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Quem são os indígenas isolados do Pará que senador diz não existirem

Foto mostra os danos à floresta na terra indígena Ituna Itatá, a mais desmatada do Brasil em 2019 – Foto – JUAN DOBLAS/ISA

Eles são fortes, têm cabelos longos e possivelmente falam a mesma língua que índios de povos da Volta Grande do Xingu, no sudoeste do Pará.

Os relatos sobre índios isolados da terra indígena (TI) Ituna Itatá são de pesquisadores e de outros índios que vivem nas proximidades da região, que virou foco de pressões de grileiros na última década com a construção da hidrelétrica de Belo Monte e com o projeto da mineradora Belo Sun.

Essas informações estão em relatórios técnicos da Funai, que fez expedições ao local e pediu a interdição da terra em 2011 para estudos mais detalhados.

Quando uma terra indígena está sob interdição, apenas pessoas autorizadas pela Funai podem transitar no local. É o que acontece nos 1.420km² da Ituna Itatá — aproximadamente o tamanho da cidade de São Paulo. Em fevereiro, um antropólogo bolsonarista foi preso por entrar sem permissão na área.

Entretanto, mesmo diante do vasto material indicando a existência dos índios isolados na Ituna Itatá, o senador Zequinha Marinho (PSC-PA) protocolou um projeto de decreto legislativo no começo de março pedindo o fim da interdição, garantindo que não há índios isolados na região baseado em “conhecimento de causa”.

O que o senador coloca em xeque são mais de 30 anos de dados coletados por indigenistas e pesquisadores ligados à Funai.

Em 1989, o órgão fez a primeira expedição oficial na região para localizar índios isolados. O grupo, liderado pelo sertanista Afonso Alves da Cruz, coletou relatos de índios Asurini que deram informações “concretas sobre a presença dos referidos isolados”.

A mesma expedição ainda obteve relatos de um colono que vivia nas proximidades e viu perto de um igarapé afluente do rio Bacajá “três índios bravos de cabelo comprido que, ao verem-no, correram para o mato”.

As informações coletadas pela Funai na década de 1980 já apontavam não apenas a existência de índios isolados na região, mas inclusive a possibilidade de ser mais de um grupo.

“Com esses relatos podemos arriscar uma hipótese de que tenhamos na TI Ituna Itatá mais de um grupo de índios isolados, podendo, inclusive, serem de povos/etnias e famílias linguísticas diferentes, ou subgrupos distintos”, cita relatório da Funai obtido via Lei de Acesso à Informação.

Apesar dos dados coletados na expedição terem sido considerados consistentes, a região continuou sem estudo de demarcação por um longo tempo.

Para Elias dos Santos Bigio, ex-coordenador-geral de Índios Isolados e Recém Contatados da Funai e atualmente aposentado, a região era isolada e levantava pouco interesse de posseiros, então o órgão não tratou a área como prioridade. Isso mudou no final dos anos 2000.

“Com o anúncio do projeto da hidrelétrica de Belo Monte, o interesse de grileiros e madeireiros se voltou para a região. Até então, os índices de desmatamento eram baixos. Isso trouxe a necessidade de a Funai preservar os povos indígenas que vivem lá e a interdição foi uma solução imediata”, explica Bigio.

Dados do sistema Prodes, do Inpe, confirmam o que ele diz. Até 2010, o desmatamento registrado foi de 63 hectares, ou 0,63 km². Mas, a partir de 2011, o número passou a crescer. De agosto de 2018 a julho de 2019, a Ituna Itatá registrou a perda de 119,9 km² de floresta nativa, representando quase 30% do desmatamento de todas as terras indígenas do país no período.

Segundo a ONG Rede Xingu +, 79% da perda de mata na Ituna Itatá ocorreu nos últimos dois anos e, nesse ritmo, não haverá mais floresta na região em 2024.

Esse avanço da grilagem tornou o trabalho da Funai mais perigoso, afirma um ex-servidor que prefere não se identificar.

“Até Belo Monte, o máximo que se encontrava naquela região eram pessoas coletando folha de jaborandi, que serve para cosméticos. Depois chegaram os grileiros e até a entrada da Funai ficou mais arriscada. Em 2015, alguns servidores foram ameaçados com armas por pessoas que estavam desmatando na Ituna Itatá.”

