O protagonismo das mulheres na construção do espaço público é um caminho para reafirmar a rua como um lugar de direito. No Parque da Juventude, em São Paulo, convidamos duas entendidas no assunto para falar a respeito

No livro A cidade solitária, a escritora inglesa Olivia Laing fala da importância de se sentir sozinha estando cercada por milhares de pessoas. “A solidão é uma experiência que atinge diretamente o cerne daquilo que valorizamos e precisamos”, escreve a autora. Para Laing, o hábito resultou em um mergulho na arte e na criatividade que, entre outras coisas, deu origem ao ensaio publicado em 2016. Mas na vivência em espaços públicos das cidades contemporâneas, estar só é algo que nem sempre é permitido às mulheres. Seja ao caminhar por uma avenida ao fim de um dia de trabalho, seja ao passear por um parque em um momento de lazer, a sensação de ser um corpo vulnerável e “disponível” é companhia constante da maioria de nós.

O tema envolve questões socioculturais amplas e complexas, mas diz muito, também, a respeito dos projetos de planejamento urbano que criamos. O pensamento que envolve a construção das cidades foi, quase sempre, tarefa de homens. Assim, é impossível não se perguntar: se os espaços públicos tivessem sido projetados por mulheres, como seriam? E se, assinados por quem quer que seja, forem criados levando em conta demandas de gênero, que aspecto terão? Haverá mais áreas de uso misto: comercial e residencial? Calçadas com linhas de visão desobstruídas?

Ainda que muitas dessas questões envolvam temas como segurança pública, por exemplo, importante para o cidadão em geral, a sensação em mesas na universidade e rodas de debate é que a arquitetura precisa urgentemente reconhecer e incorporar o olhar feminino em suas práticas. Convidamos Stephanie Ribeiro, arquiteta formada pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e ativista em prol das mulheres negras, e Marina Harkot, mestra pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pesquisadora do LabCidade — Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da FAU-USP —, para engrossar o coro e entrar na conversa.

Qual é a importância de se discutir a arquitetura a partir do ponto de vista das mulheres?
STEPHANIE RIBEIRO: A discussão sobre como usamos o espaço também é uma discussão sobre gênero, sobre como me sinto segura e bem-vinda em cada lugar. Eu tinha uma visão condensada da arquitetura de grandes nomes. No começo da faculdade percebi que essa perspectiva era muito masculina e branca. Por mais que me inspirasse, me mostrava que aquele lugar talvez não fosse onde eu deveria estar.

MARINA HARKOT: Existem desigualdades estruturais que precisam ser sanadas: de gênero, de raça, econômicas… Cada grupo tem experiências particulares e é capaz de olhar para essas questões de maneira espontânea, por isso tenho tentado trabalhar o conceito de sujeito não neutro na arquitetura. Na ponte da Avenida Cruzeiro do Sul, perto daqui, colocaram a ciclofaixa segregada no meio da pista e isolada por gradis. É claro que uma mulher não vai atravessar aquilo de bicicleta, à noite, sozinha. Qual é a chance de você passar por uma estrutura na qual não tenha para onde fugir?

Por isso as propostas da 11ª Bienal de Arquitetura de São Paulo, que incentivavam a participação de cidadãos nos projetos de urbanismo, são importantes?
MH: Sim. Ali houve um esforço grande de “sair da casinha”, chamar as pessoas para ocuparem os espaços. E é isso: se a gente está tentando mudar a lógica, subverter ordens hegemônicas, é preciso causar desconforto.

Ações práticas, como as do projeto Arquitetura na Periferia, que capacita mulheres para construir as próprias casas, também são parte da solução…
SR: Sim. Isso mostra a capacidade de adentrar espaços antes fechados, como a construção civil. O grupo de mulheres Sementeiras de Direitos revelou o potencial de uma produção de alimentos orgânicos na região de Parelheiros. É uma discussão relevante sobre como dar um sentido ao território no qual elas estão inseridas, uma outra perspectiva ao local.

MH: É muito importante desmistificar o saber arquitetônico técnico. As cidades brasileiras são, em grande parte, autoconstruídas. A transformação feita por mulheres cidadãs as coloca em uma posição de poder e de autonomia.

Vocês diriam que existe uma “vocação” do feminino para pensar o coletivo, com mais potencial de cuidado?
SR: A ideia de um olhar feminino é cheia de estereótipos problemáticos. De certa maneira, ao dizer que a mulher tem essa visão “feminina” sobre as coisas a gente reforça isso. Somos preparadas socialmente para considerar a família, prezar o bem-estar. Essa construção envolve os papéis de gênero. Trata-se menos de trazer um olhar da mulher, e mais de destacar a necessidade de incorporar essa discussão para termos cidades realmente inclusivas.

Que nomes estão ajudando a construir cidades mais inclusivas para mulheres no mundo, hoje?
MH: Na Espanha, o coletivo de arquitetas Punt 6 promove o mapeamento afetivo da cidade, e a arquiteta Ananya Roy, que é indiana e mora em Los Angeles, tem pensado o planejamento insurgente e contra-hegemônico, mas o mais revolucionário é justamente falar do sujeito não neutro.

SR:Acho que os olhares mais humanistas para a arquitetura acabam vindo da arte. Vi recentemente o filme Temporada (2018), de André Novais Oliveira, que destaca a beleza da paisagem na periferia de Minas Gerais. Ele mostra que as casas ali não são apenas um amontoado de tijolos, mas que existe uma ligação de afeto. Não podemos, como arquitetos, simplesmente querer impor um jeito “melhor” de se viver.

Que transformações são as mais urgentes a se fazer?
MH: Iluminação é uma questão que sempre vem à tona, já que tem impacto visual e palpável no cotidiano. Muitos muros não precisariam impedir o contato visual, e tem a demanda por creches, que é histórica no movimento feminista. Mas um debate recorrente sobre mobilidade e transporte tem a ver com a racionalização das linhas de ônibus: de olho no lucro das concessionárias, constroem-se grandes linhas em avenidas e corredores que contemplam o trajeto casa-trabalho, mas tudo a partir de uma lógica cartesiana. Sabemos que as mulheres fazem as viagens em cadeia: vão parando no caminho, na casa da mãe, para comprar remédio, deixar o filho na creche, e aí sim, seguem para o trabalho. Estamos sempre ignorando o fato de que nem todos passam pelo mesmo tipo de experiência na cidade.

SR: Existe dificuldade em entender o impacto de uma fachada ativa nas construções e do uso misto dos espaços na circulação de mulheres. Ter comércio nas ruas impacta tanto a vida da empregada doméstica, quanto a da dona de casa que sai para correr à noite. Somos constantemente informadas de que a cidade é um lugar perigoso. Existe a naturalização do assédio na rua e no transporte público. É como se estivéssemos sendo punidas por não estar em casa. Como se dissessem: “você não deveria estar circulando por aqui”. Se estivesse aqui, nesse parque, sozinha, eu não estaria tão calma.

Fonte: Casa e JArdim
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