“Infelizmente, muitas pessoas acreditam que se um indígena, como eu, usar smartphone, roupas e viver na cidade isso significa que está deixando a sua cultura”, afirma Cristian Wariu Tseremey’wa, de 20 anos, em um dos vídeos publicados em seu canal no YouTube.
Desde a infância, Cristian ouve comentários preconceituosos sobre a sua origem. Para desmistificar o assunto, o jovem xavante, com ascendência guarani, criou, há pouco mais de um ano, o canal “Wariu”, no qual trata sobre temas relacionados à cultura indígena.
“Há muito tempo, percebo que as pessoas que não fazem parte da nossa cultura têm certo preconceito com os povos indígenas. Quando eu explicava melhor sobre o assunto, elas passavam a nos respeitar mais. Enxerguei o YouTube como uma oportunidade para alcançar mais pessoas e explicar a elas sobre a nossa cultura”, diz à BBC News Brasil.
O primeiro vídeo foi publicado em agosto de 2017. Nele, o jovem indígena fala sobre algumas das dúvidas que mais costuma ouvir sobre a sua cultura. “Não aguento mais me perguntarem se ando pelado em casa ou na aldeia”, confessa no início do vídeo. Pouco depois, Cristian, que passou a vida morando na cidade e indo com frequência à aldeia, esclarece. “Não, não ando pelado em casa. É muito constrangedor. Mas, na aldeia, vai depender da etnia, porque índio não é um povo só”, afirma.
Em seguida, ele ressalta que os indígenas são divididos por etnias, que possuem diferentes culturas. “Há etnias que andam peladas, mas não estão totalmente nuas, sempre há alguma coisinha para cobrir. Há outras que ficam nuas em momentos especiais, como em rituais, mas normalmente usam roupas”, declara.
Os vídeos de Cristian são publicados uma ou duas vezes por mês. Ele já abordou temas como os significados de pinturas indígenas, mostrou rituais xavantes e falou sobre algumas das etnias que existem no Brasil. Até o momento, em seu canal há 17 publicações, que totalizam mais de 34 mil visualizações.
A indigenista Maíra Taquiguthi Ribeiro, que atua na Coordenação Regional Xavante da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Barra do Garças (MT), ressalta que os vídeos publicados por Cristian ajudam no combate ao preconceito contra povos indígenas.
“Um vídeo produzido por um jovem indígena, de forma simples, em uma linguagem informal e com informações sobre os povos, tendo suas experiências pessoais como uma das fontes, traz mais proximidade e empatia com o público. As pessoas que assistem entendem melhor a mensagem e conseguem compreender o indígena enquanto pessoa, e não como uma figura folclórica, descolada da realidade”, explica à BBC News Brasil.
“Conhecer a realidade dos povos e entender a forma como vivem reforça a legitimidade dos seus direitos à terra, à autodeterminação e à sua especificidade. Provavelmente, daí venha a incompreensão da sociedade não indígena a respeito das questões indígenas: da defasagem dos instrumentos de construção desse conhecimento”, acrescenta.
A infância entre a cidade e a aldeia
O pai de Cristian pertence à etnia xavante, enquanto a mãe é Guarani. O jovem se considera, culturalmente, apenas ligado aos ancestrais paternos. “Conforme a linhagem dos xavantes, o filho deve ser considerado apenas da etnia deles, independente do parceiro. Além disso, quando você precisa se identificar como indígena, como na matrícula em uma universidade, precisa mencionar apenas um povo”, explica.
Cristian nasceu na região urbana de Campinápolis, em Mato Grosso. Na cidade, passou boa parte da infância e adolescência. “Sempre moramos em áreas próximas à aldeia, para que não ficássemos distantes da nossa cultura. Havia datas em que passava temporadas de até dois meses na aldeia para realizar os rituais”, diz. O jovem comenta que participou de todas as cerimônias consideradas importantes para seus ancestrais. “Os xavantes são muito ligados aos rituais. Se eu não fizesse todos, não seria considerado um deles”, explica.
O jovem conta que os pais optaram por viver na cidade para que ele e os dois irmãos – Cristian é o mais velho – tivessem mais facilidade no acesso aos estudos. “Meus pais prezam muito pelo ensino”, afirma. A mãe dele trabalha como secretária na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e o pai preside a Federação do Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt). “Eles estudaram até o ensino médio, em Brasília, quando se conheceram. Depois não tiveram condições para fazer faculdade.”
