Apesar de o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estimar que 61,7% dos brasileiros têm excesso de peso, o indivíduo com obesidade ainda é alvo de piadas e preconceito por parte da sociedade. Eles são maioria, mas os espaços públicos — cinemas, ônibus, aviões, escolas e até hospitais — não estão preparados para recebê-los, gerando constrangimentos e desconfortos constantes.

A obesidade é considerada uma doença crônica, mas boa parte da população (inclusive dos profissionais de saúde) acredita que a situação é resolvida apenas com força de vontade. A classificação é extrapolada com frequência, e muitos indivíduos com sobrepeso são taxados como doentes antes mesmo de fazer qualquer exame. Indicar soluções disfarçadas de preocupação com a saúde e oferecer conselhos não solicitados é apenas mais uma forma de diminuir a pessoa.

A aversão e o preconceito em relação ao corpo gordo é chamada de gordofobia. A discriminação acontece dentro de casa, entre familiares, no ambiente de trabalho, no transporte público, no comércio de roupas e até no consultório médico.

“Qualquer tipo de preconceito é um ato baseado na ignorância sobre um assunto. No caso da gordofobia, é algo que se faz para que a pessoa com obesidade se sinta mal e inadequada. Uma piada relacionada ao corpo leva, em última instância, a pessoa a se sentir excluída. O ato gordofóbico é um ato de exclusão”, afirma a psicóloga Andrea Levy, especialista em obesidade e presidente da ONG Obesidade Brasil.

Ela lembra que, diferente de outros tipos de preconceito, como o de gênero ou o racial, por exemplo, a pessoa com obesidade é obrigada a “entrar na brincadeira” sob a pena de ser vista como alguém chato e sem senso de humor. Às vezes, a pessoa não se sente no direito de reagir, uma vez que seu corpo é visto quase como um bem público, algo que todo mundo tem o direito de comentar e opinar.

“A pessoa com obesidade sempre tem que prestar contas. Já fez a dieta tal? Já foi ao médico X? Se você não faz nada, é julgado. Se diz que está fazendo, alguém sugere um remédio. Se a pessoa tomar remédio, vão dizer que faz mal para a saúde. Se precisar fazer uma bariátrica, alguém vai dizer que é uma mutilação, que não precisa, que é só fazer dieta e exercício. Não tem como acertar. O paciente sempre está condenado, como se tivesse cometido um crime”, alerta a psicóloga.

Ela destaca que nem toda pessoa magra é saudável e que o tratamento para obesidade não está “concluído”, ou só “funcionou”, quando o paciente está visualmente esguio — se ele perdeu 10% do peso e está conseguindo manter, o tratamento já é considerado de sucesso. A obesidade é uma doença crônica, sem cura, e o tratamento envolve controle para o resto da vida, principalmente para evitar o desenvolvimento de outras condições e limitações físicas.

“A gordofobia gera exclusão na vida de todas as pessoas gordas. Elas perdem direitos básicos, como o de se deslocar, de conseguir trabalho, de encontrar uma roupa do seu tamanho. É um preconceito que a gente nem sempre consegue detectar, porque vem disfarçado de amor, cuidado e saúde”, afirma a pesquisadora Malu Jimenez, filósofa, doutora em Cultura Contemporânea e ativista gorda.

Paciente x profissional de saúde

Em 2019, foi publicado o maior estudo comportamental já feito sobre o tratamento de obesidade. O levantamento ACTION IO foi realizado por meio de uma parceria com universidades de 11 países, e financiado pela Novo Nordisk — a empresa fabricante do Ozempic. Os cientistas analisaram respostas de 14,5 mil pacientes e 2,8 mil profissionais de saúde.

A pesquisa mostra que 81% das pessoas com obesidade já fizeram esforço para perder peso e, em média, o paciente passa seis anos tentando emagrecer sozinho antes de procurar um médico. No Brasil, a porcentagem é semelhante: segundo levantamento da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), 93,7% das pessoas com obesidade tentaram perder peso em algum momento, sendo que 31,3% o fizeram por conta própria.