Foto – AGÊNCIA SENADO-  O senador Zequinha Marinho nega a existência de índios isolados na Ituna Itatá baseado em ‘conhecimento de causa daquela região’

Novos vestígios

Um relatório de 2012 da Coordenação de Índios Isolados da Funai menciona que a retomada de expedições para a região veio após uma pesquisa de mestrado em Ciências Ambientais pela USP, realizada em 2008 pelo antropólogo Fabio Nogueira Ribeiro, que depois entraria para o quadro de servidores do órgão indigenista.

Em pesquisa na terra indígena Koatinemo, terra vizinha à Ituna Itatá, o antropólogo obteve novos relatos da existência de índios isolados na região.

O índio Apewu Asurini relatou a Ribeiro que, durante uma viagem de caça, ele viu pegadas perto do igarapé Ipiaçava. O pesquisador levou as informações para a sede do órgão indigenista em Brasília, que começou os preparativos para novas expedições na região. Nessa época, Bigio era coordenador-geral de Índios Isolados e Recém-Contatados do órgão.

“Com os novos relatos, organizamos duas expedições que ocorreram em 2009. Os resultados dessas expedições serviram de base para o pedido de interdição da Ituna Itatá, e algumas medidas para proteger essa região foram adotadas”, diz Bigio.

A BBC Brasil conversou com integrantes das expedições à TI Ituna Itatá que ocorreram em 2009, onde foram encontrados mais indícios de que há naquela região povos isolados. Por questões de segurança, pois alguns ainda trabalham com comunidades no Pará, os pesquisadores preferiram não se identificar.

“Encontramos vestígios de ação humana que são características de índios isolados. Uma delas é a quebra de galhos na mata para um lado em um percurso longo, o que indica que foi feito por um homem”, diz um pesquisador.

Outro indigenista explica como os índios habitam a região e lembra que os constantes desmatamentos provavelmente afetaram esse modo de vida.

“O que há na Ituna Itatá é um entroncamento de diversos povos. Pelo que observamos na época, há um padrão de mobilidade alta, onde os índios aproveitam a sazonalidade da floresta para passar períodos em determinado local. Infelizmente, a grilagem aumentou a violência na região e isso impediu o prosseguimento dos estudos sobre a TI. Com tanta devastação e violência, é possível que esses índios tenham migrado para outra área”, afirma.

A experiência de quase 40 anos na Funai analisando documentos de expedições e relatos de índios reforçam a certeza de Elias dos Santos Bigio sobre a existência de índios isolados na Ituna Itatá.

“Há extenso material comprovando a existência de índios isolados na Ituna Itatá, inclusive expedições que a Funai fez em 2009. Então a interdição da área não foi para confirmar ou não a existência de índios isolados, mas para definir o território a ser delimitado para aqueles índios viverem. Para isso, precisamos ter mais estudos sobre onde eles dormem e onde caçam”, afirma Bigio.

‘Conhecimento de causa’

O projeto de decreto legislativo está na Comissão de Constituição e Justiça do Senado desde o dia 5 de março. Bem sucinto, com apenas dois artigos, o texto prevê no seu primeiro ato anular portarias da Funai que salvaguardam a terra indígena e retirar a exclusividade do órgão indigenista de entrar na região.

Na justificativa para a liberação de acesso à TI, Zequinha nega a existência de índios isolados baseado em “conhecimento de causa daquela região”, e ainda reforça que é contrário ao processo de demarcação da Ituna-Itatá, atacando a ONG Instituto Socioambiental (ISA).

“Entendemos que não há motivo para a criação de nova terra indígena no Pará. Tal pleito serve apenas para fazer eco a uma agenda exclusiva do Instituto Socioambiental, organização não-governamental que tenta ditar seus desígnios em detrimento da vontade e da receptividade, já desgastada, do povo do Pará.”

“A região é habitada por aproximadamente mil famílias e as terras são produtivas. Todos os indígenas daquela região, ressalte-se, têm suas terras e são conhecidos por todos nas redondezas. Veja-se: na região, todos se conhecem pelo nome. Ou seja, não há tribos isoladas na região. A bem da verdade, sequer há um povo indígena ali habitando. Aqueles que são indígenas vivem nas suas próprias casas e terras”, informa trecho da justificativa do projeto de Zequinha Marinho.

Em nota, o ISA contesta o conteúdo do projeto apresentado por Zequinha e afasta possibilidade de participação da instituição na interdição da TI, lembrando que isso foi determinado pelo governo federal.

“Por princípio e em consonância com sua missão institucional, o ISA é contra qualquer iniciativa de projeto de decreto legislativo que vise anular atos sobre direito indígena. Causa espanto a menção ao ISA na justificativa da medida, já que o processo de interdição e demarcação de terras indígenas é capitaneado pela União, nos termos do artigo 231 da CF e do Decreto 1775/1996, não tendo o ISA qualquer participação no processo administrativo de interdição da área em referência no Decreto Legislativo.”

