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Estudo sobre serpentes tropicais revela alta diversidade do Cerrado

(Foto: Thaís Guedes)

O que 150 anos de dados de coleções científicas podem nos revelar? Um artigo recém publicado na conceituada Global Ecology and Biogeography, revista científica com um dos maiores fatores de impacto em estudos sobre biodiversidade, responde essa questão. A base de dados sobre serpentes Neotropicais na qual o artigo se fundamenta é fruto do trabalho de 14 autores do Brasil, Alemanha, Suécia, Austrália, Equador e Estados Unidos, em 141 museus de história natural e coleções científicas ao redor do mundo.

Existem cerca de 10.500 espécies de répteis conhecidas no mundo e a cada ano são descobertas de 150 a 200 novas espécies. As serpentes constituem cerca de 34% do grupo de répteis. Alexandre Antonelli, da University of Gothenburg na Suécia, revela a importância do estudo das serpentes tropicais: “A região tropical do continente Americano, que se estende desde o México central ao sul do Brasil, contém a maior biodiversidade do mundo. Entretanto, até agora a maior parte do nosso conhecimento dessa diversidade se limitava aos estudos de mamíferos e pássaros, e até certo ponto anfíbios e plantas. Serpentes, em contrapartida, tem sido muito menos estudadas, apesar de seu papel crucial nos ecossistemas, como predadores e presas. Nosso estudo disponibiliza dados obtidos por um grande número de pesquisadores que trabalharam arduamente por vários anos para sintetizar dezenas de milhares de relatos de serpentes, lidando com o desafio de identificações errôneas e falta de registros para certas áreas”, explicou ele.

O banco de dados utilizado no estudo possui um total de 147.515 registros de 886 espécies de serpentes de 12 famílias, que representam 74% de todas as espécies de serpentes em 27 países americanos. Os dados foram coletados ao longo de vários anos por herpetólogos e complementados com informações revisadas da Global Biodiversity Information Facility, uma plataforma pública que fornece dados de distribuição de todos os animais e plantas do mundo. O Dr. Martin Jansen, do Senckenberg Research Institute em Frankfurt, na Alemanha, referenda o estudo: “A revisão por especialistas em taxonomia aumentou substancialmente a qualidade dos dados. Pode-se dizer que o banco de dados agora tem uma espécie de marca de qualidade, como ‘verificado taxonomicamente’. Isto é muito importante, já que os estudos modelos de biodiversidade muitas vezes não trazem essa experiência taxonômica profunda associada”.

Ana Prudente coletando dados sobre as serpentes Amazônicas no Museu Paraense Emilio Goeldi. Foto: Divulgação.

Segundo Thaís Guedes da University of Gothenburg, esses dados fornecem uma base sólida para planejar investimentos em pesquisas e estratégias de conservação. “Participei como avaliadora da confecção da última lista brasileira das serpentes ameaçadas e puder ver que a única categoria que nos permite avaliar o grau de ameaça de uma espécie de serpente, por enquanto, é a categoria B, que trata da distribuição geográfica juntamente com documentação sobre declínio da qualidade do habitat. Assim, quanto mais conhecemos sobre a distribuição das serpentes, mais robusta e eficiente é a nossa avaliação. Na prática, reconhecer espécies ameaçadas nos permite indicar áreas prioritárias para a conservação e trabalhar juntamente com o poder público, ONGs e a população em geral em planos de ação voltados para a proteção dessas espécies em risco”, revelou a autora.

O trabalho nos museus

Para Thaís Guedes, o trabalho de coleta de dados em museus de história natural, apesar de solitário, pode ser repleto de emoções: “Para este trabalho, tive oportunidade de coletar cerca de 60.000 registros em 18 museus brasileiros e 12 museus no exterior. Pude ter em mãos exemplares históricos coletados e/ou nomeados por reconhecidos naturalistas como o Carl Von Linné (no Naturhistoriska Riksmuseet e Evolution museet na Suécia), Johann Natterer e Franz Steindachner (no Natural History Museum of Vienna, na Áustria) e do Príncipe Maximilian zu Wied-Neuwied (museus da Alemanha). Encontrei e analisei espécimes-tipo (exemplares a partir dos quais as espécies novas são descritas) nos museus alemães que os cientistas acreditavam terem sido perdidos na segunda guerra mundial”, relatou. “A satisfação aumenta ainda mais quando todo esse esforço se concretiza em um trabalho tão importante”, acrescentou ela.

Mapa de distribuição das serpentes. Fonte: Guedes et al. 2017.

A riqueza do Cerrado

Uma das conclusões do artigo é que a fauna de serpentes é distribuída de forma desigual na natureza. O Cerrado brasileiro, por exemplo, apresenta uma riqueza e diversidade altamente desproporcional quando comparado a outras regiões. O Dr. Renato Bérnils, da Universidade Federal do Espírito Santo, explica essa disparidade: “Na elaboração desse nosso estudo, adotamos as ecorregiões como critério porque elas respondem melhor à diversidade de ambientes disponíveis no continente do que a clássica divisão em biomas. Isso nos impede de traçar comparações simples, como saber qual dos biomas é o mais biodiverso, pois o que chamamos de Mata Atlântica, por exemplo, não é consensual. Assim, nós não examinamos a Mata Atlântica sensu lato, mas sim repartida em oito ecorregiões, a exemplo da Amazônia, que em nosso estudo aparece fracionada em quase 20 ecorregiões. Já o Cerrado e a Caatinga mantiveram sua integridade, com contorno e área praticamente iguais aos adotados pela maioria dos pesquisadores.

