Impera o silêncio nos trens japoneses. Às 19h47, as portas se abriram na estação de Nagoya, onde embarcaram jovens e não tão jovens japoneses em uma noite de inverno. Um minuto depois, o trem partiu, lotado, mas o ambiente era totalmente taciturno: entre os passageiros, fixados nos smartphones, fones nos ouvidos e máscaras cirúrgicas nos rostos, uns zapeavam as últimas notícias sobre o surto de covid-19, outros conferiam a previsão do tempo (chuva, mínima de 7°C, máxima de 11°C) sem arriscar a mínima conversa meteorológica. No país insular de 127 milhões de habitantes, onde olhar nos olhos dos outros é contra as regras de etiqueta, prevalece a lógica do “cada um no seu quadrado”
Situações semelhantes se alastram arquipélago adentro e mundo afora. O Japão é um retrato do atual fenômeno da solidão (estima-se que 541 mil japoneses vivam inteiramente isolados, segundo dados oficiais), mas não é o único. Segundo estudos recentes, solidão se faz presente em diversos países, com impactos psicológicos, socioeconômicos e, sobretudo, políticos.
Mal moderno
Solidão não é um sentimento simples, mas um misto de sensações como angústia, dor, medo e tristeza, que foi mudando ao longo do tempo, com dimensões sociais e políticas. Em outras palavras, a solidão tem uma história, diz ao TAB a historiadora britânica Fay Bound Alberti, autora de “A biography of loneliness” (“Uma biografia da solidão”, em tradução livre), publicado pela Oxford University Press, em 2019.
A palavra “solidão” surgiu por volta de 1800 e, desde então, inquietou pensadores como Alexis de Tocqueville (1805-1859) e Émile Durkheim (1858-1917). “Industrialização, urbanização e secularismo, isto é, transformações políticas e econômicas associadas à modernidade, , possibilitaram novos modos de interpretar os indivíduos e suas relações com a sociedade”, diz Alberti. Enquanto as cidades se modernizavam, com o aumento no número de fábricas, passou-se a enfatizar a individualidade, a ideia do trabalhador que muda das vilas para centros urbanos, deixando de lado o modelo antigo, centrado no núcleo familiar e nas instituições religiosas.
O modelo tradicional não deixou de existir, mas passou a coexistir com outras inquietações individuais e estruturas sociais — como governos, organizações políticas, sindicatos e agremiações tão distintas quanto o Lions Clubs e a Gaviões da Fiel. Ao longo da história, porém, solidão tornou-se um termo carregado de interpretações negativas, associadas à ausência de laços sociais, isolamento, vazio.
No século 20, por exemplo, psiquiatras passaram a identificar personalidades “extrovertidas” (ligadas à sociabilidade e ao gregarismo, logo desejáveis) e “introvertidas” (vinculadas à neurose e à solidão, portanto indesejáveis). No século 21, analistas de diversas áreas tratam o fenômeno como uma “epidemia” — uma doença, uma anormalidade. Mas, critica Alberti, se pensada só como experiência individual, a solidão pode se tornar um “estigma”. No Brasil, seria minimizada como “mimimi”. É preciso, segundo a autora, analisar a solidão como uma condição que pode atingir sociedades e se manifestar de de diferentes modos, de Nagoya a Londres, de Los Angeles a São Paulo.
círculo vicioso
É um círculo vicioso: sociedades fragmentadas podem gerar mais solitários, solitários podem deixar sociedades mais fragmentadas. E, isolados, sem laços sociais ou senso de solidariedade, os indivíduos ficam mais propensos a cair nas graças de radicalismos e alternativas não-democráticas. “A solidão é política. Reflete uma série de atitudes entre indivíduos, sociedades e Estados. Estar desconectado dos outros, especialmente pelas lacunas de desigualdades sociais e ausência de oportunidades, intensifica o fenômeno”, define a historiadora da Universidade de York, no Reino Unido.
