Em investigação realizada no ICB-USP e no Institut Pasteur de São Paulo pesquisadores constataram que a neuroinflamação decorrente da síndrome congênita do Zika pode ser um fator de risco para o autismo.
Um estudo realizado pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) e pelo Institut Pasteur de São Paulo mostrou, pela primeira vez, que existe uma associação entre a síndrome congênita do vírus Zika (SCZ) e o autismo. Os pesquisadores descobriram que decorrências comuns da síndrome – como a neuroinflamação e problemas na formação da conexão entre os neurônios cerebrais (sinapse) – podem ser fatores de risco para o transtorno do espectro autista (TEA).
“O autismo é multifatorial, tem inúmeras causas genéticas e ambientais. No estudo, conseguimos provar que a síndrome congênita do Zika pode ser mais um desses fatores ambientais. Isso quer dizer que toda criança cuja mãe foi infectada pelo vírus Zika durante a gestação vai ter autismo? Não. Nosso estudo mostrou, no entanto, que nos casos de síndrome congênita do Zika o risco de autismo é aumentado”, explica Patrícia Beltrão-Braga, professora no ICB-USP, pesquisadora do Institut Pasteur de São Paulo, e autora do estudo publicado na revista Biochimica et Biophysica Acta – Molecular Basis of Disease.
A pesquisadora conta que já haviam sido descritos casos de crianças concomitantemente com a síndrome congênita do Zika e o transtorno do espectro autista. “No entanto, eram apenas estudos de relato de caso. Eu mesma fiz a análise genética de um estudo de caso desses e não encontrei nenhum gene relacionado ao autismo. Então, poderia ser só uma coincidência”, conta.
No trabalho realizado, no entanto, os pesquisadores puderam fazer uma investigação sobre os mecanismos que estariam afetando o sistema nervoso e causando o comportamento autista em crianças com síndrome congênita do Zika.
Vale destacar que o laboratório de Beltrão-Braga no IPSP tem como foco o estudo de desordens de neurodesenvolvimento e os possíveis caminhos inflamatórios em comum entre elas a partir de minicérebros – modelos simplificados do órgão cultivados in vitro e produzidos por meio de engenharia tecidual.
Portanto, os pesquisadores realizaram experimentos in vitro (com células do sistema nervoso produzidas no laboratório e infectadas com o Zika), e em camundongos que foram infectados com o Zika e manifestaram o comportamento chamado de “autista-like”. O estudo também investigou os dados de uma coorte com 137 crianças que nasceram com a síndrome congênita do Zika.
“Fizemos um ensaio a partir dos minicérebros e verificamos que havia uma série de alterações – como diminuição de sinapses, mais morte celular, neuroinflamação, alteração na captação de glutamato [aminoácido presente no sistema nervoso central] – que estavam impedindo o bom funcionamento dos neurônios. Notamos que a inflamação observada nas células do sistema nervoso parecia ser suficientemente compatível para causar alterações no comportamento de uma criança, a exemplo do que já tínhamos visto modelando células de crianças com autismo em outro estudo, 2018”, afirma Beltrão-Braga.
A pesquisadora explica que a origem do problema está nos astrócitos, células neuronais que dão suporte para que os neurônios sobrevivam no cérebro. “É o astrócito que dá sustentação, nutrição ao neurônio. Ele também elimina substâncias tóxicas no cérebro. Como o astrócito infectado funciona mal, ele não dá todo o suporte possível para a sobrevivência do neurônio. Além de funcionar mal, ele parece estar produzindo citocinas inflamatórias, o que piora o funcionamento do sistema nervoso”, diz.
Beltrão-Braga conta que em 2018 realizou um estudo parecido só que com modelagem e uma coorte formada por crianças apenas com autismo. “Notei que havia uma semelhança entre os resultados dos dois estudos. Por isso, fui buscar os dados da coorte de crianças que tinham nascido com Zika em Pernambuco. Das 130 crianças, sete tinham autismo. Isso dá mais de 5%, ou seja, mais que o dobro da incidência de crianças autistas no mundo, que de acordo com a Organização Mundial da Saúde é 1%. Isso significa que a infecção pelo Zika está contribuindo diretamente para o desfecho do autismo nessa doença”, diz.
Desta forma, os pesquisadores ressaltam que é provável que o autismo nas crianças com síndrome congênita do Zika seja um reflexo do astrócito alterado por consequência da infecção de Zika. “Acreditamos que a presença do vírus durante o período embrionário pode desencadear uma reprogramação epigenética [quando a exposição a ambiente adverso pode alterar a regulação de genes durante o desenvolvimento embrionário]”, afirma.
A neuroinflamação de crianças com autismo já havia sido relatada em estudos anteriores. “Descrevemos esse achado há alguns anos e vários trabalhos já confirmaram que crianças com autismo têm o cérebro neuroinflamado. O interessante é que a neuroinflamação tem sido alvo de busca de fármacos. Alguns grupos de pesquisa estão trabalhando no sentido de buscar moléculas que possam modular essa neuroinflamação, observada no Alzheimer e no autismo também. Isso tem sido apresentado como um possível alvo farmacológico de tratamento”, diz.
O artigo Zika virus infection impairs synaptogenesis, induces neuroinflammation, and could be an environmental risk factor for autism spectrum disorder outcome pode ser lido em Link.