De acordo com o estudo internacional, ao chegar no consultório, 68% dos pacientes gostariam que os profissionais de saúde dessem início a uma conversa sobre como fazer o controle de peso. Em contrapartida, 71% dos profissionais de saúde acham que as pessoas com obesidade não estão interessadas em perder peso — uma analogia muito errada que se faz entre o acúmulo de peso e a preguiça. A obesidade é uma doença crônica multifatorial e, na maioria das vezes, a resolução vai além da força de vontade do indivíduo.

“Essa fantasia infelizmente não está enraizada apenas na população, mas também em muitas pessoas na área da saúde. Isso faz com que hoje haja um maltrato no nível de relacionamento com o paciente obeso. É algo que tentamos desmistificar”, explica o psiquiatra Adriano Segal, coordenador da Comissão de Psiquiatria e Transtornos Alimentares da Abeso.

A pesquisa Obesidade e Gordofobia — Percepções 2022, realizada pela Abeso e a Sociedade Brasileira de Metabologia e Endocrinologia (SBEM), mostra que 85,3% das pessoas obesas no Brasil já passaram por situações de gordofobia.

Entre os 3.621 entrevistados, 61,5% afirmaram ter sentido desconforto e falta de acolhimento ao serem tratados no serviço público de saúde. Muitas unidades, por exemplo, sequer estão preparadas para receber o paciente obeso em um nível básico — não há cadeiras de rodas, macas, aparelhos para medir a pressão ou balanças adequadas para o indivíduo.

Isso também é gordofobia. Andrea explica que quando uma pessoa deixa de ir ao cinema por não caber na cadeira ou não faz um exame por ser muito pesada para a maca está sendo excluída do convívio social. “É algo que afeta a saúde física e mental do indivíduo”, afirma.

E a situação não é melhor no atendimento privado — a porcentagem de pacientes que se sentem desconfortáveis ao procurar um serviço de saúde, nesse cenário, onde a pessoa está pagando pelo serviço, é de 44%.

Uma pesquisa feita no Canadá, pela Concordia University, mostra que 18% dos profissionais de saúde chegam a dizer que se sentem enojados ao atender pacientes gordos, e 33,3% se sentem frustrados ao lidar com esse tipo de pessoa.

O problema também acontece no Brasil: um levantamento feito no trabalho de conclusão de curso da nutricionista Katleen Marques, formada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, mostra que o preconceito com o paciente gordo é disseminado entre os alunos do curso de Nutrição, por exemplo.

Entre os entrevistados por ela, 38% afirmaram que se a pessoa quisesse emagrecer, conseguiria; 23% disseram que o paciente se prende a qualquer desculpa; e 16% opinaram que “não há desculpa para ser gordo”.

O médico Fábio Moura, diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), conta que nas faculdades de Medicina, o assunto obesidade quase nunca é abordado. “No meu tempo, só tinha uma aula sobre isso em toda a formação. Hoje dou aula em universidade pública, e são duas disciplinas teóricas. A formação é muito atrasada, é uma doença relegada ao terceiro plano”, alerta.

Para Andrea, da ONG Obesidade Brasil, um dos principais focos de atuação contra a gordofobia deve ser a área médica. Nem todo profissional precisa ser especialista em obesidade, mas é essencial saber abordar e encaminhar o paciente para um serviço específico.

“A gente acha normal ir ao médico, ele olhar uma pinta, falar que não gostou do aspecto da lesão e encaminhar para um especialista. Não teve constrangimento nem ofensa. Com a obesidade, deveria acontecer a mesma coisa. Não é especialista, mas está vendo que o sobrepeso atrapalha o paciente? Pergunte se a pessoa gostaria de ser encaminhada para um profissional qualificado”, diz a psicóloga.

Segundo ela, o assunto obesidade ainda é considerado um tabu, e muitas vezes o médico finge que não está vendo o problema ou fala de maneira pejorativa, sugerindo que o paciente deixe de preguiça e se exercite, ou faça escolhas saudáveis nas refeições — como se o tratamento fosse simples assim –, fazendo com que o indivíduo se sinta mal e não siga as recomendações.

Obesidade é doença?

