Reis mouro (em vermelho) e cristão (em azul) antes de entrar em campo – Kadu Souza / Governo do Tocantins
Imagine uma assembleia de cavaleiros carregando escudos, lanças e espadas nas mãos, enquanto usam longas capas, com plumas e adereços, e travam batalhas entre si em um campo a céu aberto. Essa poderia ser a descrição de uma cena de guerra em um filme ambientado na Idade Média, mas é uma tradição realizada por décadas no interior do Tocantins. Todos os anos, no município de Taguatinga, localizado ao Sudeste do Estado, acontecem as Cavalhadas: o maior teatro a céu aberto do Tocantins. O evento reúne pessoas de todas as idades e se confunde com a própria história da cidade.
Em um município onde o catolicismo é predominante entre os habitantes, as Cavalhadas consistem na recriação da batalha ocorrida entre os mouros, povos que professavam a religião islâmica, e cristãos, adeptos ao cristianismo, durante o período medieval. No teatro, 24 cavaleiros se reúnem em campo, representando guerreiros do período. Cada lado possui 12 combatentes, um número representativo, escolhido como uma ilustração do lendário rei Carlos Magno e os “doze pares de França”, um grupo de guerreiros de elite que habita as diversas histórias, cantigas e novelas de cavalaria do período.
Mas como cidadãos de um município no Tocantins, na região Norte do Brasil, têm a tradição de recriar um cenário medieval a cada mês de agosto, em sua cidade?
Linha do tempo
Trazidas ao Brasil pelos colonizadores portugueses, as Cavalhadas teriam chegado no país por volta de 1756, constituindo-se em uma forma de evangelização da população local. A tradição se manteve em alguns pontos do Brasil, com especial força nos estados de Alagoas e Goiás. No Tocantins, a história é um pouco diferente.
Carlos Robson Almeida conta com carinho um enredo que faz parte da história de sua própria família. Aos 60 anos de idade, o cavaleiro cristão é um dos principais responsáveis pelo mantenimento da tradição na cidade, que teve início em 1936, a partir de um de seus antepassados.
“O meu bisavô, junto a um outro amigo, resolveu criar as Cavalhadas em Taguatinga. Como veio a Segunda Guerra Mundial [1939 – 1945], houve uma pausa. Em 1996 eu e uma prima minha, Denize Ribeiro, tivemos a ideia de trazer de volta as Cavalhadas aqui. Então a gente se reuniu e pensamos: por que não tentar recriar essa manifestação?”, explica.
O cavaleiro conta que as histórias das competições entre mouros e cristãos, que ocorriam na cidade, eram narradas pelo seu pai e escutadas por ele desde a infância. Após uma reunião de amigos, foi decidido que trariam de volta a manifestação cultural a cidade. “Em 1997 nós corremos a primeira carreira e de lá para cá é só alegria. Eu não quero parar, só quando o tempo não me deixar mais dar conta de estar em cima de um cavalo correndo”, diz com um sorriso nos lábios.
Em Taguatinga, o evento acontece todos os anos no mês de agosto, como parte dos festejos de Nossa Senhora D’Abadia, padroeira da cidade. Antes de entrarem em campo, os cavaleiros participam de uma missa em que as argolinhas, que mais tarde serão utilizadas na competição a cavalo, são benzidas pelo pároco local. Também recebem as bênçãos os combatentes, que agora estão prontos para representar a batalha, que acontece nos dois dias seguintes.
O primeiro dia é marcado pela alvorada, um momento em que todos os cavaleiros saem em cortejo até a casa da madrinha das Cavalhadas, quando ainda está escuro, vendo o sol nascer enquanto caminham. Esse também é o dia da recriação da batalha entre os povos, com o teatro sendo encenado para o público, algo que se repete todos os anos, a fim de demonstrar o conflito ocorrido. É a ocasião em que os cavaleiros do castelo cristão saem como vitoriosos na guerra, culminando no batismo dos combatentes do castelo mouro.
O segundo dia, por outro lado, movimenta a torcida que assiste das arquibancadas, já que é uma competição livre entre os dois grupos, com jogos que envolvem corrida a cavalo em alta velocidade e o uso de lanças e espadas.
