Há 15 anos, pesquisadores escavaram um túmulo na região russa de Tuva. Os arqueólogos encontraram, agachados no chão de uma câmara escura, dois esqueletos: um homem e uma mulher, cercados por trajes reais de 27 séculos atrás; chapéus e capas adornados com cavalos, panteras e outros animais sagrados de ouro.
Apesar de todo o ouro, o verdadeiro tesouro, para os paleopatologistas (estudiosos de doenças antigas) é a abundância de tumores em quase todos os ossos do corpo do homem. O diagnóstico: o caso mais antigo conhecido de metástase de câncer de próstata.
A próstata tinha se desintegrado há muito tempo. Mas as células malignas da glândula haviam migrado de acordo com um padrão familiar que deixou cicatrizes identificáveis. As proteínas extraídas dos ossos deram positivo para PSA, um antígeno específico da próstata.
Muitas vezes considerada uma doença moderna, o câncer na verdade sempre esteve conosco. Disso não há dúvida. Mas há uma discordância: a civilização amplificou o câncer?
Ao longo das décadas, arqueólogos fizeram cerca de 200 avistamentos de um possível câncer nos tempos pré-históricos. Mas, considerando as dificuldades de extração de dados estatísticos a partir de ossos antigos, esse número é pouco ou muito?
Um relatório recente de dois egiptólogos concluiu que há “uma raridade impressionante de doenças malignas” em restos humanos antigos. A raridade do câncer na antiguidade sugere que tais fatores são limitados às sociedades que são afetadas por problemas de estilo de vida moderno, como o tabaco e a poluição resultante da industrialização. Também estão na lista a obesidade, hábitos alimentares, práticas sexuais e reprodutivas, entre outros fatores alterados pela civilização.
Mas muitos médicos, especialistas e arqueólogos ficam menos impressionados. Segundo eles, não há nenhuma razão para pensar que o câncer é uma doença nova. Nos tempos antigos simplesmente era menos comum porque as pessoas morriam na meia-idade de outras causas.
Outra consideração é a revolução na tecnologia médica. Hoje é possível diagnosticar diversos tipos de câncer, como de mama e de próstata, que em épocas anteriores teriam permanecido indetectáveis e seriam levados para a sepultura quando a pessoa morresse de outras causas não relacionadas.
Mesmo com tudo isso em conta, há um problema fundamental em estimar as taxas de câncer antigas. Os tumores podem permanecer ocultos no interior dos ossos, e os que cavarem seu caminho para fora podem fazer com que o osso se desintegre e desapareça. Com todos os esforços de arqueólogos, apenas uma fração da pilha de ossos humanos pode ser estudada.
Arqueólogos estimam que existam cerca de 100 mil esqueletos em coleções osteológicas no mundo, e a grande maioria não foi radiografada ou estudada com técnicas mais modernas.
De acordo com análises, o total acumulado de todos os que viveram e morreram em 1 d.C. já estava próxima dos 50 bilhões, e quase dobrou em 1.750. Essa análise refuta a afirmação tantas vezes feita de que mais pessoas estão vivas hoje do que já viveram na Terra. Se esses números se mantiverem, o número de esqueletos no banco de dados arqueológico representa cerca de um décimo de milésimo de 1% do total.
E dentro dessa amostra minúscula, nem todos os restos estão completos. Por um longo tempo, os arqueólogos só coletavam crânios. Não há nenhuma maneira de saber o que o resto dos esqueletos dessas pessoas poderia ter dito sobre sua saúde.
Há uma complicação adicional: mais de 99% dos cânceres não se originam no osso, mas em órgãos mais suaves, que se decompõem rapidamente. A menos que eles se espalhem para os ossos, provavelmente não serão registrados.
Múmias antigas parecem ser uma exceção. Mas os estudos com elas também são escassos. Apenas em raras ocasiões os patologistas colocam as mãos uma múmia comparativamente recente, como Ferrante I de Aragão, rei de Nápoles, que morreu em 1494.
Quando seu corpo foi autopsiado, cinco séculos depois, o adenocarcinoma, que começa em tecidos glandulares, foi encontrado espalhado nos músculos de sua pequena pelve. Um estudo molecular revelou um erro de digitação em um gene que regula a divisão celular, que apontava para o câncer de cólon e reto. A causa pode ter sido o consumo voraz de carne vermelha.
Apesar de tudo isso, o fato é que há apenas um número pequeno de múmias e esqueletos verdadeiramente antigos que mostram evidência de câncer. Embora a expectativa média de vida fosse menor no Egito antigo do que é hoje, muitos indivíduos, especialmente os ricos, viveram tempo suficiente para obter outras doenças degenerativas. Então por que não o câncer?
Pesquisadores já demonstraram que as múmias podem preservar a evidencia de câncer. O problema maior é o tamanho de amostra pequeno. Quantos casos de câncer os cientistas devem esperar encontrar? O que seria muito e o que seria pouco?
Para se ter uma ideia, um paleopatologista analisou os relatórios de mortalidade britânicos de 1901 a 1905, um período tardio suficiente para garantir razoavelmente bons registros de câncer, e anterior o suficiente para evitar a distorção dos dados causada, por exemplo, pelo pico de câncer de pulmão graças à popularidade de cigarros.
Levando em conta as variações na expectativa de vida e a probabilidade de doenças malignas diferentes se espalharem pelo osso, ele estimou que se poderia esperar câncer em menos de 2% de esqueletos masculinos e 4 a 7% de esqueletos femininos.
Arqueólogos também tentaram fazer uma previsão desse tipo em 905 esqueletos de duas antigas necrópoles egípcias. Com a ajuda de raios-X e tomografia computadorizada, eles diagnosticaram 5 casos de câncer, em linha com as expectativas. E, também conforme uma estatística previu, 13 cânceres foram encontrados entre 2.547 corpos enterrados em um ossário no sul da Alemanha entre os anos 1.400 e 1.800.
Para ambos os grupos, os tumores malignos se mostraram significativamente em menor quantidade do que o esperado quando comparado com a Inglaterra do início do século 20. Eles concluíram que o atual aumento na frequência do tumor em populações atuais é muito mais relacionado com a maior expectativa de vida do que fatores ambientais ou genéticos.
A arqueologia pode nunca ter uma resposta definitiva. Segundo os especialistas, pode-se dizer que o câncer certamente existiu no passado, e provavelmente numa frequência um pouco menor do que hoje. Só.
Os cientistas vão continuar a pesquisar, mas há certo conforto em saber que o câncer não é inteiramente culpa da civilização. No curso normal da vida, as células de uma criatura devem estar constantemente se dividindo – milhões de vezes por segundo. Às vezes, algo dá errado. Segundo os cientistas, se vivêssemos tempo suficiente, todos nós teríamos câncer.
Com informações do NewYorkTimes