Durante a infância e a adolescência, Cristian comenta que era comum que professores o questionassem sobre a cultura indígena. “É um tema muito desconhecido. Na escola, queriam saber sobre a vivência do meu povo e questões políticas. Essas dúvidas existem porque os livros falam pouco sobre os indígenas. Focam mais na colonização e esquecem da diversidade cultural que existe. Além disso, também não falam sobre o indígena contemporâneo, por isso as pessoas pensam que continuamos do mesmo jeito, como no passado.”
Na escola, o jovem relata que colegas de classe praticavam bullying contra ele, em razão de suas origens. “Diziam que todo índio é preguiçoso, falavam que comemos piolho e também ouvi alguns colegas dizerem que eu nunca deveria ter ido para a cidade”, lamenta. Fora do ambiente escolar, ele se recorda de outras situações de discriminação que presenciou quando criança. “Uma vez, minha avó foi chamada de índia nojenta por ter pedido apenas uma banana, por não ter dinheiro para pagar um cacho inteiro.”
Para tentar reduzir o preconceito à sua volta, Cristian conta que desde a infância costumava esclarecer sobre a cultura indígena para aqueles que desconheciam o assunto. “Todo esse preconceito me afetava, porque muitos pensavam que éramos canibais ou extremamente violentos. Quem imaginava isso, tinha medo da gente. Então, eu tentava mudar essa situação, contando a verdade sobre o meu povo”, diz.
Os vídeos como meio de tentar reduzir preconceito
Na pré-adolescência, Cristian acompanhou o boom dos youtubers. Na época, percebeu que os vídeos publicados na internet seriam uma forma de combater o preconceito contra os indígenas. “Pensei em criar o canal há mais de cinco anos, mas eu tinha poucos recursos. Eu não sabia mexer com audiovisual, nem tinha conhecimento sobre edição”, conta.
No ano passado, o Ministério da Cultura lançou um edital para auxiliar produções audiovisuais de jovens vlogueiros em todo o Brasil. Cristian se inscreveu e apresentou um projeto para criar um canal sobre questões indígenas. “Desde que descobri o edital, fui me preparando. Eu não sabia editar, muito menos gravar, mas diante dessa oportunidade, me esforcei para aprender. Como eu sempre tive muita aptidão com meios tecnológicos, não tive tantas dificuldades.”
Ele, então, gravou e editou o piloto de um vídeo para o canal. Na gravação, esclareceu as dúvidas que mais escutou durante a vida sobre questões indígenas. “A proposta foi muito bem recebida pelo Ministério da Cultura e isso me deixou muito feliz”, conta. O jovem foi um dos selecionados no certame.
Segundo o jovem, o apoio dos pais, que o incentivaram a se inscrever no edital, foi fundamental. “Eles sempre me apoiaram em qualquer coisa que eu fizesse”, diz. Cristian relata que outro fator que o ajudou a ser selecionado foi o foco que teve para fazer um bom trabalho para concorrer no edital. “Sempre fui muito focado em tudo o que eu quero. Além disso, desde pequeno tenho aptidão para design gráfico. Tudo isso me ajudou”, explica.
Após a seleção do Ministério da Cultura, surgiu o canal “Wariu” – nome que Cristian afirma ter escolhido em homenagem ao bisavô. O jovem xavante é o responsável pelo roteiro, gravação e edição dos vídeos. Ele recebe ajuda de conhecidos e de um revisor ortográfico, que o auxiliam a passar as informações corretas sobre os indígenas nas publicações. Os recursos do edital, ele pontua, são usados, principalmente, em aluguéis de equipamentos e no deslocamento quando faz gravações em áreas indígenas.
Cristian ressalta que seu canal tem o objetivo de abordar etnias distintas e não apenas os xavantes. Em razão disso, visitou outros povos. Sempre que ele chega a uma nova região, costuma ser reconhecido e tem status de celebridade.
“Os indígenas enxergam o meu canal de uma forma muito boa, como uma maneira de representatividade, porque é difícil ver as informações sobre nosso povo serem difundidas assim. Neste ano, visitei oito regiões indígenas de Mato Grosso e pude ver, de perto, que há muitas pessoas que acompanham e admiram o meu trabalho”, orgulha-se.
O prazo de vigência do edital se encerra no fim deste ano. Depois, ele revela que continuará publicando os vídeos. “O edital serviu como um apoio inicial. Agora estou mais experiente e sei mexer com edição, conseguirei dar continuidade”, conta.
No YouTube, há outros canais de indígenas que falam sobre suas culturas. O de Cristian é o mais popular dentre eles.
Os temas e os comentários
Os assuntos abordados no canal são definidos por Cristian com base nas reações e perguntas do público que o acompanha. Em seu primeiro vídeo, o jovem percebeu que havia muita curiosidade sobre os brincos que usa nas orelhas. Ele, então, fez um vídeo explicando sobre o ritual no qual os jovens xavantes passam a usar o adereço.
