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EDITORIAL: A mulher do fim do mundo vira símbolo da resistência feminina negra contra violência e o “planeta fome”

Maju Cotrim

Elza Soares não vai deixar só saudades como cantora. Seu legado é bem maior que isso. Sua intensidade histórica como mulher preta e o orgulho de ostentar isso vao permear por gerações.

Elza simboliza a mulher preta que carregou lata na cabeça, foi obrigada a se casar ainda adolescente e não desistiu de seguir seus sonhos. Ela simboliza a liberdade conquistada das mulheres pretas.

É a prova que uma voz potente vale muito não só para fazer história como cantora mas principalmente como resistência num país onde maioria das mulheres vítimas de violência ainda sao pretas.

Superou a violência, o racismo e não abriu mão de construir sua própria personalidade artística. Elza superou o “planeta fome” como assim intitulou em entrevistas e no fim de sua carreira lançou a mulher do fim do mundo mostrando que sempre é tempo de renascer.

O mesmo planeta fome que milhares de mulheres tocantinenses também buscam superar ainda pelos inteirões e rincões. Eu que tive a oportunidade de entrevistar e conhecer tantas mulheres quilombolas tocantinenses não deixei de lembrar como a história de muitas delas tem aspectos da de Elza que teve trajetória difícil como tantas mulheres pretas que estão á margem porém aproveitou todas as oportunidades e construiu uma carreira de sucesso.

Me lembro que perguntei a uma das minhas entrevistadas do livro “Guerreiras populares quilombolas” qual cantora gostavam e uma me disse que Elza Soares. Falou que suas músicas pareciam com ela. Talvez tenham em comum a resistência!

“Mulher do fim do mundo.
Eu sou, eu vou até o fim cantar”. E cantou! E inspirará para sempre toda uma série de gerações futuras que olharão para a história dela sabendo que é possível superar, reconstruir e seguir em frente até o fim!

Elza: Mulher do fim do mundo

Vida difícil

Elza Gomes da Conceição foi uma das maiores cantoras da música brasileira. Filha de uma lavadeira e de um operário, ela foi criada na favela de Água Santa, subúrbio de Engenho de Dentro. Elza cantava, desde criança, com a voz rouca e o ritmo sincopado dos sambistas de morro.
Casou-se obrigada aos 12 anos, virou mãe aos 13 e viúva aos 21. Foi lavadeira e operária numa fábrica de sabão.
A vida não foi fácil com a cantora que carregava lata d’água na cabeça desde a infância. Ela perdeu quatro filhos: dois foram os primeiros filhos de Elza em gestações que aconteceram quando ainda era adolescente. Eles morreram recém-nascidos.
Garrinchinha, único filho que a cantora teve com o jogador, morreu aos 9 anos em um acidente de carro em 1986, e Gilson faleceu aos 59 anos, em 2015, por complicações de uma infecção urinária.

Do sambalanço à eletrônica

Por volta dos 20 anos, Elza fez seu primeiro teste como cantora, na academia do professor Joaquim Negli. Foi contratada para a Orquestra de Bailes Garan e seguiu no Teatro João Caetano.

Ela começou a se destacar na música como parte da cena do sambalanço com “Se Acaso Você Chegasse”, em 1959.

Nos 34 discos lançados, ela se aproximou do samba, do jazz, da música eletrônica, do hip hop, do funk e dizia que a mistura era proposital. O último disco lançado foi “Planeta Fome”, em 2019.

A expressão era uma alusão ao episódio em que foi constrangida por Ary Barroso no programa de calouros que participou nos anos 50. “De que planeta você vem, menina?”, ele disse. E ela respondeu: “Do mesmo planeta que você, seu Ary. Eu venho do Planeta Fome.”

Retrato de Elza Soares durante entrevista na capital paulista em março de 1986 — Foto: Nem de Tal/Estadão Conteúdo/Arquivo

“Eu sempre quis fazer coisa diferente, não suporto rótulo, não sou refrigerante”, comparava Elza. “Eu acompanho o tempo, eu não estou quadrada, não tem essa de ficar paradinha aqui não. O negócio é caminhar. Eu caminho sempre junto com o tempo.”
Desde que lançou o álbum “A mulher do fim do mundo”, em 2015, a cantora viveu mais uma fase de renascimento artístico. “Me deixem cantar até o fim”, pediu Elza em verso da música que batiza o álbum.

Elza Soares canta no palco do Fantástico

Começo no samba

Mais voltada para o samba, a primeira fase da cantora tem discos gravados nos anos 60 com o cantor Miltinho (1928–2014) e o baterista Wilson das Neves (1936–2017).

Fazem parte desta era lançamentos como “O samba é Elza Soares” (1961), “Sambossa” (1963), “Na roda do samba” (1964) e “Um show de Elza” (1965).

Mané Garrincha e Elza Soares no aeroporto do Aeroporto do Galeão — Foto: ARQUIVO/ESTADÃO CONTEÚDO
Outras fases vieram. Nos anos 70, escolheu cantar o samba de ritmo mais tradicional. A fase rendeu sucessos como “Salve a Mocidade” (Luiz Reis, 1974), “Bom dia, Portela” (David Correa e Bebeto Di São João, 1974), “Pranto livre” (Dida e Everaldo da Viola, 1974) e “Malandro” (Jorge Aragão e Jotabê, 1976).
A cantora amargou período de ostracismo na década de 1980. Em 1983, sofreu com a morte do jogador Garrincha, com quem teve um relacionamento por 17 anos.

Eles começaram a se relacionar enquanto Garrincha era casado, o que rendeu uma forte crítica pela sociedade e pela imprensa da época. Anos depois, os dois se casaram e a relação foi conturbada, marcada por episódios de violência doméstica.
Empoderada, Elza se tornou uma das maiores referências no combate à violência contra mulher ao cantar “Maria da Vila Matilde”, no álbum “Mulher do Fim do Ano”, de 2015.
Devido a fase de menos sucesso nos anos 80, ela pensou até em desistir da carreira, mas resolveu procurar Caetano Veloso, em hotel de São Paulo, para pedir ajuda.

Globo de Ouro: Elza Soares (1980)
O auxílio veio na forma de convite para participar da gravação do samba-rap “Língua”, faixa do álbum do cantor, “Velô” (1984).

Essa participação mostrou a bossa negra de Elza Soares a uma nova geração e abriu caminho para que a cantora lançasse, em 1985, um álbum menos voltado para o samba. “Somos todos iguais” tinha música de Cazuza (1958–1990).
Em 2002, com direção artística de José Miguel Wisnik, fez um dos álbuns mais modernos da discografia, “Do cóccix até o pescoço”. No ano seguinte, foi a vez de “Vivo feliz”, mais voltado para a eletrônica.
Elza seguia fazendo shows até antes da pandemia da Covid-19 e cantou em lives. Ela estava produzindo um novo álbum de estúdio que pode ter lançamento póstumo.
Nesta semana, ela também se apresentou em shows no Theatro Municipal de São Paulo que foram gravados para o lançamento de um DVD.

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