Também por meio de nota, a Funai informou que “a Portaria de Restrição de Uso está vigente, e a Fundação ainda não concluiu os estudos sobre a identificação de indígenas isolados na área.”

Problema complexo

Ex-vice-governador do Pará e ex-deputado federal, Zequinha Marinho tornou-se senador em 2019 e logo assumiu o papel de porta-voz da mineração da Amazônia. Ele tem posicionamento contrário à demarcação de novas terras indígenas no país e chamou o aquecimento global de “folclore”.

Atualmente, preside a Comissão Mista Permanente sobre Mudanças Climáticas no Congresso.

No ano passado, criticou o ex-presidente da Funai, general Franklimberg Ribeiro de Freitas, que assinou dia 9 de janeiro a portaria que prorrogou por três anos a interdição na terra indígena Ituna Itatá. Dois dias depois, o general foi demitido por pressão de ruralistas.

Segundo Zequinha, não existem índios isolados nas região, mas sim agricultores e terras produtivas. Em nota encaminhada à BBC News Brasil, o parlamentar afirma que a área é ocupada por “cerca de 150 famílias”, que estão sendo “tratadas de maneira desumana”.

Ele cita ainda que um decreto de 2010, da então governadora Ana Júlia Carepa (PT), garante a presença dessas pessoas na região.

“Para entender a complexidade do problema, é preciso voltar ao tempo. Em 17 de junho de 2010, a então governadora do Estado do Pará assinou Decreto Nº 2.345/2010, criando o Pró-Assentamento Estadual (PROA-PA) Bacajaí. A ex-governadora retirou os trabalhadores rurais das suas antigas terras, localizadas ao lado direito do Rio Bacajaí, e os remanejou para a área que hoje é palco do conflito agrário no município de Senador José Porfírio. Em 2011, mais precisamente em 11 de janeiro daquele ano, portanto posterior à ação do governo do Estado, a Funai publicou a Portaria Nº 38, estabelecendo a restrição ao direito de ingresso, locomoção e permanência de pessoas estranhas aos quadros da Funai na área delimitada pela Portaria”, afirma o senador.

O assentamento citado pelo senador, porém, fica fora do território da Ituna Itatá, conforme mostra um mapa produzido pela Defensoria Pública do Pará, com base em informações do Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará (Ideflor-bio).

Em reunião da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Meio Ambiente do Ministério Público Federal, em fevereiro, o senador narrou a história de famílias de trabalhadores que estariam vivendo na TI Ituna Itatá e disse haver abuso de autoridades no local. O órgão é responsável por auxiliar procuradorias em ações sobre meio ambiente.

O procurador da República responsável pela 4ªCCR, Nívio de Freitas, explica que a região é alvo de grilagem e defende a atuação dos órgãos de controle contra ocupações ilegais.

“A reunião estava previamente marcada com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, mas o senador apareceu com prefeitos da região. Eles falaram sobre ocupações de pessoas carentes na área e como o Ibama estaria abusando da sua autoridade. Mas depois verificamos ser uma terra indígena, então o quadro que nos foi mostrado não era condizente com a realidade. É uma região onde há uma atividade de grilagem muito organizada. Portanto, a atuação dos órgãos de controle é perfeita e importantíssima”, afirma.

Proteção com prazo de validade

A demarcação de terras indígenas estava entre as condicionantes ambientais impostas pelo Ibama para a construção de Belo Monte. Até a licença de instalação da hidrelétrica, que ocorreu em julho de 2011, todas as terras indígenas afetadas pela obra deveriam estar com processo de demarcação concluído. Mas essa etapa ficou incompleta.

Em Ituna Itatá, não há processo de estudo de demarcação em curso, o que pode tornar a terra ainda mais vulnerável à especulação imobiliária se a interdição não for renovada. A validade da interdição da TI Ituna Itatá vai até janeiro de 2022.

Indigenistas, servidores e pesquisadores ouvidos pela reportagem são unânimes em dizer que, caso a região seja aberta para ruralistas e grileiros, o destino dos povos isolados na Ituna Itatá será o extermínio.

“Isso já aconteceu em experiências anteriores no Mato Grosso e no Amazonas, o grupo será exterminado. O que temos nesse governo atual são pessoas que desconsideram o histórico de batalhas pelos direitos indígenas, por isso a nossa luta é constante”, alerta Bigio.