Mundo no divã
Foi no Reino Unido que surgiu o Ministério da Solidão, em fins de 2018. “A solidão é a triste realidade da vida moderna”, justificou a primeira-ministra à época, Theresa May. Segundo o relatório da Jo Cox Comission on Loneliness, comitê instituído pela parlamentar Jo Cox (1974-2016) para investigar o assunto, 9 milhões de britânicos são solitários, mais de 30% dos idosos se sentem isolados, 50% dos portadores de deficiência se sentem abandonados e 58% dos imigrantes e refugiados se sentem sozinhos. O governo destinou £ 1,8 milhão para financiar iniciativas e instituiu uma campanha de conscientização para tentar minimizar o estigma da solidão e encorajar interações soc sociais, a Loneliness Awareness Week.
Na época, a agência de notícias BBC elaborou outro estudo junto a três universidades britânicas (Manchester, Exeter e Brunel), o BBC Loneliness Experiment. Segundo a enquete, que contou com 55 mil participantes ao redor do mundo, a solidão atinge 25% dos idosos com mais de 75 anos e 40% dos jovens de até 24 anos (rompendo o imaginário de velhinhos viúvos como perfil predominante de solitários).
Diversos países vêm levantando dados sobre solidão nos últimos anos, a partir de metodologias diferentes, em universidades, revistas, institutos independentes e órgãos governamentais. Na Europa, 18% da população se diz “socialmente isolada”, e 7%, “solitária”, segundo a análise do European Social Survey de 2019 feita pelo Centro Comum de Investigação, unidade científica da Comissão Europeia. Pode parecer pouco, mas 7% corresponde a 30 milhões de europeus. Na Austrália, 27,6% se sentem sozinhos; no Canadá, 23%; na China, 28%.
Numeralha à parte, entretanto, é preciso lembrar que há diferenças socioculturais nos países e pesa, principalmente, a abertura dos participantes para responder francamente a questões de foro íntimo, que muitas vezes são encaradas com constrangimento.
Recentemente, a revista britânica The Economist e o instituto americano Kaiser Family Foundation levantaram novos dados do Reino Unido (onde 23% se declararam solitários), Estados Unidos (22%) e Japão (10%) — apesar do percentual pequeno, diz o estudo, os casos japoneses são mais severos, abrangendo adultos de até 50 anos, com relatos de indivíduos isolados há uma década.
O fenômeno de isolamento extremo é o hikikomori, que atinge principalmente jovens japoneses de 15 a 39 anos, que se afastam de todo contato social e passam meses e até anos sem pôr o pé fora de casa. Segundo dados do gabinete do governo de 2016, o país possui 541 mil reclusos. Entre eles, 35% estão “confinados” há mais de 7 anos. Outro fenômeno é o kodokushi (“morte solitária”, em tradução livre): japoneses que morrem sozinhos, em suas casas, cujo corpo só é encontrado após muito tempo.
Segundo dados do censo, o número de japoneses que vivem sós subiu de 25%, em 1995, para 35% em 2015; estima-se que 50% da população japonesa será “solo”, isto é, de solteiros (incluindo aí nunca casados, divorciados ou viúvos) e morando sozinhos, até 2040. Para Kasuhisa Arakawa, autor de “Super Solo Society” (“Sociedade Super Sozinha”, em tradução livre, de 2017), o Japão é o primeiro de muitos países a enfrentar essa realidade. “No futuro, inevitavelmente veremos uma tendência em direção a uma sociedade mais fraturada, composta por indivíduos single-cells morando sozinhos. Haverá uma mudança de uma sociedade sólida para uma modernidade mais ‘líquida’, para citar o sociólogo polonês Zigmunt Bauman”, escreveu.
