Se você administra grupos de WhatsApp em que o bullying corre solto e acha que apenas os ofensores é que podem ser responsabilizados, é hora de ficar preocupado. A Justiça brasileira passou a mirar os administradores por atos ilícitos praticados por outros participantes.

Especialistas ouvidos pelo UOL Tecnologia acreditam que, por um lado, decisões como essa vieram para ficar e que os administradores terão que redobrar a atenção (veja dicas abaixo). Por outro lado, eles veem nesses posicionamentos uma tentativa de a Justiça educar usuários de plataformas digitais, encaradas como terra sem lei, mas que pode degringolar para a transformação dos administradores em “censores da liberdade de expressão”.

Grupos de escola e plantão terminam em processo

No fim de maio, a Justiça de São Paulo condenou uma garota que gerenciava um grupo de WhatsApp a pagar R$ 3.000 a integrantes que foram xingados por outros durante a conversa. O grupo “Jogo na casa da Gigi” foi criado em 2014, quando ela tinha 15 anos, e reunia colegas de escola.

Alguns garotos começaram a disparar ofensas homofóbicas contra três dos integrantes. Em meio ao falatório, a jovem até decidiu acabar com o grupo, mas voltou atrás e criou outro. Também por ali as ofensas continuaram. Em nenhum momento, no entanto, ela ofendeu os jovens, segundo o próprio desembargador Soares Levada escreveu em sua sentença: “Não há demonstração alguma de que a apelada tenha, ela própria, ofendido diretamente os apelantes”.

Para ele, a jovem nem teria a obrigação de agir como uma moderadora da discussão. Mas, segundo ele decidiu, a administradora cometeu um ato ilícito ao não excluir os detratores.

Além disso, ela não tentou minimizar as provocações, inclusive enviou emoji de risada em resposta a uma mensagem. Por isso, o desembargador entendeu que a atitude da jovem se enquadra no artigo 186 do Código Civil:

Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito

A decisão inclusive levou em conta o fato de ela ter 15 anos na época. Se ela tivesse mais de 18 anos, o juiz consideraria uma punição maior.

No Rio, médicos e enfermeiros usavam o WhatsApp para trocar plantões, até que as negociações passaram a envolver dinheiro. Sessões prolongadas de trabalho passaram a ser vendidas por até R$ 2.000, algo que é considerado uma fraude.

O caso foi parar no Conselho Regional de Medicina do Rio (Cremerj), que investiga se as transações infringem o código de ética médica. Só que são alvos do escrutínio não só os que compravam e vendiam plantões, mas também o administrador do grupo.

Grandes poderes, grandes responsabilidades

A advogada Patrícia Peck Pinheiro, especialista em direito digital, explica que essa é uma postura que vem sendo adotada pela Justiça brasileira de que as relações em mídias sociais devem ser fundamentadas na boa fé e que os usuários, ainda que não participem de uma ação, devem tentar mitigar o dano.

“A maioria das pessoas não compreende a responsabilidade de ser administrador”, diz ela.

O administrador normalmente tem poderes para gerenciar uma situação. Se algo está acontecendo, pode agir de forma preventiva, como dizer qual a regra do grupo ou o que é tolerado, usar os recursos da ferramenta para remediar o conflito, como deletar a mensagem ou remover o participante

A advogada Rúbia Ferrão concorda. “O administrador está próximo e acompanhando cada postagem. Se houver alguma conduta ilícita no grupo, é ele quem tem condições de acabar com isso.”

As duas acreditam que a responsabilização de administradores deve virar uma tendência no Judiciário, uma vez que os tribunais brasileiros costumam penalizar internautas por interações típicas do mundo digital, com função pedagógica. Ferrão lembra que juízes já condenaram pessoas apenas por compartilhar algum conteúdo.

“A pessoa que compartilha acha que só repassou e que não é autora da conduta ilícita. Mas tribunais já disseram que você chancela o conteúdo que compartilha”, diz ela. “Essa é uma tentativa de mostrar para sociedade que há limites.”

Censura?

Para o advogado Pedro Ramos, especialista em direito digital, a decisão de enquadrar administradores de grupos é preocupante.

É um precedente perigoso para a indústria de inovação e para os usuários.

“O principal ponto de preocupação é atribuir obrigações a pessoas que só estão usando uma ferramenta de um app qualquer. Apesar de terem esse nome, ‘administrador’, é só uma ferramenta, não uma atribuição feita por lei para que essa pessoa tenha uma obrigação maior que as outras.”

Se a moda pegar, diz ele, os administradores serão punidos com maior rigor do que as próprias empresas que gerenciam os serviços –segundo o Marco Civil da Internet, as provedoras das plataformas não podem ser processadas pelos conteúdos publicados pelos usuários.

“Isso inviabiliza o lado colaborativo da internet”, comenta.

E agora, o que fazer?

Administradores devem se policiar. “Eles terão de ficar espertos”, diz Peck Pinheiro. “Se acontecer uma ação ilícita dentro de um aplicativo, terão que se manifestar e dizer que não concordam e terão que parar com aquilo.”

E terão de observar não apenas ciberbullying, mas comentários racistas, discriminatórios, divulgação de pornografia infantil, calúnias, injúrias ou difamações e até se há a circulação de fotos e vídeos de vingança pornográfica ou ameaças.

“O Marco Civil da Internet fala da plena liberdade de expressão, mas a nossa Constituição diz que um direito não se sobressai ao outro. Você tem direito à liberdade de expressão, mas não é absoluto. Mas não existe a liberdade de ofender”, diz Rubia.

Os administradores ganharam recentemente novas ferramentas do WhatsApp para colocar ordem na conversa. Podem, por exemplo, silenciar todos os outros participantes – ótimo para grupos destinados apenas a distribuir avisos.

Fonte: Uol