Celebrando a arte do trançado com o capim-dourado, o evento contou com diversas apresentações culturais
 Secretário dos Povos Originários fala sobre a importância da colheita para a Comunidade Mumbuca
“O capim-dourado é o ouro que Deus presenteou para nossa terra. Esse capim abençoado é fruto de uma negociação entre Deus e o solo do nosso cerrado”. As palavras são da Doutora (Noemi Ribeiro), filha de Dona Miúda, personalidade icônica do Povoado do Mumbuca. Entre os dias 13 e 15 de setembro, a Comunidade Quilombola Mumbuca, localizada a 22 km do município de Mateiros, foi sede de uma das maiores festas culturais do Tocantins, a Festa da Colheita do Capim Dourado. Na sua 16ª edição, o evento apresentou o artesanato e música local, palestras, cavalgada, futebol, feirinha gastronômica e, principalmente, o tão esperado momento de ir às veredas colher o dourado capim do Jalapão.
 Secretário dos Povos Originários e Tradicionais, Paulo Xerente, e a Secretária Executiva, Cris Freitas, participam da Mesa Dourada na 16° Edição da Festa da Colheita do Capim Dourado 
O Governo do Tocantins, por meio da Secretaria dos Povos Originários e Tradicionais (Sepot), esteve presente no evento, apoiando na divulgação e estrutura da festa. Um local marcado pelo apego às raízes ancestrais, resistência e cultura, a Comunidade Mumbuca durante os três dias, abriu as portas para a imprensa e turistas vindos de várias regiões do Brasil, do exterior, para contemplar cada sessão temática da festividade. “É um momento ímpar para a Sepot participar da Festa da Colheita do Capim Dourado. Esperamos, futuramente, poder contribuir ainda mais com esse evento grandioso. Tudo nesta festa é bastante ancestral, por ser feito manualmente, são produtos naturais. Precisamos valorizar nossas raízes, pois é um legado que nossos antepassados nos deixaram”, destacou o secretário dos Povos Originários e Quilombolas, Paulo Xerente.
Secretário Paulo Xerente fala sobre a importância do manejo do Capim Dourado na demonstração da colheita
Ana Mumbuca, diretora de Proteção aos Quilombolas da Sepot e idealizadora da Festa, destacou que o capim-dourado é para além de um bem que gera renda, ele é um legado que precisa ser protegido, como também o cerrado. “O capim-dourado está na nossa cultura há mais de 200 anos. A gente tem a ciência de que foi a Laurinda que viu aquele brilho do capim no meio das veredas, pegou e conseguiu introduzir o trançado com o buriti. Assim, ela passou para a filha dela, a Dona Miúda, Dona Miúda passou para as filhas, a matriarca Doutora, Antônia e toda a comunidade”.

Para a idealizadora, mais do que uma oportunidade de apresentar o capim-dourado para o mundo, este evento trouxe representatividade para o estado. A tradicional colheita evidencia a coletividade do quilombo Mumbuca, que por meio da festividade, celebra a existência do capim-dourado e a força do povo que com ele, conseguiu fazer belas peças e mostrar toda a resistência dos jalapoeiros.

EXPOSIÇÕES CULTURAIS

A abertura do evento, no dia 13, contou com a exposição “Escola no Quilombo”, cujo intuito foi apresentar objetos de capim-dourado, tapiti, buriti confeccionados por estudantes, professores e mestres da Escola Estadual Silvério Ribeiro de Matos, no Memorial Casa da Cultura. O espaço contava com quadros temáticos que contavam a trajetória dos mestres locais, como a Doutora, Tia Martina, Valdir, Armonzinho, Pastor Toxa, Tia Santinha e outros. O projeto é uma iniciativa da escola, que por meio das aulas do componente Cultura Quilombola, em interface com outras disciplinas do currículo, valoriza e assegura os saberes e arranjos ancestrais do Povoado Mumbuca.

Sirlene Matos, orientadora educacional do projeto, explicou a história da formação da comunidade originária dos primeiros negros que chegaram no século XVIII, na região do Jalapão. Hoje, já sétima geração de um povo que deixou história, o saber ancestral fortalece a cultura mumbucana. O tapete, a esteira, o balaio, carrinhos de buriti foram brinquedos da época, e a escola por entender que é essencial ter essa continuidade, abraça o legado cultural, que como enfatiza Sirlene, não deve ser motivo de envergonhamento para a geração atual.

“Cheguei a dormir na esteira, a brincar com a boneca de buriti, porque eu não tinha naquela época. É linda e feita artesanalmente, da matéria-prima que a natureza oferece. É muito gratificante poder compartilhar um pouco de nós, somos um povo banto e livre. Um povo que não aceitou a condição de ser escravizados, pessoas que construíram sua forma de viver, de sobreviver na dificuldade e lidar com a terra”, pontuou.

APOIO AOS ARTESÃOS LOCAIS

Com o propósito de valorizar as iniciativas culturais da comunidade, incentivar a manutenção das práticas culturais, como o artesanato, música, dança, foi realizada a mesa dourada. A cultura movimenta a economia da Comunidade Mumbuca, mas a festa da colheita traz a mensagem de como o artesanato pode se desdobrar para além de um chapéu, tiara, colar, vaso e outros artigos de decoração. A atividade foi dividida em três tempos e trouxe instituições importantes para a difusão da cultura do povoado, como a Secretaria dos Povos Originários e Tradicionais (Sepot), Secretaria de Estado da Cultura (Secult), Energisa, Naturatins, Central do Cerrado, WWF, entre outros.