Garimpeiros barram operação da PF no Pará e indígenas são abandonados

Na imagem acima, agentes da PF diante de protestos dos garimpeiros próximo ao aeroporto de Jacareacanga em 26 de maio – Reprodução redes sociais

O governo do presidente Jair Bolsonaro abandonou a operação Mundurukânia da Polícia Federal, no Pará, e deixou indígenas do povo Munduruku desprotegidos contra a ação do garimpo ilegal em suas terras. Um dia após serem alvo de protesto em Jacareacanga e do atentado contra a liderança Maria Leusa Kaba Munduruku, que teve a casa incendiada no último dia 26, forças policiais e agentes públicos se retiraram do município paraense sob pressão dos garimpeiros.

“A equipe da Polícia Federal já está retornando para a cidade de Itaituba. A operação já foi finalizada”, declarou o delegado Paulo Teixeira de Souza Oliveira, chefe do Serviço de Repressão a Crimes contra Comunidades Indígenas, em vídeos gravados na tarde de quinta-feira (27) e aos quais a Amazônia Real teve acesso.

Prevista para acontecer de 23 de maio a 10 de junho, a operação Mundurukânia foi encerrada sem que o seu objetivo – “combater todas as atividades ilícitas num raio de 200 quilômetros contados como epicentro a cidade de Jacareacanga” – tenha sido concluído, conforme documento que a Amazônia Real teve acesso. Abandonam o local deixando os Munduruku em completa insegurança. Além de Maria Leusa, outras lideranças Munduruku continuam ameaçadas. Entre elas, Alessandra Munduruku.

Alessandra Korap Munduruku em audiência pública no Congresso Nacional
(Foto: Alberto césar Araújo/Amazônia Real/2019)

“Eu tenho medo de dormir e ela pedir socorro. Não posso dormir, não posso dormir, não posso”, declarou Alessandra Munduruku, uma das principais lideranças na região do Tapajós, ao falar para a Amazônia Real de suas preocupações para com Maria Leusa. Alessandra, Maria Leusa e outras lideranças são alvos de frequentes ameaças por defenderem o Território Indígena Munduruku do avanço de atividades garimpeiras ao longo do Rio Tapajós.

Durante os violentos protestos de quarta-feira (26), Alessandra Munduruku, Ademir Kaba Munduruku, Ana Poxo Munduruku, Celso Tawe  e o cacique-geral do povo Munduruku no Tapajós, Arnaldo Kabá, também tiveram seus nomes citados em áudios como sendo os próximos alvos dos garimpeiros. O clima é de tensão, medo e abandono.

Nos vídeos, o delegado da PF Paulo Teixeira justifica a reação policial, que usou bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha contra os garimpeiros que protestavam no aeroporto de Jacareacanga. Eles ameaçavam atear fogo nos helicópteros da PF e de outros órgãos federais que compunham a operação Mundurukânia, que investigava atividades de garimpos clandestinos nas Terras Indígenas Munduruku e Sai Cinza. Mas em nenhum momento o delegado fez menção ao atentado sofrido pelas famílias indígenas ou indicou que medidas serão tomadas contra os responsáveis pelos crimes.

A operação, que contou com agentes da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), Fundação Nacional do Índio (Funai) e da Força Nacional de Segurança, destruiu acampamentos e 16 máquinas que estavam sendo utilizadas em garimpos ilegais. Isso provocou a fúria dos garimpeiros, que iniciaram os protestos.

Em outro vídeo gravado na tarde do dia 26, garimpeiros deixam claro que já sabiam do fim da operação muito antes de seu anúncio oficial e que ela foi “acordada”, ao contrário do que afirmou o delegado Paulo Teixeira. Nele, o prefeito Valmir do Posto (PSDB), como é conhecido, aparece de blusa branca, cercado de garimpeiros em protesto, informando-os que havia “negociado” com a PF o fim da operação policial.

“Se nós [continuarmos] do jeito que estamos, em uma manifestação pacífica, amanhã de manhã se encerra”, afirma o prefeito, sublinhando a última palavra com um gesto assertivo.

Em seguida, o prefeito passou a palavra a outro homem que aparece de blusa manga comprida azul, identificado apenas como “advogado” por um dos presentes.  “Nós vamos recuar. Foi negociado com eles. Amanhã de manhã foi garantido que vão sair de Jacareacanga, eles vão embora […] então nós vamos recuar […] caso eles não cumpram com a parte deles, aí é outra história”, orientava o homem, cuja identidade segue oculta.

