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O impacto da pandemia na formação da personalidade da criança em idade escolar

Por Carolina Manzato


Sabíamos das pandemias e de seus efeitos por relato
s. Relatos pertinentes às aulas de História, provenientes do diálogo com pessoas mais velhas, de representações em filmes, em documentários. Viver a pandemia do Novo Corona Vírus, como toda experiência em que se imerge, nos fez acender a lanterna sobre aspectos nem sempre pensados ou ponderados, via relatos, de modo integral.

 

Reinventar a Educação Escolar

Não desconsiderando todas as dificuldades ou impedimentos de acesso às aulas remotas em países onde a desigualdade social impera, como aqui – se fez. Assim, nossas crianças e adolescentes, estão, desde março, afastadas do ambiente escolar, do convívio com colegas, professores e equipe escolar, como também estiveram crianças e adolescentes de outros lugares do mundo.

​Ao ser perguntada a respeito dos possíveis prejuízos à formação da personalidade dos estudantes diante do afastamento escolar atrelado à pandemia de COVID-19, proponho como caminho à resposta- para que se faça lógica e coerente – levantarmos as contribuições promovidas pela escola nesse aspecto.

Fragmento Social

​Trata-se a escola de um fragmento social. Dentro desse microcosmo, a personalidade da criança se forma na interação de modo geral (contato com colegas, com professores/as, com  inspetores/as, com coordenadores/as, com diretor/a, com a equipe da merenda, da cantina, da portaria, com secretário/as, com o ambiente, dentro dasdinâmicas rotineiras pertencentes ao mesmo). Estudos acerca da legitimação dos valores morais e materiais voltados a esse aspecto dentro da Educação Escolar comprovam que o aprendizado e as decisões sobre os comportamentos não se dão apenas durante as aulas que se voltam a este assunto, mas a todo tempo, em todos esses contatos que apontei.

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O coletivo e o individual

Ainda segundo os estudos mencionados, o sucesso em relação à assimilação e escolha pelo comportamento que favorece o coletivo e o individual- a chamada legitimação dos valores morais (que tanto nos preocupa, e que, de fato, interfere na vida coletiva) se dá diante: da crença em si e em seu potencial de realização, da sensação de pertencimento ao grupo, de sucesso no traçar projetos de vida e no cumprimento dos mesmos, da resolução de conflitos via diálogo e da sensação de que as regras são justas e se aplicam a todos e todas.

Descolando do ambiente escolar

Descolando do ambiente escolar, ao se pensar por esse espectro, nos leva, muito provavelmente, a formular a hipótese de que esses aprendizados ficariam estacionados junto com todas as possibilidades de interação pertinentes ao universo escolar. Engano nosso. Se a Educação, em seu sentido amplo, se dá na interação e a interação se intensificou no seio familiar, os aprendizados provenientes das relações sociais foram para esse lugar transferidos.

Modelos comportamentais

​Ora, se a interação prossegue, tais aprendizados prosseguem também por consequência. A criança internaliza modelos comportamentais, participa de e ouvediálogos, assiste ao que lhes é permitido via midiática. E,nesse exercício de pensar sobre a formação da personalidade estando a criança em contato com a família em tempo integral, salvo exceções daqueles e daquelas que mantiveram cuidadores profissionais, levo a reflexão a outro campo: será que não estamos incomodados com o modo como temos operado em nossas vidas e isso se escancarou diante da presença integral de nossos filhos e filhas?

O papel da escola

​Explico: delegamos à escola o papel de formadora, no sentido comportamental e emocional inclusive, um pouco mais, a cada vez que optamos, como sociedade, por ampliar o tempo da criança de permanência em seu território, e nos tranquilizamos quanto a sermos modelo ou a sermos orientadores/conselheiros. De modo prático: como mãe cansada que sempre estou, posso passar mais tempo diante da TV, não preciso me preocupar em demonstrar à criança que leio, ou ler com ela, pois a escola já se ocupou da tarefa de oferecer o modelo leitorenquanto a criança esteve por lá. Ou: posso comer um congelado, pois meu filho ou minha filha já comeu algo nutritivo na escola. Assim também o banho já foi por lá tomado e os diálogos voltados aos assuntos desconfortáveis já aconteceram. Sei que a professora fez uma roda de conversa e meu filho contou por que bateu no amigo lá naquele momento.