Arakawa não vê tais tendências demográficas com pessimismo. Na aposta do autor, o mundo mudará das antigas comunidades, ancoradas no “pertencimento” a uma cidade, família ou profissão, para comunidades “de conexões” (de contatos e relacionamentos mais fluidos na internet ou interações por afinidades específicas de hobbies). “‘Solo’ é diferente de ‘solitário’. Solistas são protagonistas que ocupam os holofotes de orquestras e balé — e ‘solo’ é como um solista, não necessariamente toca sozinho, mas pode tocar sozinho se quiser. É ser mentalmente independente”, argumenta ao TAB.
Só, solo, solitário
Solidão não é sinônimo de solitude ou estar sozinho simplesmente. É sentir-se isolado e desconectado, mesmo diante de um mundo hiperconectado e acelerado. É possível sentir-se solitário, por exemplo, num trem ou na multidão cruzando a avenida de uma metrópole. Não há um ranking de países solitários, mas o City Index de 2016, uma pesquisa da revista britânica Time Out com 20 mil participantes de 18 cidades globais, listou as mais solitárias do mundo — Londres lidera, seguida de Nova York, Dubai, Los Angeles e São Paulo.
Solidão crônica é o caso mais grave e, segundo estudos epidemiológicos desenvolvidos desde a década de 1980, pode elevar riscos de depressão, demência, derrame, doenças cardiovasculares, incidência de infecções e morte prematura. “Quase todos nós já sentimos dor física e a angústia da saudade de casa, a agonia do luto, o tormento de um amor não correspondido e a dor de ter sido desprezados. Todas estas são variações da experiência da solidão”, ilustrou o neurocientista John Cacioppo (1951-2018), ex-professor da Universidade de Chicago e autor do clássico “Loneliness” (“Solidão”, pela WW Norton, 2009), num TEDx Talk que destaca descobertas científicas sobre o potencial letal da s solidão nas últimas duas décadas.
Além do impacto no corpo humano, a solidão pode custar caro ao mercado: o Fórum Econômico Mundial incluiu o tópico no Global Risk Report de 2019 pela primeira vez, indicando que transtornos mentais modernos custaram US$ 2,5 trilhões ao mundo — desse total, dois terços correspondem a despesas indiretas, como queda na produtividade e aposentadoria precoce; e um terço equivale aos custos de diagnóstico e tratamento de doenças.
Mr. Lonely, Miss America
É nos Estados Unidos, a maior economia do mundo, onde a solidão se tornou tendência inquietante, reportou a Harvard Business Review. Segundo outro estudo recente, realizado pela companhia americana Cigna e divulgado em fins de janeiro de 2020, 61% dos norte-americanos relataram se sentir assim. Entre eles, os jovens são os mais afetados: 79% da geração Z (nascidos após 1995) e 71% da geração Y (nascidos entre 1981 e 1995), diz o Loneliness Index de 2020.
“Os Estados Unidos criaram uma cultura de sofrimento solitário e isolamento. Não deveria surpreender observadores as consequências previsíveis de construir uma civilização na lama do capitalismo. O significado real de expressões como ‘andar com as próprias pernas’ e ‘não há almoço grátis’ não é uma celebração da liberdade individual, mas uma ideia de ‘você está sozinho por sua conta’, o que leva a fricções políticas”, expôs o escritor David Masciotra, em artigo na revista Salon.
Segundo Masciotra, imersa nesse discurso de individualismo e meritocracia, a solidão se torna um risco para a democracia. “Governos democráticos demandam que as pessoas se conheçam, conversem e trabalhem juntos para tentar resolver conflitos para defender o interesse público e o bem comum”, escreveu. A solidão é má companhia: em tempos de polarização política, discursos de ódio e incels se alastrando pelas mídias sociais, o isolamento impede a possibilidade de diálogo, a janela da democracia. Em outras palavras, no mundo do “cada um por si”, é cada vez mais difícil pensar o “nós”, juntos.
A ideia também está no best-seller “Bowling alone” (Simon & Schuster, 2000), do cientista político Robert Putnam, professor de Harvard. O livro destaca que, nos últimos 50 anos, os norte-americanos estão cada vez menos engajados em atividades cívicas e políticas, o que paulatinamente enfraquece o senso de pertencimento e afasta os indivíduos — o título, traduzido literalmente como “jogando boliche sozinho”, tenta ilustrar o isolamento. “Divorciados” da sociedade, diz o autor, eles se tornam alvos fáceis para abraçar extremismos.
