Texto: Val Rodrigues

 

A comunidade do município de Almas, no sudeste do Tocantins, despediu-se nesta terça-feira, 12, de uma das mais queridas moradoras, dona Inácia Cardoso de Macêdo, de 105 anos. A idosa foi sepultada na tarde desta terça-feira, 12, após missa conduzida pelo monsenhor Jones Pedreira, de Porto Nacional, e concelebrada por vários sacerdotes, como o também monsenhor Joatan Bispo de Macêdo, um dos seus nove filhos e filhas, aos quais ela chamava de ‘meus remédios’, e que tanto a orgulhavam.

A despedida foi marcada pela comoção e a reverência de moradores do município e de cidades vizinhas, autoridades, admiradores, filhos, filhas e muitos de seus netos, netas, bisnetos e bisnetas. Incontáveis homenagens foram registradas na ocasião.

 Altiva e espirituosa

Na madrugada de segunda-feira, 11, após um quadro de insuficiência respiratória, em casa, ladeada de filhas e filhos, dona Inácia fez sua páscoa serena, lúcida e cheia de fé. Partiu como comumente se apresentava aos que tiveram a oportunidade de conviver com ela nestes mais de cem anos de vida. Altiva e espirituosa, não se abateu com os percalços do tempo ou das circunstâncias da própria trajetória.

Desde que nasceu em 1917, Inacinha, como era carinhosamente chamada pelos familiares, vivenciou várias faces de um mesmo mundo. Nos primeiros dois terços da vida o viu movimentar-se lento, sobretudo, nesta parte do Brasil profundo e esquecido. Por outro lado, viveu a avalanche provocada por novidades como as tecnologias digitais que alteraram grande parte da ordem estabelecida no planeta na terceira metade da sua existência.

É certo que a linha do tempo da sua história está entrecruzada com a de grandes acontecimentos para a humanidade, como ter passado incólume por duas pandemias. Porém, ao ser reconhecida como a pessoa mais idosa do município, dona Inácia atraía admiração não apenas pelos longos anos vividos, mas pela trajetória resiliente e inspiradora de uma mulher negra, que enfrentou as barreiras do seu tempo e do seu lugar e por conta própria, com a ajuda do marido Quitum, tirou do analfabetismo centenas de moradores rurais.

Trajetória 

Inácia nasceu em 1917, fruto de Sancha, mulher branca, com Doroteu, homem negro retinto, que adquiriu bens trabalhando com a criação de gado e a coletoria de impostos. À frente dos valores de sua época, ele cuidou para que Inácia pudesse estudar, num período em que a educação era um direito negado à maioria das mulheres.

Aos dez anos, em lombo de cavalo, numa viagem de dias, fora levada a estudar no tradicional Colégio Sagrado Coração de Jesus, em Porto Nacional. Inácia recebeu grandes ensinamentos, mas ao mesmo tempo pagou um alto preço pela ousadia de ser uma menina negra num banco de escola na primeira metade do século 20. Porém, enfrentou o preconceito com firmeza, contam filhos e filhas, segundo os relatos dela.

Aos 16 anos, o caminho traçado para ela tomou outro rumo. O pai falecera e apesar de este ter deixado bens suficientes para que pudesse continuar os estudos, fora levada a retornar para casa. Passou a viver com um tio, que seguindo os costumes da época, cuidou para que se casasse. Amparada na fé, ao invés de se recolher às circunstâncias, a jovem Inácia abraçou sua nova realidade.

Legado

Enquanto os filhos nasciam e cresciam, dividia seu tempo entre a educação deles e a dos filhos dos vizinhos de porteira, na escola improvisada na sua própria casa na fazenda onde vivia. Seu esforço continuou na zona urbana, para onde se mudou mais tarde com a família.

É por isso que hoje é reverenciada por muitas mulheres e homens que receberam dela as primeiras ou as únicas letras que os tiraram da cruel estatística do analfabetismo, onde figuram milhões de brasileiros e brasileiras.  “Tenho muita gratidão à dona Inácia, pois foi graças a ela que pude aprender a ler e a escrever” conta o vaqueiro aposentado, Manoel Rodrigues Neto, de 77 anos.

Heroína do seu tempo e do seu lugar

Pode-se dizer que dona Inácia foi umas das grandes heroínas anônimas de seu tempo e do seu lugar, destas que tomam para si responsabilidades que o poder público negligencia. E que a despeito disso, costumam ser invisibilizadas nos registros históricos, mas que se mantêm vivas na memória daqueles que têm seu mundo impactado pelo resultado da sua luta.