Apesar de ser reconhecida como uma doença crônica pela Organização Mundial de Saúde (OMS) há muitos anos, o diagnóstico da obesidade ainda se baseia em um marcador ultrapassado, o Índice de Massa Corporal (IMC). A conta, que leva em consideração o peso e a altura do paciente, não é considerada precisa, já que não analisa outras informações importantes, como o volume muscular e a saúde geral do indivíduo.

Hoje, uma pessoa acima do peso recomendado para a sua altura (baseado no polêmico IMC) não necessariamente está doente, e tem problemas de saúde desenvolvidos por conta da gordura extra no corpo. O contrário também é verdade, já que muitas pessoas magras têm doenças.

Por isso, parte dos pesquisadores defende que a obesidade perca o CID e deixe de ser considerada uma doença. A ideia é que o médico e a sociedade deixem de olhar o paciente como uma pessoa adoecida antes mesmo de fazer o primeiro exame, e sim como mais um indivíduo que procura atendimento.

“A partir de um cálculo, se considera toda pessoa gorda como doente. Com essa associação, apenas se afirma que são indivíduos que precisam de tratamento, e a gordofobia é baseada nisso. As pessoas não entendem que a pessoa gorda não escolhe ser gorda: se acha que a culpa de não ter espaço na sociedade é do próprio indivíduo”, explica Malu.

Ela conta que a concepção da obesidade como doença começou com médicos que eram associados à farmacêuticas e à indústria do emagrecimento. A associação da gordura à uma condição de saúde, segundo a pesquisadora, tem consequências violentas que inclusive guiam a maneira como a sociedade enxerga, reage e entende o corpo gordo.

“Quando dissociarmos o corpo gordo de um corpo doente, podemos discutir gordofobia e como enxergamos esse corpo”, afirma.

Andrea, por sua vez, acredita que desrotular a obesidade como doença pode acabar estigmatizando ainda mais o paciente, porque reforçaria a concepção errada de que é falta de força de vontade. “Cada um pode ter o corpo que quiser, ninguém tem nada a ver com isso. Não é uma questão de evitar que a pessoa tenha o corpo que tem, o tratamento tem a ver com acesso, com o paciente conseguir se tratar. Para combater a gordofobia, precisamos entender a obesidade como doença”, afirma a psicóloga.

Como resolver?

Enquanto sociedade, a melhor maneira de resolver a questão da gordofobia, segundo a presidente da ONG Obesidade Brasil, é por meio da educação. Ela explica que é essencial apostar em oferecer informação de qualidade para os profissionais de saúde e a população sobre o que é a obesidade, como ela é desencadeada,quais os tratamentos e as maneiras de evitá-la.

A educação é importante inclusive para as pessoas com obesidade, que precisam saber quais são os seus direitos para reivindicá-los.

A pesquisadora Malu é categórica: para resolver a gordofobia, precisamos falar sobre ela. “Quando a gente conhece e entende, começa a perceber o quão importante é combater o estigma, o preconceito”, garante.

“Mas, somos seres humanos, funcionamos à base de punição, no acerto e erro. Vemos isso em processos judiciais sobre racismo e violência de gênero, por exemplo. Gostaria que não precisássemos chegar nesse ponto, mas dependendo do grau de violência que a pessoa sofre, é preciso tomar medidas judiciais, sim”, afirma a psicóloga Andrea.

Malu acredita que uma das saídas, aliadas à educação, é a criminalização. Segundo ela, como se vê em outras lutas, como racismo e homofobia, a criminalização é quase pedagógica, já que força o indivíduo a pensar antes de falar. “A gordofobia é estrutural, e se não houver punição e educação, as pessoas não vão deixar de ser violentas com as pessoas gordas”, diz.

Por enquanto, a gordofobia não é considerada crime, mas alguns projetos de lei tramitam no Congresso Nacional para mudar essa realidade. A ideia geral é que o indivíduo que ofende seja acionado criminalmente, cumprindo pena na cadeia. No Senado, um PL caminha para obrigar estabelecimentos de saúde a disponibilizar equipamentos adequados a pacientes obesos.

Na próxima reportagem, entenda como as políticas públicas podem interferir em ambientes obesogênicos, favorecendo escolhas mais saudáveis.

 

Fonte: Metrópoles