Acrescente-se à conta as mídias sociais, as disparidades socioeconômicas e o abismo entre parlamentares eleitos e o sentimento de real representatividade dos eleitores. No livro “O povo contra a democracia” (Companhia das Letras, 2019), do cientista político Yascha Mounk, também professor de Harvard, o resultado é a abertura a populismos, de líderes que posam como “únicos” representantes do povo, atropelando instituições independentes e tratando civis críticos como “inimigos” dentro do próprio país — o livro cita, como exemplos, o americano Donald Trump, o húngaro Viktor Orbán e o turco Tayyip Erdogan.
“Segundo novo relatório da Freedom House, adentramos o 13º aniversário de uma ‘recessão democrática’: nos últimos 13 anos, mais países se afastaram da democracia do que foram em sua direção. As quatro democracias mais populosas do mundo são hoje governadas por populistas autoritários… o que, é claro, nos leva ao Brasil”, diz o prefácio exclusivo à edição brasileira.
Ninguém solta a mão de ninguém
No Brasil, onde ainda não há números oficiais sobre solidão, o psicanalista Christian Dunker identifica um mal-estar atual, um sofrimento que, embora vivido invidivualmente, propaga uma política. “Duas chaves clássicas ligam política e solidão”, diz Dunker, professor da Universidade de São Paulo e autor de “Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano” (Ubu, 2019). A primeira é a solidão dos governantes, que invoca as teses de teóricos da ciência política como Montesquieu, Montaigne e Maquiavel. A segunda é a solidão dos governados, dos que se sentem desamparados e são seduzidos por um discurso salvador.
“Você se sente sufocado na multidão no metrô voltando para casa depois de um dia de trabalho e, ao mesmo tempo, se sente sozinho. É um sentimento de que você não é reconhecido na sua diferença, na sua diversidade, na sua singularidade. Você é qualquer outro, substituível, substituído. Esse sofrimento é aproveitado por tiranos, antigos e novos populistas, que dizem: ‘Ei, você, eu sei que você é especial. Você não é irrelevante. O inimigo são os outros, não você’. Isso é parte da retórica do bolsonarismo, que se nutre da dor dos outros”, exemplifica o psicanalista, por Skype ao TAB.
Imediatamente após a vitória de Jair Bolsonaro, em outubro de 2018, viralizou uma ilustração que dizia “ninguém solta a mão de ninguém”, um tipo de manifesto de defesa democrática e afeto. “Ilustrou bem a ideia de solidariedade, o que é especialmente importante para as minorias que, nesses discursos de isolamento, são os alvos mais vulneráveis à violência (física, segregatória ou simbólica)”, avalia.
Entretanto, em tempos de cultura do cancelamento, muitas mãos foram se soltando no caminho. “Sentimento é a partilha social dos afetos. Solidariedade não deve ser confundida com ‘simpatia samaritana’, é diferente de dó ou de um simples slogan. Deve, de fato, agir na realidade. Aí tem valência política”, pondera o autor. Pular da solidão para a solidariedade também é a tônica da filósofa americana Judith Butler no recente “Corpos em aliança” (Civilização Brasileira, 2018). A tese da autora: somos vulneráveis, “precarizados” pelo contexto socioeconômico e político, e precisamos de construções coletivas para continuar existindo. Assembleias e manifestações de rua, interpreta a autora, , trazem a mensagem: “‘Nós não somos descartáveis’, não importando que estejam ou não usando palavras no momento; o que eles dizem, por assim dizer, é ‘ainda estamos aqui’, persistindo, reivindicando mais justiça, a libertação da precariedade, a possibilidade de uma vida que possa ser vivida”. Estar junto, indica o livro, é resistir.
fonte: UOL