A temática central levantada durante as discussões foi a respeito do apoio para incluir a comunidade nos projetos culturais, auxiliando no acesso, agilização para reunir a documentação e acompanhamento em cada processo dos editais de fomento.

Nesta edição, também foi anunciada uma ação da “PNAB Busca Ativa”, do Governo Federal, que visa rastrear projetos elegíveis em comunidades originárias do Tocantins, para a inscrição no edital Culturas Quilombolas. Durante a festa, a equipe do projeto esteve presente no Povoado para apoiar o cadastro de pessoas nos editais da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB).

A mesa ainda contou com a participação do titular da Defensoria Pública de Formoso do Araguaia, defensor Paulo Américo, que destacou em sua fala a relevância da festividade para a memória e luta dos quilombolas. “Esse evento reflete muito da luta, força e resiliência dos povos tradicionais para manterem sua cultura. É ótimo prestigiar esse momento e ouvir pessoas e autoridades envolvidas no resguardo dessa tradição e na proteção dos direitos do Povoado Mumbuca”, enfatizou.

RECONHECIMENTO DA VIOLA DE BURITI

O amor pela música também faz parte da identidade e memória do povo Mumbuca. Como bem expressa o artista da viola do buriti, Artur Tavares. “A viola de buriti é muito mais que um instrumento para nós, da comunidade. A viola faz parte da nossa família”, afirmou. O corpo e o braço do instrumento são feitos com os talos (pecíolos) das folhas, um símbolo musical da cultura quilombola.

Desde o ano de 2018, a comunidade Mumbuca luta pelo reconhecimento da viola do buriti, como Patrimônio Imaterial. O antropólogo do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), Alessandro Lopes, pontuou o processo e as exigências para o reconhecimento do instrumento com parte da cultura jalapoeira. “É uma atividade muito criteriosa, cheia de detalhes. Entendemos que a viola de buriti para esse povo representa uma forma de ver, compreender e viver o mundo. O processo de reconhecimento tem muitas especificidades, pois estuda a extensão, a ocorrência, os detentores do bem cultural e os riscos ligados a não-preservação desse saber”, disse.

TEATRO E DESFILE

Artesãs desfilam na 16° edição da Festa da Colheita do Capim Dourado mostrando suas peças de artesanato confeccionadas a partir do capim dourado

A abertura das apresentações culturais da segunda noite do evento contou peças teatrais que enfatizavam o saber tradicional e ancestral da Comunidade Mumbuca. Figuras emblemáticas, como a Dona Laurentina e a sua atuação como parteira foi encenada; Dona Miúda na lida para ensinar o trançado do capim-dourado com a seda do buriti para as filhas e recitação de poemas.

Doutora Noemi, anciã do Quilombo Mumbuca, desfila na 16° edição da Festa da Colheita do Capim Dourado com peça de artesanato

Já o desfile, contou com crianças e mulheres da comunidade, que desfilaram com peças como colares, cintos, braceletes, bolsas, tiaras e outros artigos de decoração. A segunda parte foi abrilhantada pela coleção “Ouro do Cerrado”, que é composta por cinco vestidos de 27 metros de crepe prada dourado, confeccionados pelo estilista guaraiense Luiz Fernando Carvalho. As modelos da comunidade vestiam as peças produzidas com um toque especial de bordados, com cerca de 980 peças desenvolvidas a partir de 17 quilos de capim-dourado. Os vestidos fazem parte do acervo da Secult.

Ester Michele Tavares, moradora que participou do desfile pela segunda vez, expressou sua alegria. “Esse vestido para mim é um sonho, pois essas peças foi a gente quem fez. Aqui, estamos representando a nossa comunidade. O capim-dourado é o Jalapão e participar desse momento é muito gratificante”, declarou.

A COLHEITA

Participantes da Colheita Demonstrativa no campo do capim dourado
A colheita demonstrativa do capim dourado ocorreu na manhã do dia 15, e reuniu cerca de 100 pessoas, entre lideranças da comunidade, imprensa e órgãos competentes da regulação e monitoramento da atividade de coleta da haste. Dourado e com um brilho maravilhoso de se encantar! O momento da colheita foi marcado por discursos sobre a resistência do povo, a queimada que assolou as veredas no ano passado e a importância de manter esse ritual vivo na comunidade.

O capim-nativo não é semeado, é colhido apenas uma vez ao ano, do mês de setembro a novembro. Esse é o período mais esperado pelo povo de Mumbuca e todos os anos, a colheita do capim-dourado começa com uma festa que anuncia a fase de amadurecimento da haste. “Não existe capim-dourado sem Mumbuca, e não existe Mumbuca sem capim-dourado. O capim-dourado de Mumbuca vem com uma história, vem da luta do povo, que busca sempre priorizar a resistência e a existência nesse território, de forma simples e espontânea”, finalizou Núbia Matos.

Fotos: Rafael Batista – DPE/TO