena supera e muito o número atualmente reconhecido.

O discurso do “Falso Indígena” volta a ecoar, claro que as táticas se renovaram um pouco no tempo, mas continuam as mesmas na essência, acrescentado agora o “Falso Índio”, o que faz querer as cotas dos “Índios Verdadeiros”, como se as cotas fossem o reparo daquilo que não pode ser reparado. Mas esse discurso cai por terra quando analisamos a história do apagamento e com o resultado da pesquisa.

Outra ação é o ataque que tem ocorrido contra a categoria pardo do IBGE, sem que se tenha um debate profundo sobre seu significado, que pode também revelar mais apagamento.

Esses ataques acontecem por causa do Censo de 2021. Devemos ficar atentos e fazer campanha para que os parentes possam se autodeclarar. Temos a tarefa de ajudá-los a encontrar o caminho de volta.

O que estamos compreendendo?

“A quem possa interessar. Escutaram? É o som do seu mundo caindo. E o do nosso mundo ressurgindo. O dia que foi o dia era noite. E noite será o dia que será o dia”. (Exército Zapatista de Liberação Nacional)

Existe um processo de concentração de terra no Brasil na mão dos latifundiários do agronegócio, existe e sempre existiu o temor do invasor de que os povos indígenas possam reivindicar seus territórios. Transformá-los em súditos “D’el Rey”, brasileiro, trabalhador dócil assimilado à dinâmica de exploração do colono-capitalismo. É um plano que não consegue se completar com a memória ancestral nos indicando outro caminho, nos inquietando, nos fazendo questionar, não aceitando esse modelo de sociedade e lutando para que não caminhemos para o cemitério em vida.

Muitos serão os argumentos utilizados, que nunca corresponderam com a verdade. Primeiro o agronegócio continuará tentando nos convencer da sua importância, de que coloca a comida na mesa do povo brasileiro, que produz empregos e riqueza para o país, continuará falando que o número de indígenas é insignificante, que os indígenas precisam se integrar à civilização. São os argumentos mais utilizados, com a tentativa de nos convencer que se tiver mais indígenas esses receberão ou estarão disputando as cotas previstas aos verdadeiros indígenas.

Diante dessas mentiras temos que nos preparar e responder com a verdade.

1- ONU, FAO e o próprio governo afirmam que 70% dos nossos alimentos vêm da Agricultura familiar, que são os pequenos agricultores;

2- Os pequenos estabelecimentos, esses que colocam a comida em nossa mesa, segundo o IBGE, ocupam apenas 30% do total da área rural do país;

3- Os latifundiários, que produzem prioritariamente soja, cana e gado, ocupam o restante dos 70%;

4- Ainda segundo o IBGE, os latifundiários, não empregam mais que 25% do total das pessoas ocupadas no campo, são as pequenas propriedades que empregam 75% das pessoas do campo;

5- O Brasil hoje é campeão na utilização do agrotóxico (veneno) no mundo segundo a FAO, e quem utiliza é o agronegócio. Essas substâncias químicas já foram banidas dos países desenvolvidos;

6- A FAO ainda reconhece que o setor pecuário é um dos 2 ou 3 maiores responsáveis pelos problemas ambientais, só para se ter uma ideia, cerca de 70% das áreas desmatadas na Amazônia são usadas como pasto e os outros 30% são utilizados para a plantação da ração;

7- Segundo o Censo Agropecuário de 2017, 41% das terras agricultáveis no Brasil são ocupadas pelo agronegócio; do Censo de 2006 para o de 2017, provocou-se o desemprego de 1,4 milhão de pessoas que vivem no campo;

8 – Em 2013 aconteceu, segundo o INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], um desmatamento recorde na Amazônia: 63% nas terras do agronegócio e 0% em territórios indígenas;

9- O Agronegócio emprega pouco, ocupa muita terra e não produz a maioria dos alimentos necessários à nossa sobrevivência, como está provado, e ainda pega a maior parte do dinheiro destinado a agricultura. No Plano Safra 2011/2012, o Agronegócio recebeu financiamento do governo de R$107,2 bilhões de reais e aquele pequeno agricultor que coloca comida na casa dos brasileiros, recebeu 16 bilhões;

10 – Os sucessivos governos vêm perdoando dívidas do agronegócio, como quer fazer o atual governo com uma dívida que chega a R$ 40 bilhões de reais, ou seja, o Agronegócio concentra terra e riqueza na mão de bem poucos, destrói os rios, as florestas, tudo isso com dinheiro público, e ainda arruma jeito de não pagar o que pediu de dinheiro público (nosso dinheiro). E fala que nós indígenas é que impedimos o progresso! Afinal de contas, de que progresso estamos falando?

