A PEC 32/2020, que traz em suas linhas a Reforma Administrativa, versa sobre várias questões que interferem de forma direta no serviço público e, consequentemente, no atendimento das necessidades mais prementes do conjunto da sociedade. Mais uma vez, sob o argumento da economia de recursos, serão os serviços públicos e seus trabalhadores sacrificados, e a quem tenha a ilusão de que tal fato não reduzirá drasticamente os serviços que atualmente já são executados de forma precária.

O art. 37-A, da PEC 32/2020, se aprovada, permitirá a cooperação entre órgãos e entidades públicos e privados, o que, em outras palavras, avalizará a terceirização do serviço público, gerando uma série de situações que o constituinte originário buscou proteger no advento da Constituição Federal de 1988, como o “apadrinhamento político” na composição dos órgãos públicos e, literalmente, colocando os “arreios” que faltam para o controle contumaz da atividade pública pela “politica do cabresto”.

Mas pasmem: NÃO É ISSO O QUE MAIS ASSUSTA. Mais assustador é observar tal medida já estar sendo realizada de forma “silenciosa” em vários estados do Brasil no que tange aos serviços executados pela polícia civil, que deveria ter exclusividade, juntamente com seus profissionais, da apuração das infrações penais. Mesmo com essa função constitucional indelegável, espalha-se como cupim nas delegacias em todo país a figura de estagiários (graduados e pós-graduados) que assumem por motivos dos mais diversos e absurdos a atividade que deveria estar sendo realizada por um agente, um escrivão ou por um delegado. Não se fala aqui de atividades meramente administrativas, que correspondam às atividades meio, como controle de almoxarifado, distribuição de documentos não sigilosos, etc. Assumem registro de ocorrências criminais e administrativas, oitivas, declarações, confecção de TCO’s, manuseio do inquérito policial e até o relatório final de uma investigação. Em outras palavras, em nossa já surrada profissão, cria-se uma figura estranha que aos poucos corroí nossa função social, nossa atribuição funcional e fragiliza sobre maneira nossa posição como operadores da segurança pública.

O comodismo frente a essa situação além de estranho é suicida, especialmente para a evolução que temos trabalhado a nível nacional para alcançar, trazendo mais modernidade, maior complexidade e eficiência para o exercício das funções dos policiais civis. A verdade é que a permissividade nesse ponto nos deixa vulnerável a questionamentos como: “qual a importância de sua função, se um estagiário com um investimento bem menor pode realizá-la?”

Todos sabemos que não é bem assim. Não realizamos algo que um estagiário seja capaz, pois além de termos a exclusividade da atribuição, a técnica, a expertise, também possuímos a fé pública e somos regidos por rígidas normas de conduta que servem para proteger não somente a instituição e seu trabalho, mas principalmente para garantir ao cidadão os melhores serviços prestados, inclusive protegendo sua intimidade e informações pessoais.

O serviço público no Brasil tem sido cada vez mais estigmatizado e colocado à prova frente a uma enxurrada de ataques que partem dos governos, dos donos do capital produtivo e especulatório, banqueiros e a imprensa que é muito bem paga para reproduzir o servidor público como algoz de todas as crises existentes e responsáveis por tudo que tem de ruim no país. Essa mentira, proferida aos quatro ventos e com muito pouco contestação eficaz, ressoa para a quase totalidade da população como uma verdade incontestável.

Não enxergar isso e, da mesma forma, não compreender que a terceirização de nossas atribuições, mesmo que de forma velada e com nossa passividade não põe em risco o que já está por um fio é uma ignorância que nos faz refletir se vale à pena continuar lutando quando os “soldados” já estão se automutilando.

A reação a essa situação é questão de sobrevivência. E compreendam: não se trata de uma consciência coletiva somente, mas de algo que se constrói no particular, ou seja, se você vive essa situação e ao invés de se indignar apenas se acostumou e até gosta de ver alguém fazendo o seu trabalho, o problema deixa de ser coletivo e isso é mais grave, pois não será a reação do seu sindicato que fará as coisas mudarem, mas, sim, sua auto-crítica sobre o que pensa sobre seu cargo, sua carreira, sua instituição e, consequentemente, sua própria dignidade.
A criação de castas no serviço público criou uma inversão de valor no mínimo incoerente, onde quanto mais um servidor público possui distância do contato direto com a população, maior o seu valor agregado, revertido em salários e vantagens. Tá errado, mas parece que a busca dessa sombra não é exclusividade de quem já a ocupa.

Nossa natureza é investigar, mas jamais podemos perder nossa premissa social de buscar o melhor do que fazemos para oferecer o melhor que nós podemos. Já tem muita “gente” sucateando a polícia civil e com o espírito de nos extinguir. Não sejamos parceiros disso e saibamos valorizar com inteligência o que somos e, mais ainda, o que podemos, com união, nos tornar.

 

Por Marcilene Lucena

Presidente da FEIPOL-CON – Federação Interestadual dos Policiais Civis das Regiões Centro-Oeste e Norte