A corrida das argolinhas é a mais esperada. Nela, um cavaleiro de cada lado corre por vez, tentando captar com uma lança a argolinha pendurada em meio ao campo. Diferentemente do primeiro dia de teatro, em que o lado cristão sempre sai vitorioso, no segundo dia tudo pode acontecer, provocando a adrenalina nos cavaleiros e a ansiedade nos espectadores.
O sentimento de orgulho mistura-se com o nervosismo de querer ver tudo dando certo, e está presente desde o cavaleiro mais jovem ao cavaleiro mais experiente, independentemente do tempo que têm competindo nas festividades. É o que conta o cavaleiro mouro Luã Phelype Curcino.
“Eu participo há 23 anos, tinha 9 quando comecei. Dois cavaleiros haviam desistido no dia da carreira e como o meu pai era rei cristão, eu era muito próximo das Cavalhadas. Como foi de última hora, arrumei uma roupa de cavaleiro mirim e por ter o costume de montar, minha história nas Cavalhadas começou aí. De lá para cá todos os anos eu venho correndo. O sentimento é de gratidão e de fé, devoção. É muito importante essa cultura da cidade”, conta.
Enquanto Luã tem mais de 20 anos de participação, Iego Toledo Rodrigues iniciou sua vida como cavaleiro mouro em 2022, na época com 25 anos. Antes disso, teve a oportunidade de correr como cavaleiro substituto e conta, enquanto coloca os adereços em seu cavalo, sobre todos os sentimentos que perpassam o seu coração ao correr em campo representando o castelo mouro.
“O sentimento toda vez que a gente entra no campo de batalha, o arrepio, a emoção, o coração na boca, a ansiedade durante os treinos, a preparação… Tudo tem uma importância cultural para nós e a emoção é muito grande. Só quem corre sabe o que é sentir o coração batendo mais forte dentro do campo”, explica.
Em campo, mouros e cristãos representam lados distintos, mas na realidade, laços de amizade unem os dois grupos, que se integram entre si e fazem provocações amigáveis e bem-humoradas sobre as competições livres. O cavaleiro cristão Lourenço Taguatinga, por exemplo, arruma seu cavalo junto ao amigo Iego, que compete pelo outro lado.
“Meu pai foi imperador em 2003 e minha irmã foi rainha moura em 2006. Sempre gostei dos cristãos e sempre tive mais afinidade. Desde quando nasci eu penso nas Cavalhadas. Sempre fui apaixonado e envolvido no meio. Quando eu tive a oportunidade de correr, substituindo o meu tio em 2012, por mais que fosse do lado mouro, fiquei muito alegre. No ano seguinte o rei cristão Bruno me indicou como cavaleiro e em 2013 eu fui efetivado”, conta com felicidade, enquanto se organiza para a competição.
Entre batalhas e rosas
O charme das histórias de cavalaria também é visto no desenrolar dessa representação da cultura popular, com a imponência dos cavalos, cuidadosamente ornamentados com flores, fitas e outros adereços com as cores dos combatentes.
Outro momento marcante acontece durante o segundo dia, em que cada cavaleiro recebe da rainha do seu lado (mouro ou cristão) uma rosa na cor do grupo, sendo azul para os cristãos e vermelha para os mouros. Essas rosas são elegantemente trocadas entre os membros de cada lado e posteriormente oferecidas a pessoas na plateia, normalmente aquelas que são queridas do cavaleiro, um momento aguardado pelo público que espera ver a quem serão oferecidas as flores.
Personagens marcantes
Para além da imagem do cavaleiro medieval, outros personagens fazem parte do enredo das Cavalhadas de Taguatinga. Diferentemente dos guerreiros, que têm participação vitalícia, saindo apenas em casos como falecimento, razões pessoais ou algum outro motivo específico, figuras como o imperador, as rainhas e a madrinha da festa são eleitas todos os anos.