A Portaria 4 da FUNAI, bem como outras ações desse governo que já citamos, faz parte da ação dos invasores, que desde as Capitanias Hereditária em 1534 agem contra os povos indígenas, com os mais diversos métodos, inclusive os do apagamento, estabelecendo que os indígenas sejam aquilo que lhes serve: escravo, servo D’el Rey, trabalhador dócil, pardo, morador das periferias em condições muito precárias, morador de rua, encarcerado, estatísticas não contabilizadas das mortes violentas, tudo, menos indígena, porque admitir que o número de indígenas é muito superior ao definido pelo Estado-colonizador-capitalista é admitir que esse mundo que foi criado aos seus interesses, interesse de bem poucos como sabemos, não poderá existir como tal!

Em era de Fake News, as mentiras que foram construídas historicamente podem se ampliar ainda mais, por isso precisamos ficar ainda mais atentos, não podemos ceder às mentiras do Marco Temporal. Uma imagem emblemática que nos vem a memória é a da cena do filme Terra Vermelha sobre os Guarani Kaiowá, quando o latifundiário reivindica aquelas terras, por tê-la invadido 60 anos antes e que seus filhos nasceram ali. A resposta do personagem Nádio (vivido pelo Cacique Ambrósio, assassinado em 2013) foi o gesto de pegar um punhado de terra, levá-lo à boca e comer; tal gesto foi inspirado em outro famoso cacique, Marcos Veron (assassinado em 2003), que em uma conversa com autoridades, ao falar da terra, levou-a à boca e disse: “a terra somos nós!”.

Não aceitemos essas falas de muita terra para pouco índio. Dos territórios previstos na Constituição Federal de 1988, segundo o CIMI em seu relatório de 2016, ainda faltam 64,5%, que ainda não foram demarcados, e claro, são alvos desses ataques. E tal área não chega nem de longe ao que era a totalidade do território originário, ou seja, tudo isso aqui que foi invadido pelo Estado brasileiro.

Temos que rebater as mentiras do apagamento e a narrativa dos “falsos índios”, ou ainda a utilização do discurso da apropriação das migalhas das cotas pelos “falsos índios”.

A reconstrução do mundo, destruído pelo Colono-Capitalismo, pelos Povos Indígenas do Brasil e do mundo, que não fazem separação entre a humanidade e a natureza (a humanidade é a natureza, a natureza é a humanidade), que estabelece essa relação respeitosa, não predatória, não acumuladora, que respeita os seres humanos, que celebra a vida, que não tolera a fome, a miséria, que quer convívio de paz entre os seres humanos, que deseja extrair o melhor das relações humanas, que não estabelece relações hierárquicas ou de poder, porque sabe que o importante são as boas relações em nossa casa, essa reconstrução é o nosso caminho, o único caminho que garantirá a nossa existência aqui nesta morada (Planeta Terra).

Não, não podemos permitir que nos falem o que nós somos e em que mundo devemos viver, não podemos permitir a escravização a esse mundo, suas ideias, seu modo de vida (ou não-vida). Se preciso for, continuemos cultuando a memória ancestral, fazendo nossos rituais, lembrando ao mundo que queremos viver e que outros vivam, somos uma das últimas resistências à destruição imposta por esse mundo colono-capitalista, não podemos fraquejar, não podemos desviar nosso foco, temos responsabilidade com a humanidade e, por isso, não aceitaremos mais tais imposições.

Nenhum papel, nenhuma lei, nenhum ditador dirá mais quem nós somos! Se a luta pela terra nos coloca a consigna, Demarcação de Terra, Já! nunca foi tão pertinente e necessário à nossa sobrevivência incorporarmos outra consigna: Autodeclaração, Já!

Referências de fonte para esse texto:

ONU – Organização das Nações Unidas
OIT – Organização Internacional do Trabalho
FAO – Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
Site De Olho nos Ruralistas
Site Repórter Brasil
Video: Baixa a bola Ruralista

Esse texto foi escrito por Givanildo M. da Silva (Giva) e Sassá Tupinambá. Colaboraram: Julio Guató, João Kariri e Arnaldo Payayá para o Correio Cidadania

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