Já é sabido do senso comum que a vegetação do Cerrado necessita da queimada anual para se reproduzir a cada novo ciclo. Mas essa queimada não é a induzida por seres humanos: é a queimada natural que ocorre a partir das características próprias desse bioma. Na verdade, as queimadas induzidas em nada contribuem para a reprodução do Cerrado…
A partir da década de 1960 o Cerrado passou por uma ressignificação na sua representação enquanto espaço que pudesse servir à dinâmica capitalista. Até então, as terras de Cerrado, especialmente nos Estados de Goiás, Mato Grosso e Tocantins, eram tidas como terras ruins, sendo assim aproveitadas basicamente para a pecuária extensiva. Porém, a consolidação do mercado nacional e a necessidade do Centro-Sul do país, liderado por São Paulo, de incorporar novas áreas produtivas para a produção de alimentos que atendessem às suas demandas internas provocou uma modernização do campo no Cerrado.
Novas técnicas agrícolas, como a introdução de máquinas, e a utilização de insumos estimulantes e corretores do solo fizeram do Centro-Oeste brasileiro um novo eldorado da produção agrícola nacional. Obviamente, na contramão dessa condição, o Cerrado foi gradativamente sendo descerrado… O desflorestamento na região atingiu, nos 50 anos entre as décadas de 1960 e 2000, patamares assustadores, conforme se pode consultar no sítio Observatório da Terra, do INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, vinculado à Presidência da República. Segundo o professor Altair Sales, da PUC-GO, um dos maiores especialistas mundiais sobre o Cerrado, em Goiás esse bioma praticamente já não existe mais, pelas alterações estruturais de suas características.
O Tocantins, apesar de constituinte da região Norte e da Amazônia Legal, tem 90% de sua vegetação constituída de Cerrado. Porém, projetos de desenvolvimento da agricultura, especialmente capitaneados pelo MATOPIBA, constituem ameaça futura à incidência desse bioma em nossas terras. Não estamos aqui falando de ações voluntárias; estamos falando de ações coordenadas pelo Estado, o que as classifica como políticas públicas. Obviamente, isso soa contraditório, uma vez que se choca com o discurso de controle do desmatamento e da preservação dos biomas.
A partir da segunda metade da década de 2000 o Brasil registrou um maior controle no desmatamento do Cerrado. É o que demonstra os dados revelados pelo INPE.
Gráfico comparativo do desmatamento no Bioma Cerrado por ano
Fonte: INPE/Observatório da Terra. Disponível no sítio: http://www.obt.inpe.br/OBT/noticias/inpe-divulga-dados-sobre-o-desmatamento-do-bioma-cerrado. Acessado em 27/-8/2019.
Porém, o aumento exponencial da agricultura da soja nesse período fez avançar sobre a Amazônia as novas áreas agricultáveis, colocando pressão e risco à floresta. É o que demonstra o gráfico a seguir.
Por decorrência, enquanto se conteve o desmatamento do Cerrado, aumentou-se o desmatamento sobre a floresta Amazônica, principalmente na borda da região da Amazônia Legal, no entorno das principais rodovias que cortam a região. É o que demonstra o mapa a seguir, destacado pelas cores lilás e amarelo.
O que se percebe com tais demonstrações é que o agronegócio brasileiro tem provocado um “efeito cupim” sobre dois dos mais importantes biomas mundiais: o Cerrado e a Floresta Amazônica. Depois de ter carcomido entre 1960 e 2000 as matas que são próprias do Cerrado, o “cupim” do agronegócio encontra-se hoje nas bordas da Floresta Amazônica e bota pressão pra entrar. Por sua vez, o Estado brasileiro bate cabeça buscando resolver o dilema de proteger e preservar os biomas e, ao mesmo tempo, contemplar os interesses do capital agrário constituído por produtores nacionais em associação com indústrias de transformação internacionais.
Escapa à percepção da elite econômica brasileira a possibilidade de investir o seu capital em patentes e explorações possíveis pela manutenção da floresta e do Cerrado. A biodiversidade desses dois biomas gera “n” situações de riqueza a partir do que neles se pode produzir. Remédios e curas; alimentos; venenos e morte; soluções energéticas, para o solo, para o clima; minérios, água, vida. Grande parte da solução que o mundo espera hoje tem resposta na Floresta Amazônica e no Cerrado. Então não se trata apenas de reproduzir um discurso ambiental de preservação da floresta e da mata para combater o aquecimento global e manter o clima ameno. É mais do que isso: é também negócio e é também a vida.
Lamentavelmente, em 2019 chegamos ao cúmulo da incompreensão do que tudo isso representa. Na Ciência Política há o entendimento de que política pública “é tudo aquilo o que um gestor faz ou deixa de fazer, bem como os impactos de sua ação ou omissão”. Até mesmo a fala de um gestor pode ser considerada uma política pública, porque ela induz, gera expectativa, altera o comportamento. Foi assim que chegamos neste ano na maior atrocidade contra o Cerrado e a Floresta Amazônica. Falas despreocupadas do presidente da República do Brasil contra sistemas de preservação da Amazônia, em especial, incitaram grupos de fazendeiros a criar o “Dia do Fogo”, certos de que não seriam punidos por isso.
Para além das falas do presidente, a sua incitação à delinquência e ao ódio associada ao desmonte das políticas de monitoramento, controle e preservação da Amazônia foram estimulantes para tal descalabro civilizatório. Simbolicamente, mais grave do que tratorar ou devastar com correntões é incendiar a floresta, pois do fogo que decorre não se tem controle. E os resultados são esses demonstrados no próximo gráfico.
A transpiração da Floresta Amazônica produz o fenômeno dos “rios voadores”, que são cursos de água atmosféricos que fazem precipitar as chuvas no Cerrado, que por sua vez funcionam como inibidoras naturais das queimadas naturais desse bioma. A água que molha o Cerrado penetra o solo através de suas gramíneas com raízes que medem mais de um metro e não só viabilizam as três maiores bacias hidrográficas da América do Sul (Amazônia/Tocantins, São Francisco e Prata), como também abastecem importantes aquíferos, que são os reservatórios de água doce do planeta.
Sem a Floresta Amazônica não há rios voadores, e sem esses não há a possibilidade de repovoar o Cerrado. A inexistência desses dois biomas coloca em risco as maiores reservas de água doce do planeta que, agravado pela elevação do clima, produzirá inevitavelmente a alteração de sua biogeoestrutura, o que significa o começo do fim.
As queimadas promovidas pelo agronegócio são um péssimo negócio!
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Adão Francisco de Oliveira é historiador e sociólogo, doutor em Geografia, professor da UFT e ex-secretário estadual de Educação do Tocantins.