De qualquer forma, os próprios textos bíblicos concedem a João uma posição especial. “João é apresentado como o precursor do messias e essa imagem é muito forte, é daquele que prepara o caminho da salvação”, pontua Maerki. “Há todo um caráter messiânico. Ele vai ser apontado como o profeta que indicou em Cristo o ‘cordeiro enviado para expiar os pecados do mundo’, aquele que primeiramente teria visto em Jesus o caráter daquele que teria sido enviado por Deus. E a partir daí teria iniciado um novo momento na pregação de João, não só de anunciar que o messias estava próximo mas que esse messias seria o próprio Jesus, uma tradição bíblica que depois a igreja aprofunda, desenvolve e festeja.”
O Evangelho de Mateus, por exemplo, apresenta João Batista como alguém muito maior do que um profeta, como o profeta dos profetas. “Porque, diferentemente dos profetas que falavam do futuro, ele indicou o messias no presente. Isso é muito forte na tradição religiosa. Ele é alguém que não anuncia um futuro distante, ele anuncia um messias que está presente, que se faz presente no momento em que ele fala”, comenta o hagiólogo. Essa primazia é uma interpretação comum a muitos teólogos e estudiosos de textos sagrados.
Por outro lado, enquanto a Igreja consolidou essa visão de João Batista como precursor de Jesus, pesquisas contemporâneas identificam, sobretudo em evangelhos apócrifos — aqueles que não são considerados no cânon oficial do cristianismo — mas também em análise dos textos que constam da Bíblia, uma certa rivalidade entre os dois líderes da mesma época e da mesma região.
“Havia uma grande polêmica entre os discípulos de João Batista e de Jesus, e essa polêmica emerge dos próprios evangelhos. Parece que o próprio Batista não estava muito convencido do carisma profético de Jesus, da messianidade de Jesus”, aponta Maerki. “Tanto que quando ele estava preso, ele enviou alguns de seus seguidores, os que mais confiava, para perguntarem em seu nome se Jesus era aquele que havia de vir de fato ou se ele devia esperar outro.”
“Isso revela, indiretamente, uma dúvida de João Batista, ou seja, a Igreja sempre aceitou João Batista como esse grande profeta mas talvez nem o próprio João Batista acreditasse nisso”, analisa o pesquisador.
Para Maerki, outro fato que corrobora essa tese é que mesmo que o relato bíblico aponte que, no episódio do batismo de Jesus, João e os demais presentes souberam, por uma voz, que estavam diante do filho de Deus, “o eleito”, ele não decidiu dissolver seu grupo, sua escola de pregação, tampouco se unir aos seguidores de Jesus. “Ele continuava sua caminhada, paralelamente à caminhada de Jesus. Isso é muito significativo”, comenta.
Nesse sentido, há o entendimento de que os seguidores de João Batista poderiam respeitar e considerar Jesus um grande mestre, mas não um messias. E que, em última análise, essa posição poderia ser a mesma de João, uma vez que ele manteve suas pregações.
“Depois que Batista foi executado, formou-se um grupo de seguidores que inclusive passaram a defendê-lo como o verdadeiro messias”, conta Maerki. “Ele se transformou em uma espécie de rival de Jesus. Isso não é comentado na bíblia canônica, mas aparece em texto apócrifos.”
No texto apócrifo conhecido como Evangelho de Tomé, Jesus teria dito que “ninguém é tão maior do que João Batista”. “Isso é parecido com o Evangelho de Lucas, em que aparece algo assim, de que ‘entre os nascidos de mulher, não há profeta maior do que João Batista, mas o menor no Reino de Deus é maior do que ele'”, diz o pesquisador.
“Isso talvez seja o pano de fundo, e essa fala de Jesus seja justamente em torno dessa polêmica, dessa rivalidade existente entre os dois”, explica.
São João em Salvador — Foto: Divulgação
Polêmicas à parte, fato é que João Batista se tornou das figuras mais importantes para o cristianismo, e um santo muito popular. Como personagem, transcende o catolicismo — tornou-se figura folclórica, celebrada, ao lado de Santo Antônio e São Pedro, nas famosas festas juninas tão tradicionais nesta época do ano no Brasil.
Algumas lendas ajudam a explicar os elementos típicos da comemoração. “Uma antiga tradição diz que João nasceu no alto de uma montanha e que uma fogueira foi acesa quando sua mãe, Isabel, entrou em trabalho de parto para avisar aos parentes que moravam na planície. Pode ser daí o início das festas de junho, juninas”, diz Lira.
“Primeiro se celebra Santo Antonio, jovem na história do cristianismo, depois João e Pedro contemporâneos de Jesus. As festas brasileiras vieram com o colonizador português e aqui no Nordeste brasileiro têm características bem próprias e animam as noites do sertão e da cidade, incluindo a tradição de se tomar afilhados, padrinhos, compadres de fogueira, com a intercessão do santo.”
“Nos locais nos quais João é padroeiro o novenário é de nove dias, sendo o dia 24 o principal da festa. Catolicamente é esse o rito, mas, o folclore o celebra com fogueira na véspera e outras tradições. A Igreja celebra do seu modo a festa, mas, não há qualquer tipo de proibição formal aos outros festejos aos santos. E viva São João”, enaltece o hagiólogo.
Arcebispo do Rio de Janeiro, o cardeal Orani João Tempesta — que tem João como segundo nome justamente porque nasceu na véspera da festa de João Batista, em 1950 — também vê com bons olhos as festividades populares.
“O mês de junho traz para nós, brasileiros, a oportunidade de confraternização, participação e, ao mesmo tempo, alegria”, comenta ele. “É tempo de comemorar os santos Antônio, João e Pedro e, também, confraternizar com as pessoas juntos, sentir essa proximidade, celebrar a presença na região, na cidade.”
“Vemos São João sendo celebrado em todo lugar, com tradições, alimentos, bebidas, fogueira, fogos, bandeirinhas… Enfim, cada lugar tem um pouco suas características. Como nasci na véspera de São João, nunca faltou, em minha infância a comemoração folclórica da festa de São João, com os doces próprios e as comidas típicas”, ressalta o cardeal. “Isso faz bem para o povo. Nosso povo necessita desses momentos de folguedo, de podermos estar um pouco mais tranquilos e celebrando uns com os outros em meio a tantas dificuldades.”
Tempesta acredita que tais eventos servem para que todos possam “festejar a nossa esperança e a confiança de poder ver dias melhores de paz e fraternidade”.
Fonte – G1