A autora de Harry Potter sofreu depressão, uma doença que afeta a mais de 300 milhões de pessoas em todo mundo BEN A. PRUCHNIE (GETTY IMAGES)

A autora de Harry Potter sofreu depressão, uma doença que afeta a mais de 300 milhões de pessoas em todo mundo BEN A. PRUCHNIE (GETTY IMAGES)

– Se você está deprimido, então se anime.

– Como você pode estar triste com a vida que você tem, enquanto há tantas pessoas no Terceiro Mundo passando fome?

– Para sair da depressão você só precisa mudar as suas circunstâncias. E resolvido.

Estes são apenas alguns dos muitos falsos clichês sobre a depressão, uma doença que afeta mais de 300 milhões de pessoas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). A autora da série Harry PotterJ.K. Rowlingque sofreu dessa enfermidade, voltou-se nesta sexta-feira contra um tuiteiro que negava que a depressão fosse algo real.

Este thread lhe ensinará muito sobre o mecanismo de defesa da projeção, mas zero sobre a verdadeira doença mental que é a depressão.

https://twitter.com/Cobratate/status/905768225023123460

Depressão não é real. Se você se sente triste, você supera. Sempre estará deprimido se sua vida for deprimente. Mude. Thread.

A partir daí, vários usuários do Twitter compartilharam seus casos de depressão com a escritora. Rowling respondeu a vários deles: “Algumas das pessoas mais talentosas, bem-sucedidas e impressionantes que conheço sofreram ou sofrem de depressão. Você não está sozinho”; “Conte imediatamente a alguém de confiança como se sente”; “Harry – Potter – me ajudou muito durante minha depressão, como contei muitas vezes. Mantenhamos esses dementadores à distância”.

O tuíte respondido por Rowling dá início a um thread “perigoso”, na opinião da psicóloga Amaya Terrón. Com ela e com o presidente da Sociedade Espanhola para o Estudo da Ansiedade e do Estresse, Antonio Cano, desmontamos seus falsos argumentos.

“Não é uma enfermidade clínica”

“Há um consenso médico sobre a gravidade desse transtorno emocional”, comenta Cano. “Há milhões de pessoas que sofrem de depressão no mundo”, acrescenta. A OMS afirma em seu site que “a depressão pode chegar a se tornar crônica ou recorrente e dificultar sensivelmente o desempenho profissional ou escolar e a capacidade de enfrentar a vida diária. Em sua forma mais grave, pode conduzir ao suicídio”. “Nós, psicólogos, tivemos muita dificuldade para que a depressão fosse reconhecida doença, para que agora se continue dizendo esse tipo de falsidade”, afirma Terrón.

“É normal estar deprimido às vezes, mas isso não significa que seja uma doença”

Deste comentário se depreende uma confusão importante para entender o equívoco desse tuiteiro e de quem compartilha da sua opinião: estar triste não é o mesmo que estar deprimido. Tristeza é uma emoção, e depressão é um transtorno emocional. “Embora possam ter a mesma origem, não têm nada a ver. Há um salto qualitativo enorme”, comenta Cano.

“Por exemplo, é normal você ficar nervoso antes de um exame. Isso não faz de você uma pessoa com ansiedade. Entretanto, se você sofrer ataques de pânico nos quais sente que vai morrer, então estamos falando de outra coisa. Com a emoção da tristeza e o transtorno emocional da depressão acontece algo parecido”, acrescenta.

“A maioria das pessoas deprimidas tem preguiça de mudar”

Seguindo essa reflexão, para superar uma depressão basta querer. Mas não é assim. Isso é racionalizar a depressão. Se você fizer isto, consegue aquilo. A depressão não funciona assim. Quando estamos apaixonados, nosso parceiro nos parece o mais maravilhoso do mundo. Não é verdade, mas o vemos assim. Um transtorno emocional como a depressão segue a mesma lógica”, indica o psicólogo.

Terrón afirma que a visão racional da depressão leva a “culpabilizar o doente, que não escolhe estar assim”. “As emoções não são racionais, como tampouco os transtornos emocionais. Há uma parte de nosso cérebro que às vezes toma o poder, que dá um golpe de Estado e que controla nossas ações, por mais irracionais que pareçam”, indica Cano.

A racionalização das emoções também se dá nos processos de luto. “Quando se acaba uma relação, sempre há um período em que precisamos saber o motivo. É um mecanismo de proteção. Se houver uma razão, nos parece mais simples. Entretanto, como eu dizia antes, as emoções não são racionais”, diz Terrón.

“Como você pode estar deprimido se há pessoas em zonas de guerra que não estão?”

Esse argumento é o melhor exemplo de que a negação da depressão parte dessa racionalização das emoções. “Eu me deparo com esta situação o tempo todo no meu consultório”, prossegue Terrón, “já que as pessoas com depressão se sentem mal consigo mesmas por estarem assim. ‘Poxa, eu tenho uma família que me ama, um bom trabalho e tudo a favor’, dizem muitos”.

“Se parássemos para analisar de forma objetiva a nossa situação, nunca nos deprimiríamos, mas as pessoas não são assim. O que condiciona uma depressão não é a realidade, e sim a nossa interpretação dessa realidade”, acrescenta Cano. Então por que não mudar essa interpretação? “Pode-se tentar, especialmente quando a depressão não é muito grave, mas uma pessoa deprimida perde essa capacidade. A emoção gera distorções cognitivas. Quanto mais deprimido você está, mais irracional é.”

Como esses clichês afetam os pacientes?

“Muito mal”, concordam os dois psicólogos ouvidos pelo EL PAÍS. “Opiniões como as desse tuiteiro são tóxicas. Fazem com que as pessoas deprimidas se sintam ainda pior consigo mesmas. Sair de uma depressão não é tão fácil. Ninguém diz que uma pessoa com outra doença tem a culpa de estar assim. Por que fazemos isso com uma pessoa deprimida?”, diz Terrón. Um tuíte recente resume essa sensação.

  1. Falso. 2. Você não está “triste”. Você está insano e não pode se mudar e precisar de ajuda. 3. Falso. 4. Boletim de bebida energética / besteira. 5. Fuck you / no thread
Além das pessoas que negam a depressão como doença há as que não entendem em que consiste. “Mas, poxa vida, se você tem trabalho, saúde e dinheiro, qual é o seu problema?” Muitos familiares reagem assim diante de uma depressão. Existe muita falta de informação sobre os transtornos mentais. “Isso faz com que as pessoas não entendam e, além disso, não ajudem o paciente”, acrescenta Cano.

Fonte: El País