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OPINIÃO: Paternidade coletiva: SOS Unitins, um movimento dos estudantes

O movimento social coletivo que reverteu a privatização da UNITINS e garantiu a criação da UFT

Por Ana Maria Negreiros

Um reitor na berlinda, um coordenador amado destituído da função por questões políticas, laboratórios existentes apenas no papel, uma qualidade de ensino duvidosa e os alunos verdadeiras cobaias. E ainda, a chegada de um general para reitoria, o qual, com sua cultura militar, queria interferir até nos nossos jogos universitários.

De 1998 a 1999, a Unitins viveu um caos instalado. Em meio a essa turbulência, havia um grupo de estudantes que acreditava na liberdade do pensamento e da expressão e que jamais aceitara passivamente os desmandos ali cometidos. Eles defendiam a ideia de que, ao se posicionarem, poderiam ser ouvidos pela sociedade e, assim, pressionar para serem também escutados dentro da instituição. É que, assim como na Ditadura, ter voz dentro da Unitins era apenas desejo. Palavra cassada fazia parte do dicionário adotado.

Foi assim que o movimento estudantil, único a reverter um processo de privatização no Brasil, mudou o rumo da história tocantinense. E isso só foi possível porque todos se uniram em torno de um propósito nobre e coletivo: a educação pública, gratuita e de qualidade. Começou com os acadêmicos e, depois, se tornou uma causa da sociedade tocantinense, que a apoiou e defendeu.

A mobilização

As primeiras iniciativas nasceram ali, em uma pequena sala da biblioteca. Na época, alguns estudantes faziam parte. Como dizíamos: “éramos uma meia dúzia”, da qual faziam parte Élsio Paranaguá, José Filho, Gilvan Nolêto e eu. Vivenciamos ali uma verdadeira tempestade de ideias. E a cada ideia que surgia, o debate prosseguia e sempre vinha: por que e como fazer. Precisávamos por um ponto final no que, para nós, era uma verdadeira ditadura.

Logo, a chama acesa pelo primeiro grito trouxe a força da Engenharia Ambiental, a agilidade da Tecnologia da Informação, a sabedoria da História, os cálculos da Economia, o pé no chão das exatas, a criativadade da Arquitetura e a união de todos os demais cursos. Uma hora vou escrever para citar um a um e como cada campi fez o movimento ter uma só voz.

A partir daí, promovemos várias mobilizações, eventos pontuais e as roupas pretas tornaram-se marca registrada. Dessa integração, cada passo dado tornou-se uma conquista. Cada curso foi, em um conta-gotas, recebendo alguma melhoria. Era lento e só acontecia após a intervenção dos alunos. Tínhamos necessidade de ter um ensino de excelência para que o sacrifício de cada pai, que lutava para pagar a mensalidade de 220 reais, pudesse valer a pena. O diploma precisava sair de verdade, jamais aceitaríamos que fosse o faz de conta. E os cursos? Estavam ilegais. Havia muito a ser feito. A gente era levado para abraçar árvores e imaginar itens essenciais para nossa formação, os quais, simplesmente, estavam distantes da nossa realidade. Tudo era lindo, apenas na propaganda oficial.

A motivação

Agora, associe a falta de qualidade com o sacrifício das famílias em um Estado totalmente dependente do poder público e economicamente pobre. E todos nós, para estudar, precisávamos pagar e, para completar, queriam privatizar a única universidade pública que existia. E aqui, tomo liberdade de falar da minha própria história.

Dona Izabel Cunha, minha mãe, visitava o banco todo ano para renovar o empréstimo e, assim, pegar o dinheiro necessário para pagar o débito na Unitins e eu poder estudar. Ela, modeba doente, era assim que os peemedebistas eram chamados, jamais veria a filha ser agraciada com uma bolsa. Como eu, vários que precisavam, jamais viram. Sim, além de pagar faculdade, eu tinha que custear as despesas. Era a realidade da Unitins, que sequer tinha restaurante universitário e o lanche no campus era em um trailer com produtos caríssimos. Era o que tínhamos.

Estudar, para nós, era desafiador. A gente tinha muita vontade. Enfrentávamos coletivos lotados e escassos. Se perdêssemos o horário, só havia uma saída: pegar um mototáxi e, honestamente, faltava dinheiro para isso. Até porque já estávamos estudando onde hoje é a UFT, e ali, naquela época, era fora de Palmas. Para completar, sofríamos com a falta de energia e de professor e, ainda, convivíamos com animais diversos fugindo do lago em formação, que surgiam do mato que cercava o campus. Os animais estavam no habitat deles, nós que tínhamos acabado de chegar.

Naquele tempo, faziam o que bem entendiam com os estudantes. Tanto que imposições ocorriam sempre, que digam as turmas que tiveram que visitar, a pé, o Parque das Árvores Queimadas, pegando o “solzinho” de Palmas em agosto. Foi exatamente por acreditarem que poderiam fazer qualquer coisa, que decidiram nos vender para o ITPAC. Isso mesmo, a notícia na rádio corredor era: “a Unitins será vendida de porteira fechada para o ITPAC”. Esse foi o gatilho para o nosso basta. Chega de ditadura.

