As épocas de chuva sempre foram as piores para os moradores do Jardim Pantanal, bairro da zona leste de São Paulo que está próximo à várzea do rio Tietê. Com alagamentos em sua casa que, no verão, podiam durar semanas, Matheus Cardoso costumava sair para a escola vestindo chinelos e carregando em sua mochila um par de tênis e uma garrafa com água. Ao chegar a uma área seca, limpava seus pés, se calçava e ia estudar com o sonho de um dia se formar engenheiro civil para poder tirar sua mãe da periferia. Sua formatura ocorreu no final de 2015, mas um ano antes ele já começava a gestar um projeto profissional que, ao contrário do que sonhava, faria com ele permanecesse no bairro onde nasceu e cresceu. Para transformá-lo.
Hoje com 22 anos, Matheus conversa com o EL PAÍS em um depósito cheio sacos de cimentos, galões de tinta e tijolos. Aqui funciona o Moradigna, um “negócio social”, como ele define, que reforma a um preço acessível as casas dos moradores do Jardim Pantanal e do Parque Paulistano, um bairro vizinho onde a empresa está sediada. As inundações, ele diz, já não são tão frequentes. Mas o objetivo é “retirar as famílias das condições de insalubridade de suas residências”, muitas delas com a umidade nas paredes, falta iluminação e de ventilação. “Retiramos o mofo, colocamos uma janela, instalamos uma porta, fazemos pintura, reboco, revestimento…”, explica.
Os serviços são planejados desde o orçamento até a entrega final. Estão incluídos todos os materiais de construção, a mão de obra e a gestão de uma “reforma express”, já que as obras geralmente duram apenas cinco dias úteis. Todo esse planejamento e rapidez são um dos pilares para que o serviço seja mais acessível aos clientes que não têm muito para gastar. “Nosso slogan é reforma sem dor de cabeça. Todos sabem como é doloroso fazer obra, ainda mais um público que tem menos condições financeiras”, argumenta Matheus. Outro diferencial é o fato de que as equipes de mão de obra, contratadas e pagas por demanda, vivem no próprio bairro. “Isso cria um empoderamento para a comunidade, gera renda para a comunidade, faz com que a riqueza fique dentro da comunidade”, sublinha. Para ele também fica menos custoso ter funcionários, pois não precisa pagar transporte, por exemplo, e por tornar mais fácil o vínculo da equipe com a clientela da região. “Eles gostam de estar transformando o bairro onde moram e os moradores gostam de contratar pessoas que eles conhecem ou vão ter um mínimo de afinidade e empatia”, explica.
Ele mesmo coloca a mão na massa, algo que aprendeu ainda criança, quando já participava de trabalhos voluntários e mutirões para ajudar as famílias que eram vítimas das enchentes. “Era muito importante não porque fosse legal fazer parte, mas era uma questão de necessidade mesmo, de precisar ajudar o vizinho. Mas eram soluções pontuais para um problema perene. Não resolvia”, conta. A infância de Matheus “foi bem comum dentro de uma realidade bem difícil”. Frequentava uma escola pública “conhecida por ser uma das piores da zona leste”, mas com o forte e constante incentivo de sua mãe não desistiu dos estudos. Fez o ensino médio em uma escola técnica do bairro da Penha e lá entrou em contato com o mundo do vestibular. Ganhou uma bolsa em um cursinho pré-vestibular e tirou uma nota alta no ENEM, o suficiente para ser aprovado em Engenharia Civil na universidade privada Mackenzie, considerada uma das melhores da cidade, e conseguir uma bolsa de estudos do ProUni, do Governo Federal.
Seu primeiro dia de aula foi também seu primeiro dia de estágio na Promon Engenharia e o primeiro dia que sua mãe Alice, até então empregada doméstica, já não precisou trabalhar — um dos objetivos de Matheus ao entrar na universidade. Sua vida tornou-se uma correria. Em determinado semestre, ele saia de sua casa no Jardim Pantanal às 3h30 da manhã para chegar às 6h ao trabalho, na Vila Olímpia, e lá ficar até o meio dia. Saia e corria para Higienópolis, onde a primeira aula começava às 13h e a última terminava às 23h. Finalmente chegava de volta ao Jardim Pantanal à 1h30 da manhã. “São três realidades completamente diferentes e sempre foi um choque para mim. Nunca sofri nenhum tipo de preconceito, mas sempre tive consciência de que esses ambientes não são desenhados para a gente, e sim para outro tipo de sociedade”, conta o rapaz, que chegou a ser efetivado na Promon Engenharia ainda durante a faculdade.
