Há quanto tempo o novo coronavírus chegou para colocar nosso mundo de cabeça para baixo? O isolamento fez o ano passar mais rápido ou devagar? Quando chegará o “novo normal”?
A pandemia de coronavírus — que, aliás, foi declarada como tal pela Organização Mundial da Saúde (OMS) há (apenas?) seis meses — está afetando de diversas formas nossa percepção do tempo.
E se tem um campo em que os limites do tempo parecem ter sido alterados de forma inédita foi o da ciência.
“Embora possa parecer uma eternidade, é um período (o da pandemia) muito curto para se obter avanços em pesquisas”, dizem os professores Begoña Sanz e Gorka Larrinaga, do Departamento de Fisiologia Humana da Universidade do País Basco, em conversa com a BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).
Material de realização de teste RT-PCR, que detecta o novo coronavírus — Foto: Breno Esaki/Agência Saúde
E, ainda assim, os avanços estão acontecendo.
“A verdade é que a área de pesquisas está recebendo um grande estímulo de outros campos”, levando a “muitas mudanças pioneiras e revolucionárias”, afirma Miguel Pita, doutor em genética e biologia celular.
As profundas crises sociais, econômicas e de saúde causadas pela pandemia mobilizaram investimentos de milhões de dólares e o trabalho incansável de milhares de cientistas de todo o mundo — e, com isso, pelo menos sete aspectos da ciência já mudaram, de acordo com cientistas entrevistados pela reportagem.
1. Colaboração entre equipes
“O coronavírus promoveu a colaboração entre muitas equipes. E essa é uma notícia muito boa”, diz Pita, professor na Universidade Autônoma de Madrid.
“Os pesquisadores tendem a ser muito colaborativos, mas a pandemia foi um estímulo adicional. E os resultados têm sido compartilhados rapidamente para todos os grupos”.
Begoña Sanz e Larrinaga concordam.
“Obviamente, a pressão exercida pela gravíssima situação sanitária e socioeconômica mundial fez aumentar a colaboração de muitas universidades, grupos e centros de pesquisa”, explicam.
Médico se prepara para atender paciente em hospital perto de Buenos Aires, na Argentina, nesta sexta (18) — Foto: Ronaldo Schemidt/AFP
2. Sequenciamento do vírus
Uma destas áreas com forte colaboração internacional é também uma das que registra “grandes avanços”, segundo Pita.
“De forma resumida, diria que, no campo da bioinformática, tem havido grandes inovações na análise de sequências do material genético de cada vírus que infecta as pessoas. Isso nos permite ver como ele evolui com o passar do tempo”, explica o pesquisador.
Estudos avançados sobre acompanhamento a pacientes com a Covid-19, que até o início do ano era desconhecida, são fundamentais para reduzir mortalidade — Foto: Reuters via BBC
Desde que a China relatou a existência do novo coronavírus à Organização Mundial da Saúde (OMS), no final de dezembro de 2019, até os primeiros dias de setembro, pesquisadores de todo o mundo registraram 12 mil mutações em seu genoma, de acordo com a revista científica Nature.
E o número cresce a cada dia.
Nas palavras de Pita: “A comunidade científica está colocando suas melhores ferramentas a serviço desta investigação — aumentando muito a capacidade de cálculo e de revisão das alterações genéticas do coronavírus.”
3. Testes
Um dos grandes desafios no combate à covid-19 tem sido detectar pessoas infectadas a fim de isolá-las e, assim, conter a disseminação da doença.
Sobre isso, Pita destaca “o desenvolvimento de técnicas de diagnóstico muito poderosas e que usam ferramentas de edição de genes — um elemento muito importante da genética hoje”.
Coleta para o teste RT-PCR (laboratorial), o tipo mais indicado para o diagnóstico da Covid-19, feitos pela rede municipal de saúde de Santos — Foto: Isabela Carrari/Prefeitura de Santos
O pesquisador reconhece que testes de diagnóstico rápido são “menos sensíveis” que os testes moleculares (PCR), e portanto muitos acabam não sendo confiáveis para a tomada de decisões, mas têm a vantagem de oferecer resultados imediatos e ajudar epidemiologistas a traçar um cenário sobre o avanço (ou não) da doença em determinadas comunidades.
Pita cita também o desenvolvimento de técnicas de diagnóstico diferencial para distinguir o SARS-CoV-2 de outros vírus, “o que é de grande importância para o diagnóstico correto dos doentes e, portanto, para a escolha do tratamento”.
4. A corrida da vacina
O fato deste coronavírus e a doença que ele causa serem novos significa que ainda há muito desconhecimento sobre eles. Mas há algo que para os especialistas é evidente: a única maneira de chegar a uma imunidade coletiva é com uma vacina.
E o sucesso disto depende do cumprimento de alguns requisitos: é preciso encontrar uma candidata que se mostre eficaz, segura e passível de ser administrada à população de forma massiva, dizem Begoña Sanz e Larrinaga.
“Se, como diz a OMS, isso acontecesse em 2022 — embora nos pareça distante —, seria um grande sucesso, considerando o tempo que se levou para obter outras vacinas e aplicá-las em grande parte da população mundial.”
Na verdade, o prazo usual para o desenvolvimento de vacinas é de 15 a 20 anos; agora, pode ser que cheguemos a um recorde de um ou um ano e meio.