A Mata Atlântica contacta extensas áreas de Caatinga, Cerrado, Pampa e formações litorâneas pioneiras (restingas e manguezais), compartilhando algumas espécies com seus vizinhos. Esse é também um dos motivos do Cerrado ter aparecido como a ecorregião de maior riqueza de serpentes: além de extenso e não repartido em ecorregiões menores, ele contacta e compartilha espécies com Amazônia, Mata Atlântica, Caatinga, Chaco e Pantanal”. Para Thaís Guedes, graças ao enorme esforço na construção dessa base de dados e ao mapeamento detalhado da distribuição de todas as espécies de serpentes é possível explorar e discutir essas questões em detalhe e posteriormente testar se os limites dos biomas e ecorregiões fazem sentido para a distribuição das serpentes Neotropicais.

A desconhecida Amazônia

O estudo também revela que a Amazônia é a região menos conhecida, com cerca de 1.600.000 km² sem nenhuma informação sobre serpentes no banco de dados. Para a Dra. Ana Prudente, do Museu Paraense Emilio Goeldi, essa escassez de conhecimento pode ser atribuída aos baixos investimentos em pesquisa e falta de especialistas para explorar essa grande área. “A Amazônia é o bioma conhecido por apresentar uma das mais altas diversidades biológicas do mundo. Estima-se que ainda existam muitas novas espécies para serem descritas. Os inventários em áreas pouco amostradas ou nunca antes visitadas têm revelado uma diversidade surpreendente de novas espécies de serpentes”, explica a pesquisadora. “Mesmo áreas antropizadas e com grande alteração ambiental, como a região oriental da Amazônia brasileira, tem revelado novas espécies. Em 2016, por exemplo, descrevi juntamente com o Dr. Paulo Passos, do Museu Nacional do RJ, uma espécie de serpente, Atractus tartarus, com distribuição que estende do município de Vitória do Xingu no Pará até Carolina no Maranhão, região conhecida como Arco de Desmatamento”, acrescentou.

Thais Guedes analisando serpentes do Carl von Linnaeus no Museu de História Natural da Suécia.

Para o Dr. Paulo Passos, o gênero Atractus é um exemplo de grupo pouco conhecido e amostrado dentre as serpentes Neotropicais: “Apesar da grande riqueza de espécies, cerca de 150, sua diversidade ainda está muito subestimada, pois muitas espécies são polimórficas (possuem variações na morfologia dos indivíduos da espécie) e apresentam um histórico nomenclatural complexo. Os estudos regionais tendem a reconhecer como espécies distintas as variações locais, aumentando a complexidade e o fluxo de mudanças na taxonomia do grupo para atingir a diversidade real de espécies’’, esclareceu.

Próximos passos

Além dos resultados diretos deste trabalho, Thaís Guedes sugere outros usos para os dados: “Nosso banco de dados fornece a base ideal, e agora pode ser usado como uma base sólida para modelos subsequentes, por exemplo, em padrões evolutivos ou efeitos das mudanças climáticas”. Para o Dr. Henrique Braz, do Instituto Butantã, conhecer a distribuição das espécies também fornece informações que podem ser aplicadas a outras áreas da biologia, como por exemplo na reprodução animal:“Em uma região tão ampla e de clima diverso como é a região Neotropical, uma mesma espécie com ampla distribuição pode apresentar estratégias reprodutivas distintas de acordo com os ambientes que ocupam. Dados de distribuição associados a dados reprodutivos são uma excelente ferramenta em estratégias de conservação”, complementa ele.

Para Thaís Guedes, a identificação de áreas pobremente amostradas, onde provavelmente novas espécies podem ser encontradas, deve vir de uma síntese de dados e mapeamento do que já conhecemos em termos de espécies e das áreas nas quais temos amostras consideráveis. Para Alexandre Antonelli, embora este estudo represente um importante avanço no conhecimento sobre a biodiversidade de serpentes do Brasil e resto do continente, há ainda grandes lacunas de conhecimento: “Regiões como a Amazônia, onde uma grande riqueza deveria ser esperada, conta ainda com muitos poucos registros. Temos uma grande tarefa pela frente de aumentar o conhecimento popular sobre serpentes, evitar ao máximo que sejam mortas indiscriminadamente, e incentivar o relatório de observações de serpentes acompanhadas de fotos ou espécimes. Serpentes são seres maravilhosos e ainda pouco conhecidos, por isso espero que nosso estudo traga um pouco de reconhecimento ao seu grande valor na natureza”.

Coleção Alphonse Richard Hoge do Instituto Butantan que forneceu a maior quantidade de dados sobre as serpentes Neotropicais.

 

Fonte: O Eco

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