Ódio, frustração e medo passaram a fazer parte do cenário eleitoral brasileiro, que ficou ainda pior com a onda de notícias falsas sobre candidatos que invadiu redes sociais. Provar que esse conteúdo é usado em benefício de uma campanha ou outra — o que pode configurar crime eleitoral — e achar os culpados é o grande desafio. Apesar de difícil, a tarefa não é impossível, segundo especialistas.
Assim como nos Estados Unidos, a disseminação de boatos pela internet marcou o processo eleitoral. Só que lá, as notícias falsas foram espalhadas por Twitter e Facebook, enquanto aqui o jogo é outro: o WhatsApp é o principal meio para a propagação de desinformação. E no app de mensagens é mais difícil identificar quem começou com um boato.
Vários grupos já haviam sido apontados como disseminadores de boatos. Agora, empresas foram acusadas de promover campanha contra o PT, cujo candidato à presidência Fernando Haddad (PT) disputa o 2º turno com Jair Bolsonaro (PSL). A lei eleitoral proíbe doação de empresas, fato que pode impugnar a chapa do candidato do PSL.
Diante da gravidade da propagação de fake news, um ex-ministro do TSE, sob a condição de anonimato, afirma que estranha a passividade do Ministério Público e do Tribunal quanto à demora no combate do problema. “Se isso aqui fosse um prefeito ou um vereador, estava cassado há muito tempo. Não entendo a tolerância do Ministério Público. O Tribunal [Eleitoral] tem que dar um exemplo do que é certo ou errado”, acrescentou.
Como provar se houve crime?
O WhatsApp é o aplicativo mais adorado pelos brasileiros: todos os dias, mais de 120 milhões de brasileiros dão as caras por lá. O serviço surgiu para enviar mensagens, mas virou uma rede social, com direito a grupos que reúnem todos os tipos de pessoas e gostos.
E virou ainda um prato cheio para disseminar notícias falsas de cunho eleitoral. Só que duas grandes características técnicas dificultam qualquer tipo de investigação que envolva crimes no WhatsApp: a criptografia e o fato da comunicação a partir de um número de celular para o outro número.
A) Criptografia
Se, por um lado, a criptografia torna a troca de textos, vídeos, áudios e fotos mais segura contra hackers, por outro, faz desse conteúdo inacessível até mesmo para o WhatsApp.
“Ele usa a criptografia de ponta a ponta. A empresa mesmo diz que não tem conhecimento daquilo que circula dentro dele. É um problema gigante. Neste caso, responsabilizar quem posta as coisas falsas no grupo como um administrador poderia ser uma das saídas para combater a fake news”, sugere Renato Ribeiro de Almeida, doutor em direito do estado pela USP e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político.
B) Mensagem de A para B
Outra característica do WhatsApp é que as mensagens são enviadas de forma privada de pessoa a pessoa ou a grupos, normalmente recheados de amigos ou familiares. Essa dinâmica dificulta (ou até impossibilita) a identificação da origem de uma notícia falsa.
“Se eu crio um perfil falso no Facebook e começo a disseminar notícia falsa, dá para ir ir à Justiça Eleitoral e pedir que isso seja eliminado. No WhatsApp, você não tem uma marca digital de onde está sendo depositada a notícia [muitos dos boatos utilizam apenas textos e vídeos]”, explica Ricardo Penteado, membro do IDPE (Instituto de Direito Político e Eleitoral).
Uma saída, segundo Penteado, seria o usuário fazer prints da notícia falsa que recebeu e ir até um cartório para fazer uma ata notarial como a prova da mensagem. Não será possível descobrir a extensão daquilo, para quantas pessoas foram, mas é uma forma de registrar e legitimar o problema.
“Se no final desse processo eleitoral houve um comprometimento de influenciar as pessoas, o tribunal pode ser chamado às falas sim, independente de quem for a culpa”, disse Ricardo Penteado, membro do IDPE (Instituto de Direito Político e Eleitoral).