Em seguida, a vizinhança tornou-se clientela cativa. Andreia Barbosa, de 45 anos, por exemplo, mora com marido e filhos em uma casa no Parque Paulistano e precisava fazer uma obra em sua laje, que estava com vazamento. Acabou aproveitando para reformar a cozinha e a sala. Fechou a obra por 3.900 reais, que poderiam ser parcelados em 12 vezes no boleto ou no cartão de crédito.
O Moradigna ainda mantém uma parceria com um instituto que financia 10 reformas por mês para famílias da classe E que são atendidas por assistentes sociais e recebem o Bolsa Família. É o caso de Edna Pereira de Souza, 49 anos e moradora de uma pequena casa de tijolos sem reboco. Um de seus quartos, construído inicialmente para abrigar a cozinha, estava “com as paredes mofadas e bagunçadas”, segundo conta. O móveis foram passados para o andar de cima e as equipes do Moradigna em cinco dias refizeram as paredes e as revestiram com azulejos brancos. Os eletrodomésticos, que sempre ficaram na sala, finalmente ganharam um espaço só para eles. “Não custou nada. Fiquei muito feliz, mesmo. Foi um presentão”, diz Edna, que trabalhava como copeira, mas teve de parar de trabalhar por causa de problemas da coluna. Seu marido, marceneiro, está desempregado e faz alguns bicos.
Reformas como as que foram feitas nas casas de Andreia e Edna podem custar até 4.800 reais. A margem de lucro para a Moradigna é de entre 5% e 10%. Para chegar até aqui, Matheus diz que não fez tudo sozinho e que contou com a parceria de “dois sócios incríveis”: o contabilista Rafael Veiga, que viabiliza financeira e estrategicamente o negócio, e a arquiteta Vivian Sória. O trio trabalhava juntoem seu antigo emprego. Além deles, o Moradigna conta com outros seis funcionários no escritório envolvidos diretamente com a concepção dos projetos, além das equipes de pedreiros que realizam as obras. Já atendem toda a zona leste — ainda que os trabalhos estejam muito concentrados em Jardim Pantanal e Parque Paulistano — e pretendem expandir os serviços para outras regiões da capital.
Matheus está convencido de que o empreendedorismo social “é a chave de mudança”, e diz ser tão importante quanto a revolução industrial uma vez que “toda a realidade do trabalho mudará nos próximos 10 anos”. Os negócios, ele explica, “não vão poder existir se não melhorarem a vida das pessoas”. “O empreendedorismo social não existe só na periferia, mas na periferia sempre existiu empreendedorismo. Ele inclusive foi criado na periferia, por uma questão de necessidade das pessoas. O que falta é a profissionalização, é trazer conhecimento, inclusive de business, para transformar qualquer negócio que surja aqui em algo escalável para todas as periferias que precisam”, opina. Com apenas 22 anos, Matheus também já está casado, é pai de uma menina de um ano e meio e faz mestrado em Políticas Públicas.
Queria ganhar dinheiro, deixar seu bairro e um dia até se tornar o presidente da empresa onde trabalhava. “Mas essas diferenças também me fizeram enxergar que, ao invés de simplesmente deixar meu bairro, eu deveria criar pontes”, filosofa. Quando em meados de 2014 participou de uma oficina de empreendedorismo na universidade, a ficha caiu: se deu conta de que poderia atrelar uma carreira em ascensão ao bairro onde sempre viveu. Depois passou pela aceleradora Yunus Negócios Sociais e viu que o negócio poderia ser viável ao realizar, com a ajuda de seu padrinho pedreiro, a primeira obra do Moradigna: a reforma da casa de sua mãe.
Fonte: El País