Além do conteúdo

​Estamos mais habituados a cobrar da escola que lá se faça tudo a contento do que de estabelecermos parceriasrelativas aos processos formativos, tanto dos que se referem aos conteúdos, quanto dos que se referem à formação emocional e moral. Posso garantir, pelo meu tempo de experiência escolar, que o número dos pais e responsáveis que se acomodam sobre o trabalho “especializado” se sobrepõe ao número dos que querem e dos que conseguem de fato se comprometer.

Ambiente escolar em casa

​É inegável que a vivência escolar tem nuances que não se pode reproduzir em ambiente caseiro. Muito se tem dito sobre o quanto o ensino presencial é fundamental. E é mesmo. Mas devo alfinetar: o momento pelo qual estamos passando é também contentor de muitos aprendizados. Em especial aprendizados pertinentes à vivência coletiva, ao altruísmo e à valorização da vida.​

Sobrecarga na pandemia

Infelizmente, para além de professora, olho e analiso tudo também como mãe e noto que o desgaste por termos nossos filhos e filhas o tempo todo em casa é fruto da sobrecarga de trabalho que indisponibiliza nossa atenção e nosso tempo, da nossa percepção de que nossas escolhasnão são ideais, portanto não somos bons modelos (de autocuidado/ de cuidado com o outro, de cuidado com o ambiente) a serem seguidos. E sabemos, ainda que intuitivamente, que o ser humano espelha em seu comportamento aquilo com o que convive. Mais, lida com seu emocional da maneira como aprendeu a elaborar sensações e emoções. Estamos abalados e abaladas, no momento pandemia, porque abalada ficou a esperança naterceirização que nos cobre nas tarefas do cuidar e do educar.

Conclusão

Entretanto, não posso finalizar a minha reflexão sem considerar, como bem disse no início deste texto, as diferenças sociais que nos acometem. Sem olhar para fora da minha bolha de pessoa privilegiada que tem podido trabalhar em casa com as filhas no colo e que sabe que traçou uma ideia com base neste lugar de fala e de vivência. Precisamos, para um apanhado mais amplo e concreto, na busca pela compreensão do impacto da pandemia na formação da personalidade da criança, pensar – inclusivamente – nas crianças (e são muitas) que, por impossibilidade financeira, enfrentaram junto da suspensão escolar: a ausência dos pais (por impossibilidade de adequação do trabalho do presencial para o remoto), a falta de alimentos, a tensão pela incapacidade da proteção contra o vírus por falta de itens de higiene, por exemplo, e a morte (em si, não apenas aiminência) de entes queridos.

Carolina Manzato: educadora, mamãe da Cora, sócia da casa de criar escritório de arte, idealizadora do “Ações Literárias” e do FAL.
Graduada em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2003) – Campus de São José do Rio Preto (IBILCE) e mestra em Educação pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar (2008), com enfoque em Educação de Jovens e Adultos e dedicação à obra de Paulo Freire, seu respaldo teórico.
Professora universitária (há mais de dez anos), atua na área da Educação, em cursos de graduação em Pedagogia e em cursos de pós-graduação da área, ministrando disciplinas cujo enfoque sejam Linguagem, Leitura e Política. Psicopedagoga pela FAMERP/Rio Preto (2010) debruçou-se sobre o funcionamento cerebral e seus aspectos, e implicâncias em torno da aprendizagem e da produção oral e escrita.
Desde 2015, é sócia-proprietária e diretora executiva da casa de criar, escritório de arte e está à frente dos projetos formativos relacionados à Língua Portuguesa que são promovidos pelo espaço.
Idealizadora do FESTIVAL AÇÕES LITERÁRIAS, o primeiro festival literário de SJ do Rio Preto (realizado em outubro de 2019). É mentora e mediadora da RODA DE LEITURA DA CASA. É idealizadora, curadora e facilitadora do projeto de incentivo à leitura CASA DE CRIAR: AÇÕES LITERÁRIAS (apoiado pelos Proac 36/2017 e 38/2018), em execução nos anos de 2018 e 2019. E selecionada no edital Nelson Seixas Literatura 2019 com o projeto RODINHAS LITERÁRIAS.
É colunista na rádio CBN Grandes Lagos, com o quadro Educação em Pauta, às quintas, às 10h.
Em 2020, tempos de pandemia, vem realizando o projeto Leitura é Conexão, uma coletânea de fotos e narrativas em torno da leitura na infância, no Instagram e no Facebook; além disso, se movimenta em torno do projeto Casa de Vestir (bazar/brechó), buscando promover reflexão em torno dos modos de consumo contemporâneos.

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