A criação e o ego

Nosso DCE, enquanto Diretório Central dos Estudantes, liderado pelo Élsio Paranguá, convocou a comunidade estudantil para debater o que deveria ser feito. Primeiro, foi realizada uma reunião com os CAs – Centros Acadêmicos de Palmas, Porto e Paraíso. Alguns vieram. Então, pela primeira vez, vi todos, por unanimidade, falarem: é agora ou nunca!

Em seguida, o DCE convocou a Assembleia dos estudantes, e ali, por aclamação, em cada um dos campi, criamos o SOS Unitins. Foi unanimidade? Jamais. Havia vários estudantes que dependiam dos políticos. E no Tocantins, quem falava contra, ia para a lista de perseguidos. Lógico que vieram para o meio, para a comissão, vários pelegos. Assim chamávamos os “agentes duplos”.

Sejamos honestos. Foi assim que a história do Movimento SOS Unitins começou. Ela é bem diferente do discurso feito pelo meu ex-professor, ex-reitor da UFT e, hoje, presidente da Fapt. Ele, quando professor, falava sobre a importância da ciência e que contra fatos jamais há argumentos. Depois, o homem da ciência, quando se tornou gestor e, consequentemente, virou político, passou a rasgar a história comprovada. Tornou-se parcial, a ponto de, em um discurso na Assembleia Legislativa, deixar a verdade de lado apenas para agradar a políticos. Fato este que espero que seja corrigido.

Lamentavelmente, a tentativa de desconstruir o SOS Unitins é uma prática apoiada pelo “professor do tomate Drica” (era assim que, carinhosamente, ele era citado em nossa época de estudantes). Foi esse mesmo professor que, inclusive, comprometeu as festividades de aniversário da UFT. Para isso, ele e um grupinho deixaram de lado, engavetado no esquecimento, a data de 23 de outubro de 2000, quando foi sancionada e publicada a Lei n° 10.032, que criou a Universidade Federal do Tocantins.

Para o “professor do tomate” e seu grupinho, o aniversário é 15 de maio e a UFT, ao invés de completar 23 anos em 2023, só fará 20. Tudo isso para atrelar à posse dos professores. Assim, deixaram de comemorar a criação para celebrar a “efetividade”. Manipularam a história. O motivo? Interesses políticos e de promoção pessoal de alguns. Só posso dizer: professor, o ego é o seu maior inimigo. A história, por mais que se tente apagá-la, sempre vem à tona.

A verdade histórica

Saibam que o SOS Unitins é um exemplo de trabalho em equipe. Como time, cada um de nós tinha sua função. Alguns, discursavam. Outros, preparavam o discurso, a logística dos atos, iam para praça pública. Mobilizavam. Havia quem distribuía a informação em uma época que sequer havia comunicação digital como a de hoje. Eram muitos e-mails compartilhando a nossa história. Tinha também quem pegava o carro e viajava para todos os campi para deixar material. Trabalhávamos de forma coletiva, em equipe, unidos. E sabem o motivo?

É que o Movimento SOS Unitins jamais teve um único criador. O SOS Unitins sempre foi um movimento de todos e para todos. E ele segue sendo de todos nós. Afirmo, com total segurança, temos em nós a lembrança de cada sofrimento pelos quais passamos. Assim como, recordamos muito bem das perseguições desproporcionais que muitos sofreram. Bem como, o sabor do abraço da nossa família, que vibrou quando deixamos de pagar mensalidade. No meu último ano na graduação, em 2001, eu estudei na Unitins pública e gratuita. Hoje, exibo, com orgulho, o meu diploma da Unitins que ajudamos a construir.

Há 23 anos, gritamos em praça pública que a Unitins era nossa. Hoje, grito que o SOS Unitins é nosso. Sua paternidade é coletiva, com pais e mães espalhados por todo o Tocantins. E certamente, pelo mundo. O SOS Unitins foi criado por estudantes e liderado por vários homens e mulheres. Agora, se precisam tanto de um criador, de falar em paternidade, o Gilvan Nolêto, meu veterano e conterrâneo, tem uma frase célebre que pode ser utilizada nos discursos políticos: “se a UFT teve um pai, esse pai se chama SOS Unitins”. Fiquem à vontade, porque essa história é verdadeira.

Além disso, sobre o SOS Unitins, também sugiro que contem que: foi um movimento democrático, livre, apartidário, que envolveu todos os campi do Estado, acadêmicos de todos os cursos e estudantes secundaristas que entrariam na faculdade e sabiam que jamais teriam recursos para custear uma universidade paga.

O mínimo que pode ser feito é contar a história como ela é. É só isso que esperamos. Até porque o SOS Unitins é o exemplo de que, quando a sociedade se une, pode promover a mudança que desejar. Afinal, foi por meio do SOS Unitins que a sociedade tocantinense conseguiu conquistar o propósito tão nobre de ter, no Estado, o ensino superior público, gratuito e de qualidade.

Em lutas sociais, os movimentos são coletivos. E o SOS Unitins é o exemplo de que podem até caçar a palavra, mas a democracia existe para ser utilizada.

Sou Ana Negreiros, fui presidente do Centro Acadêmico de Comunicação Social, assessora de imprensa do DCE da Unitins e militei, como líder, no SOS Unitins, movimento criado pelos estudantes. E tenho orgulho da nossa história coletiva, de todos, com todos e para todos.

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