“É difícil conseguir provas, pois tudo fica restrito aos aparelhos dos usuários. Então, é difícil descobrir quem começou”, complementa Almeida.
Como investigar?
Tudo isso dificulta, mas não torna uma investigação impossível. A pedido do UOL Tecnologia, Evandro Lorens, diretor da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF), desenhou três cenários em que é possível obter informações do WhatsApp: retirar arquivos dos aparelhos utilizados; extrair registros de envio de mídia guardados pelo app; interceptar mensagens que passam pelo servidor da empresa.
A) Retirar arquivos do aparelho
O mais simples deles exige que, por meio de mandado judicial, sejam apreendidos os aparelhos que enviaram as mensagens ou as receberam. Vale tanto para celulares quanto para computadores, por causa do WhatsApp Web.
A partir daí, as autoridades policiais usam ferramentas para extrair os arquivos trocados por meio do WhatsApp e podem comprovar se houve crime eleitoral ou não. E não adianta apagar os documentos antes de a polícia bater na porta.
“A gente vai conseguir recuperar o que estiver ainda vivo e muito do que foi apagado”, afirma Evandro Lorens
A recuperação de arquivos apagados pode ser prejudicada se, devido ao uso, muitos conteúdos tiverem sido apagados constantemente. Esse procedimento resvala ainda em outro entrave: tem de ser feito com cada dispositivo de uma vez, ou seja, celular por celular.
B) Extrair registros de envio de mídia
É possível ainda descobrir qual conta disparou uma mensagem inicialmente. Funciona assim: todas as vezes que você envia uma mensagem pelo WhatsApp, ela é criptografada no seu celular, passa pelos servidores do aplicativo e vai desaguar no celular do destinatário, onde é desembaralhada.
Só que, ao enviar mídias (fotos, vídeos, áudios), o app guarda em seus servidores uma espécie de assinatura digital do arquivo. Quando alguém encaminha uma determinada mensagem, o WhatsApp busca em seus servidores o arquivo com aquela tal assinatura. Só ao encontrá-la é que remete o pacote de dados para o destinatário.
Thiago Tavares, da SaferNet, explica que a empresa não chega a ter acesso ao conteúdo, mas guarda informação da assinatura digital, que permite saber quando, por exemplo, uma foto foi enviada do usuário A para o B. Segundo Lorens, é possível pedir ao app esses registros. Com elas, é possível averiguar de que aparelho partiram notícias falsas ou propagandas ilegais.
C) Interceptar mensagens
A terceira possibilidade é a mais difícil: interceptar a mensagem enquanto está em trânsito. Dificulta ainda o fator de, ainda que sejam sequestradas, esses envios ainda estarão embaralhados, devido à criptografia.
Lorens admite que esse é o caso mais complexo e poderia exigir a exploração de falhas críticas na plataforma, além de recursos financeiros e tempo. Ele pondera, no entanto, que, se for o caso, vale o esforço. Nessa linha, ele cita o FBI que pagou a hacker uma quantia milionária para desbloquear o iPhone de um terrorista após a Apple se negar a destravar o aparelho.
Tirar o WhatsApp do ar seria a solução?
Para serem efetivas, as medidas devem contar com a colaboração do WhatsApp na Justiça. O app já se recusou a abastecer investigações criminais brasileiras com informação, o que levou juízes a exigir a suspensão do app como represália
Para o ex-ministro do TSE consultado pelo UOL Tecnologia, nesse caso, tirar o serviço do ar não seria uma solução. “Tirar o WhatsApp do ar seria como jogar fora o sofá após pegar no flagra o cônjuge com o amante”, ironizou. “Quantas pessoas serão prejudicadas por isso? Eu acho que tem de haver uma pesquisa rápida do que está acontecendo e uma punição exemplar”, acrescentou.
“É necessário uma atuação contundente da Justiça Eleitoral. Ou dá uma resposta categórica ou vai ficar a mercê disso e perder credibilidade”, conclui Almeida.
Fonte: Uol