A reportagem procurou o prefeito Valmar do Posto para confirmar se ele negociou a retirada da PF de Jacareacanga, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. Segundo o assessor jurídico da prefeitura de Jacareacanga, Clebe Rodrigues, não houve acordo entre o prefeito, a prefeitura e a coordenação da operação policial. Ele explicou que o prefeito Valmar teria agido para pacificar a manifestação.

O envolvimento da prefeitura de Jacareacanga com os garimpeiros foi constatado desde o dia anterior aos protestos. O próprio vice-prefeito Valmar Kaba Munduruku (Republicanos), um indígena favorável ao garimpo em Terras Indígenas, é citado em um áudio de grupos de WhatsApp de articulação das manifestações dos garimpeiros como um dos apoiadores mais emblemáticos do movimento contrário às operações da PF.

Em nota, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), “a prefeitura municipal incentivou a realização de manifestações a favor do garimpo”, tendo como alvo os contingentes da Força Nacional e da Polícia Federal que estavam no município.

Em outro áudio, um homem conclama os garimpeiros, indígenas e não indígenas, e comerciantes a se unirem aos protestos. “Neste momento não tem pariwat [não indígena no idioma Munduruku], neste momento não tem diferença alguma. Todos nós somos garimpeiros, porque [em] Jacareacanga, a economia do município gira em torno do garimpo”, diz o homem na gravação, sob o ruído de um helicóptero que sobrevoava as imediações.

No ataque em sua casa, na tarde de quarta-feira (26), a liderança Maria Leusa cita nominalmente, em áudio, Adonias Kabá Munduruku, um dos aliciadores dos indígenas para atividade do garimpo. A Amazônia Real não conseguiu até o momento falar com ele. Em agosto, Adonias fez parte da comitiva de indígenas a favor do garimpo que viajou no avião da FAB (Força Aérea Brasileira) até Brasília, onde se reuniu com o ministro do meio ambiente, Ricardo Salles.

O cronograma vazado

Imagem do dia 25 de maio da Operação Mundurukãnia (Foto: PF/divulgação)

A pressão dos garimpeiros se iniciou quando eles descobriram um cronograma do Serviço de Repressão a Crimes contra Comunidades Indígenas, da PF, que revela os passos da força policial federal na região. A Amazônia Real teve acesso ao documento. Trata-se de um expediente interno assinado pelo delegado federal Paulo Teixeira.

Pela tabela, a ação se iniciou último dia 23 na Floresta Nacional do Amaná, foi estendida entre 25 e 28 de maio na Floresta Nacional de Itaituba, e iria prosseguir nas localidades de Jardim do Ouro, Creporizinho e Creporizão e Rio das Tropas. A ação seria encerrada, pelo calendário, apenas entre os dias 4 a 10 de junho, com incursões nas TIs Munduruku e Sai Cinza.

Questionada sobre o suposto vazamento, a PF informou que não vai se manifestar a respeito do assunto e que o cronograma de operações seria um documento sigiloso. Em nota à Amazônia Real, o órgão informa que “o plano operacional estabelecido na Operação Mundurukânia foi cumprido em sua integralidade, durante os dias previamente fixados para o atingimento dos objetivos da ação, não havendo qualquer supressão, muito menos suspensão da operação”. E acrescentou que instaurou inquérito policial para apurar os ataques à casa de Maria Leusa. ”As circunstâncias dos ataques relatados ainda estão sob investigação.”

Em nota, o Ministério Público Federal (MPF) criticou a retirada das forças federais da região e afirmou ter requisitado às autoridades federais e estaduais reforço policial em Jacareacanga, além de proteção para lideranças indígenas ameaçadas por garimpeiros. A nota afirma ainda que o MPF encaminhou ofícios para a PF, Secretaria de Segurança Pública do Pará, Polícia Civil do Pará, Comando Militar do Norte, Força Nacional de Segurança Pública e às Secretarias Executivas dos Ministérios da Justiça e do Meio Ambiente, alertando para a gravidade da situação e estabelecendo o prazo de 10 horas (já expirado) para que medidas fossem tomadas.

O MPF afirmou também ter recebido informações de que lideranças como Ademir Kaba Munduruku, Isaías Krixi Munduruku e Ana Poxo Munduruku, também estão sob forte ameaça e que durante o dia 27.

A Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Pará (CDHC-Alepa), repudiou o ataque sofrido por indígenas Munduruku e classificou o ataque como “terrorista”,  afirmando ainda que devem ser asseguradas medidas de proteção à vida dos povos indígenas, por parte dos governos federal e estadual.

