Indivíduos nascidos com características sexuais e biológicas não totalmente femininas ou masculinas, como variações genitais e/ou de cromossomos (homens possuem um cromossomo X e um Y, e mulheres têm dois XX), poderão ser registrados com o marcador de gênero “diverso”. Desde 2013, é possível deixar essa informação em branco nesses casos na Alemanha.
Segundo a ONU, cerca 1,7% dos bebês nascidos no mundo não possuem características masculinas ou femininas claras, uma proporção tão frequente quanto a da população global de ruivos.
O termo intersexual abarca pessoas que nasceram com variações genéticas ou corporais (visíveis ou não) que não se encaixam exatamente na definição de masculino ou feminino. Segundo a Sociedade Intersexual dos EUA, pode ser, por exemplo, uma pessoa de aparência feminina que tenha uma anatomia interna tipicamente masculina; ou uma garota que nasce sem abertura vaginal ou um garoto que nasce com saco escrotal semelhante a um lábio genital.
É uma característica biológica – não diz respeito, por exemplo, à orientação sexual ou à identidade de gênero dessa pessoa.
Corte força legislativo a abordar o tema
O projeto de lei alemão foi criado pelo Ministério do Interior após a Corte Federal Constitucional decidir em outubro passado que a lei de status civil alemã era discriminatória contra pessoas intersexuais.
Segundo o tribunal, os direitos fundamentais de um adulto intersexual registrado no nascimento como mulher foram violados quando ele/ela tentou, sem sucesso, alterar seu gênero para “inter/diverso” em seus documentos.
Os juízes da Corte entenderam haver violação do direito geral à personalidade se não existir na lei a possibilidade de se registrar uma terceira “entrada positiva” de gênero para as pessoas que não podem ser assinaladas como homem ou mulher no nascimento. Não oferecer essa outra opção, eles argumentaram, seria uma intervenção injustificável e discriminatória. Logo, a Corte definiu que o Legislativo criasse uma terceira categoria ou dispensasse qualquer informação sobre gênero no registro civil.
O projeto de lei do gabinete adotou o marcador “diverso”, mas definiu que crianças precisam ser declaradas como intersexuais por médicos para usarem esse gênero. Um certificado de “variação de desenvolvimento sexual” também será exigido de adultos e jovens maiores de 14 anos que quiserem alterar seus marcadores de gênero no escritório de registro civil.
Ativistas
A exigência da participação médica no processo motivou duras críticas de associações para direitos de pessoas intersexuais e de organizações de direitos humanos, que acusam o projeto de continuar a patologização desses indivíduos.
“Eles enfrentam discriminação e são tratados como doentes todos os dias. Pessoas intersexuais não são doentes, apenas possuem uma identidade de gênero não binária (feminina ou masculina). Ter que ver um médico para decidir sobre a sua própria identidade de gênero os patologiza novamente”, argumenta Jana Prosinger, chefe de política internacional de gênero da Fundação Heinrich Böll, ligada ao Partido Verde alemão.
Há também questionamentos sobre violação de privacidade e dificuldades para conseguir certos documentos exigidos pelo projeto de lei. “Para acessar esse terceiro gênero, os interessados terão que oferecer informações pessoais detalhadas a autoridades e apresentar certificados médicos que podem ser impossíveis de obter para muitos intersexuais. É normal que eles/elas não possuam acesso completo ao seu histórico médico”, explica Kitty Anderson, copresidente da Organização Intersexual Internacional Europa (OII Europe).
“Isso significa que pessoas adultas que se definem como intersexuais precisariam fazer um grande número de exames, o que pode acarretar em mais traumas”, completa Prosinger.
Sem marcação de gêneros
Apesar de reconhecer que a medida torna mais simples para crianças intersexuais e jovens adultos mudarem seus gêneros no futuro, a organização Bundesvereinigung Trans* e.V. criticou que “médicos sejam os guardiões do reconhecimento de gênero”, apontando que a identidade de gênero não pode ser determinada apenas por características corporais e destacando a violência que intersexuais sofrem no sistema de saúde.
Para a organização Intersexuelle Menschen e.V., o projeto não segue as demandas da Corte Constitucional Federal e desconsidera que apenas 25% das crianças intersexuais são identificadas como tal no nascimento.
“Não tenho conhecimento de oposição direta à proposta, mas os grupos (ligados ao tema) compartilharam suas críticas com o Ministério (do Interior). Infelizmente, apenas o nome do gênero foi aceito de nossas sugestões e todos os demais pontos foram aparentemente ignorados”, diz Stefanie Klement, presidente da organização, à BBC News Brasil.
Organizações ligadas ao tema queriam que o governo alemão seguisse o conselho da Corte Constitucional e abolisse o registro de qualquer gênero das certidões de nascimento. Isso serviria para evitar discriminação contra crianças intersexuais.
“As crianças que não podem ser designadas a um gênero serão colocadas como ‘diverso’ porque não é algo opcional. Isso viola o direito de uma criança à privacidade e pode levar a uma maior discriminação, porque elas vão ser expostas quando precisarem mostrar a certidão de nascimento”, afirma Anderson.
Segundo Prosinger, manter um marcador de gênero nas certidões força médicos a decidirem sobre algo que seria uma escolha pessoal. “Um dos traumas que ocorrem com frequência é que as genitais de um bebê podem parecer com as de uma menina ou menino, mas seus hormônios e cromossomos, não. Então, a aparência física não significa nada.”
O projeto também foi criticado por excluir transexuais que não se identificam com o gênero binário.
O Ministério do Interior, por outro lado, defende que o projeto de lei atende “completamente às determinações” da Corte Constitucional Federal e que o governo acatou as sugestões de várias associações para usar o termo “diverso”, com objetivo de escolher uma definição “não discriminatória”.
De acordo com Sören Schmidt, porta-voz do Ministério do Interior alemão, como o prazo do tribunal para o Legislativo implementar as provisões era para o final deste ano, foi “necessário restringir a lei aos regulamentos relevantes e não vinculá-la a uma reforma da lei sobre transexuais”.
Sobre a avaliação médica para acessar o gênero “diverso”, Schmidt disse que “o certificado não precisa conter um diagnóstico preciso; em vez disso, o atestado médico é suficiente para mostrar que a pessoa afetada tem uma variante do desenvolvimento sexual”.
Para Prosinger, o governo poderia ter sido mais “corajoso” para “de fato implementar uma lei antidiscriminatória”.
“Não estou certa de que a sociedade esteja preparada para (abolir o gênero da certidão de nascimento) e tenho certeza de que haveria alguma reação contra. A longo prazo, contudo, esperaria que as pessoas percebessem que isso não lhes causa nenhuma desvantagem, mas todos que tem gêneros não binários e que querem decidir sobre sua identidade de gênero não seriam estigmatizados e traumatizados.”
Fonte: BBC Brasiil