Isso foi destacado em um artigo publicado no mês passado no periódico JAMA e liderado por Paul Offit, um imunologista americano famoso por ter participado da criação de uma vacina contra o rotavírus.
Imagem microscópica de partículas de coronavírus — Foto: NIAID-RML via AP
O texto diz que o projeto de uma vacina contra o SARS-CoV-2 está caminhando em “velocidade vertiginosa”.
Mas a novidade não está apenas no tempo, mas também nas diferentes metodologias utilizadas para o seu projeto — “algumas delas com características nunca antes consideradas”, diz Pita.
“São vacinas que, tendo eficácia comprovada, representariam um processo de produção industrial muito mais rápido do que de vacinas com desenhos clássicos — algo muito útil em uma situação como a atual (de pandemia)”, afirma o pesquisador.
O artigo no JAMA explica duas novas metodologias que estão sendo utilizadas no desenvolvimento das vacinas.
Uma candidata à vacina contra o coronavírus da Sinovac Biotech é vista em seu estande durante a Feira Internacional de Comércio de Serviços da China (CIFTIS) em Pequim, no sábado (5) — Foto: Tingshu Wang/Reuters
Uma é o das vacinas de RNA mensageiro (mRNA), que “nunca foram usadas comercialmente para prevenir infecções”, afirma o artigo. É o caso dos projetos da Moderna e também da parceria entre Pfizer e BioNTech.
A outra metodologia é baseada na modificação genética de uma família do vírus da gripe comum, como vem sendo testado pela Johnson & Johnson e pela parceria entre Universidade de Oxford e AstraZeneca.
“Semelhante às vacinas de mRNA, não existem vacinas disponíveis comercialmente para prevenir doenças humanas usando esta estratégia (da alteração genética). Seu uso clínico foi limitado a uma vacina licenciada contra a raiva animal”, diz o estudo publicado no JAMA.
De acordo com Offit e sua equipe, vários fatores como “a natureza trágica de uma pandemia em curso criaram um terreno fértil para a inovação”.
“Embora o sucesso definitivo de uma candidata, ou candidatas, a vacina ainda seja desconhecido, as mudanças na área das imunizações que estas exigentes circunstâncias trouxeram provavelmente vieram para ficar”, dizem os pesquisadores.
5. Outros tratamentos
Além da corrida por uma vacina, pesquisadores também estão dedicados ao desenvolvimento de tratamentos para pacientes infectados com o novo coronavírus — seja com medicamentos existentes, completamente novos, apostando no vírus como alvo ou no fortalecimento do sistema imunológico.
Há também terapias em teste que focam em diferentes fases da doença, desde as mais leves às mais graves.
A OMS monitora mais de 1,7 mil estudos com terapias em potencial pelo mundo, dos quais 990 já estão recrutando pacientes para experimentos.
A organização também coordena um projeto internacional, o Solidarity, que foca em três tratamentos promissores (e já existentes para outras doenças): remdesivir; lopinavir/ritonavir apenas ou associado ao interferon beta. Já foram recrutados 5,5 mil pacientes para estudos clínicos em 21 países. Segundo a OMS, “embora ensaios clínicos randomizados normalmente levem anos para serem elaborados e conduzidos, o Solidarity reduzirá o tempo gasto em 80%”.
6. Práticas de higiene
“Outro grande avanço, não diretamente relacionado às pesquisas nos laboratórios mas que é fundamental para o futuro, é a introdução na cultura dos cidadãos de certos hábitos de higiene e prevenção que ajudarão a conter este e outros surtos causados por vírus”, afirmam Begoña Sanz e Larrinaga.
Lavar as mãos com água e sabão é uma das recomendações para evitar a contaminação pelo coronavírus — Foto: ivabalk/Pixabay
É o caso do uso de máscaras e de se evitar locais com aglomeração, principalmente fechados, quando há pessoas com sintomas gripais.
Na verdade, estudos em diferentes países já mostram que as medidas tomadas contra a covid-19 tornaram a temporada de outras doenças respiratórias virais menos extensa e mortal.
Por exemplo, uma pesquisa publicada no mês passado no periódico British Medical Journal (BMJ) analisou dados sobre resfriados, gripes e bronquite de 500 clínicas na Inglaterra e descobriu que, em média, nove vezes menos casos foram registrados na comparação com os cinco anos anteriores.
7. A importância da ciência
Para Mercedes Jiménez Sarmiento, bioquímica do Centro de Pesquisas Biológicas Margarita Salas, na Espanha, “uma mudança profunda e resultado da pandemia é que a sociedade entendeu que a solução passa pela ciência”, disse ela à BBC News Mundo.
O excesso de coagulação no sangue pode causar trombose, infartos ou embolia pulmonar — Foto: John Cairns/University of Oxford via AP
Os cidadãos, explica, “quiseram saber sobre saúde e ciência, e fizeram-no diretamente com os especialistas. Estes, por sua vez, têm se esforçado para se comunicar melhor, estimulados pela busca por informação de qualidade por parte dos jornalistas e sociedade”.
Jiménez Sarmiento enfatiza que “comunicar ciência não é fácil”: “São conteúdos complexos com uma linguagem segmentada. Os avanços também são lentos e com base em evidências muitas vezes não óbvias, que se modificam quando surgem novas evidências. E isso é difícil de aceitar”.
Por isso, ela acredita que “tem havido um grande avanço mútuo da ciência e da sociedade, porque agora estão mais próximas do que nunca e devem se apoiar”.
Fonte: G1