Para 2023, o imperador escolhido pelos cavaleiros foi Dalmir Pereira, natural do município de Patos de Minas, no estado de Minas Gerais, e morador de Taguatinga desde 1987. “Achava aquela coisa muito bonita, algo que na minha região, em Minas, não acontecia e eu fui tomando gosto pela coisa e me envolvendo, até que em 2022 fui convidado para ser imperador. Para mim foi algo grandioso, uma honra ter sido escolhido. Sempre participei da igreja e dos eventos, então eu tenho um histórico nessa comunidade”, explica.
Outra figura importante para as Cavalhadas é a madrinha, que em 2023 foi representada por Zileide Dias. Natural de Itapagibe, também no estado de Minas Gerais, aos 14 anos mudou-se para Taguatinga, local onde fixou residência há mais de 40 anos. “Para mim é um privilégio ser escolhida entre outras candidatas. Estou emocionada por ganhar 24 afilhados e ser respeitada por todos”, conta.
Dentro do grupo de cavaleiros, há também uma hierarquia. Cada lado possui um rei e um embaixador, que têm seus papéis ressaltados durante a encenação. Bruno Arcanjo é rei cristão há uma década e participa das Cavalhadas desde os 17 anos, sendo este o 22º ano em que corre como cavaleiro. Segundo ele, participar do evento é uma honra que vai muito além do teatro.
Questionado sobre o processo de eleição dos representantes de cada ano, Bruno explica que a escolha leva em consideração a opinião de todos. “O imperador e a madrinha são os 24 que decidem, porque eles representam a festa do ano; então nós escolhemos em conjunto pessoas que estão envolvidas, pessoas que contribuem na comunidade. Em relação às rainhas, a comunidade faz pedidos e os cavaleiros precisam indicá-las também. Então é feita uma votação e cada castelo elege uma todos os anos”, explica.
Helena Zanella e Sophia Oliveira foram eleitas rainhas para este ano. Ambas contam, com animação nos olhos e sorrisos, que assistem às Cavalhadas desde a infância, e ocupar esse espaço era um desejo antigo. “A gente acompanha as Cavalhadas desde pequenas. Tanto eu quanto a Helena participávamos como princesinhas. Hoje, ser rainha é realmente um sonho realizado”, conta Sophia, que em 2023 representa o castelo mouro.
“Quando eu era pequena e falavam que iriam escolher as rainhas, ficava torcendo, cruzando os dedos, desejando que fosse eu. Não sei explicar. É algo realmente prazeroso. Me sinto muito feliz”, diz Helena, rainha cristã.
O peso da tradição
A figura do cavaleiro é também um símbolo muitas vezes sonhado desde a infância. Parte desse desejo vem da visão da montaria em cavalos e do vestuário imponente utilizado por cada um. As peças representam não só o lado pelo qual lutam, mas são uma ilustração do gosto estético de cada um.
Cada guerreiro tem autonomia para escolher os símbolos e figuras desejadas em seu figurino e as capas utilizadas em campo são um show à parte. Normalmente, a decoração das vestimentas cristãs tem a ver com imagens religiosas, que representam seu credo, mas cada uma também pode conter outras figuras decorativas. No caso dos mouros, a simbologia é variada, podendo trazer imagens como flores, estrelas, sol, animais e outros elementos.
“Sou pedagoga, mas as minhas horas vagas são bordando as capas dos meninos. É uma paixão. É um tempinho bem precioso que a gente gasta, bordando com muito amor. É uma tradição nossa”, conta Érica Bispo Mendonça, que começou a bordar as capas quando seu marido, o cavaleiro cristão Carlos Robson, substituiu o primo que havia falecido.
As capas dos cavaleiros e os enfeites dos cavalos trazem o brilho das lantejoulas, a graciosidade das flores e a delicadeza das plumagens e dos fios dourados ou prateados. Cada peça demonstra personalidade e imponência, colaborando em transformar a figura do guerreiro medieval em algo ainda mais emblemático para os moradores da cidade, reforçando a construção de uma identidade local, transmitindo valores de geração em geração, trazendo visibilidade para a comunidade e se constituindo em uma forma de manifestação cultural.
Fonte – Ascom Secult