O caso foi denunciado à Comissão dos Direitos Humanos e Minorias da Câmara pela deputada federal Joênia Wapichana, cobrando providências.

Cerco a lideranças

Maria Leusa (ao centro) durante a Caravana da Águas no Tapajós
(Foto: Ana Mendes/Amazônia Real/2016)

Ano passado, Alessandra Munduruku e Maria Leusa tiveram que sair às pressas de suas aldeias para não serem mortas. Premiada pela Organização das Nações Unidas, em 2015, durante a Conferência do Clima de Paris, por defender o uso sustentável dos recursos da floresta, Maria Leusa Munduruku tem dividido sua vida nos últimos anos entre estar refugiada, voltar para casa (agora incendiada), e precisar se refugiar novamente a cada novo ataque.

Casas incendiadas de Maria Leusa Kaba Munduruku e de sua mãe na aldeia Fazenda Tapajós, em Jacareacanga (PA). (Foto: reprodução Redes Sociais)

O incêndio, que também atingiu a casa de sua mãe e Cacica, Isaura Muo, é o segundo ataque de garimpeiros em dois meses que ela precisou encarar. O primeiro foi à sede da Associação das Mulheres Munduruku Wakoborũn, da qual Leusa é presidente pela segunda vez, tendo assumido a última gestão em dezembro de 2020. O local foi saqueado, depredado e incendiado por garimpeiros no dia 25 de março deste ano. Três dias antes, 22, o MPF havia aberto uma investigação para apurar a ocorrência de improbidade administrativa por parte das autoridades que deveriam evitar a invasão garimpeira no território Munduruku.

Em entrevista à Agência Pública, em abril deste ano, logo após o atentado à sede da Wakoborũn, Leusa afirmou que nem o Estado e nem a Funai cumprem com as obrigações em Jacareacanga, mesmo sabendo que “a destruição está grande e que a invasão está descontrolada”.

O passado de conflitos

Grupo Especializado de Fiscalização (GEF) do Ibama desativa máquinas de garimpo ilegal na Terra Indígena Munduruku, no Pará em 2017 (Foto Flickr -Ibama)

O município de Jacareacanga está a quase 1.800 quilômetros de Belém do Pará, quase a mesma distância de outra capital, Cuiabá (MT). Palco de inúmeros conflitos, o clima ficou pior desde a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido), que tem incentivado a expansão dos garimpos na Amazônia. O próprio presidente se autoproclama “garimpeiro de ocasião” por levar sempre consigo uma bateia “para dar uma  faiscada”, conforme afirmou em um vídeo gravado para garimpeiros em 2018.

Com Bolsonaro, os garimpeiros têm se sentido mais à vontade para atuar nas Terras Indígenas Munduruku e dos Yanomami, em Roraima. Na quinta-feira, Bolsonaro esteve em São Gabriel da Cachoeira e apesar de estar próximo à Terra Indígena Yanomami não fez qualquer menção aos ataques sofridos pelos indígenas desde o dia 10 de abril.

Segundo dados do Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a contribuição do garimpo para o aumento das taxas de desmatamento em territórios indígenas saltou de 4%, em 2017, para 23% até junho de 2020.

Segundo a Coiab, somente entre 11 de dezembro de 2020 e o último dia 26 de maio, os Mundurukus já sofreram 18 ataques com risco de morte direto às lideranças.

Além disso, o município é conhecido por ser rota do tráfico internacional de cocaína vinda da Bolívia, pela forte atuação de madeireiras ilegais e pela prostitiução infantil de crianças indígenas, segundo fonte consultada pela Amazônia Real, que pediu para não ter seu nome revelado na reportagem.

Soma-se a isso o caos gerado pela chegada da pandemia de Covid-19 nas aldeias, a incursão criminosa de garimpeiros – expondo ainda mais os indígenas ao coronavírus – e a situação de abandono e vulnerabilidade histórica desses povos.

A operação Mundurukânia seria uma resposta do governo federal a uma série de medidas determinadas pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso para ajudar a conter a disseminação da Covid-19 entre indígenas.

Procurada, a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Pará (Segup) ainda não se manifestou. [Colaboraram Maria Alves e Elaíze Farias).

Mapa de conflitos agrários na região

Mapados Conflitos Agrários

SIRAD ISOLADOS – ISA COIAB

Fontes BBC Brasil
Cicero Pedrosa Neto Site Amazônia Real

 

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