“Esse é um dos rituais mais importantes para o xavante. O brinco não é usado apenas para fins estéticos, ele tem a simbologia de um povo que carrega consigo a luta e a sabedoria”, explica.
O brinco é colocado para simbolizar que o jovem xavante se tornou adulto. Antes de receber o item, eles são divididos em grupo e começam o ritual em um rio. “Os jovens são ensinados a bater na água com as mãos, sem parar, para que o líquido acerte as orelhas e elas fiquem moles e adormecidas. Ficamos nesse rio por quatro semanas ininterruptas, parando somente para comer e dormir”, revela.
Depois de um mês no rio, os adolescentes são levados para a aldeia. Eles ficam à espera de um indígena que fura suas orelhas com um osso de onça-pintada. “Quando furei, não senti dor nenhuma, apenas ouvi os barulhos das orelhas se rompendo.” Depois do ritual, o indígena que recebe o brinco passa a ser considerado adulto. “A partir de então, ele passa a ter voz na aldeia e também pode se casar”, conta Cristian.
Em outro vídeo, o jovem xavante esclarece sobre um dos temas que considera dos mais relevantes para os indígenas na atualidade: a relação com a tecnologia.
“Com o avanço da tecnologia, não é de surpreender que essa onda tenha chegado aos indígenas. A tecnologia não está tirando nossa cultura, como muitos acreditam. Pelo contrário, é uma grande ferramenta para mostrarmos a nossa realidade, que antes era omitida no Brasil. Ela pode ser usada para compartilhar nosso lado da história, para mostrar nossa cara, para nos organizar em prol dos nossos direitos e mostrar que ainda existimos e resistimos”, afirma Cristian.
“Não vou deixar de ser indígena por usar a internet ou o celular. Não vou deixar de ser indígena por falar português. Essas são apenas ferramentas que usamos para compartilhar a nossa cultura, expandir e fortalecer nossas crenças, para que não morram com o tempo. Usando a internet, vou mostrar parte da imensidão da nossa cultura e que podemos usar a tecnologia e manter nossos costumes”, acrescenta.
Nos vídeos do jovem, a grande maioria dos comentários são elogiosos e parabenizam Cristian pela iniciativa. “Muito feliz por ver um canal feito por indígena para falar da cultura de seu povo”, escreveu uma mulher. “Adorei o canal. Estava procurando a realidade indígena contada por um nativo”, pontuou outra.
Muitos dos que assistem aos vídeos também são indígenas e afirmam se sentir representados pela iniciativa de Cristian. “Acabei de conhecer seu canal e já estou amando. Sou indígena e sempre amei minha etnia. Tenho muito orgulho de ser quem sou”, escreveu uma jovem.
Em meio aos elogios, existem algumas poucas críticas. O jovem comenta que já leu mensagens afirmando que ele deveria “voltar pro mato” ou “parar de gravar os vídeos, porque a iniciativa não ajuda os indígenas”. “Às vezes aparece alguém que não aceita nos ouvir, pois tem uma ideia pré-estabelecida sobre o índio. Claro que não gosto de ler as ofensas, mas sempre lidei bem com isso. Tenho pena por ver pessoas tão limitadas”, diz.
Sobre o futuro
Os vídeos que publica no YouTube motivaram Cristian na escolha da profissão. Desde fevereiro, ele cursa Comunicação Organizacional na Universidade de Brasília (UnB). O xavante foi aprovado no vestibular indígena realizado pela unidade de ensino no ano passado.
“Esse vestibular é um meio de o indígena se formar e dar retorno para a sua comunidade. Quando entrei na faculdade, expliquei que escolhi a comunicação porque penso que é um meio ainda escasso entre os povos indígenas, no âmbito acadêmico. Então, posso me formar e contribuir ainda mais para o meu povo”, afirma.
Para ele, a comunicação será uma importante aliada dos indígenas a partir do próximo ano. Isso porque o jovem teme que o presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), traga retrocessos ao seu povo.
“Sei que temos muita luta pela frente. Acreditamos que as políticas adotadas nos próximos anos afetarão intensamente o meio ambiente e o meu povo. Felizmente, nós, indígenas, resistimos durante esses 500 anos, mesmo após vários ataques, inclusive na ditadura militar, que matou muitos índios e extinguiu vários povos.”
“Independente do que acontecer, estaremos lutando para existir e pensando sempre em nossas próximas gerações”, declara.
Fonte: BBC News