“É apenas o início de tudo”. Assim Keila Simpson, presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), refere-se à decisão da Organização Mundial de Saúde (OMS) de retirar as identidades trans da lista de transtornos mentais. Keila é uma das muitas pessoas que, por terem assumido uma identidade de gênero diferente daquela atribuída no nascimento, têm suas vidas e seus próprios corpos como expressões de resistência. Por isso, sabe que a decisão da OMS não leva à superação imediata de violências e preconceitos. Mesmo assim, acredita que a decisão quebra paradigmas e pode abrir espaço para mais transformações que vão dar força para as políticas para diversidade.
A alteração foi confirmada ontem (18), com a publicação da 11ª versão da Classificação Internacional de Doenças (CID), um sistema criado para relacionar, sob um mesmo padrão, as principais enfermidades, problemas de saúde pública e transtornos que causam morte ou incapacitação de pessoas. Antes, a CID-10, formulada há 28 anos, incluía as questões de identidades de gênero no rol dos “transtornos mentais, comportamentais ou do neurodesenvolvimento”. A nova versão será apresentada aos Estados-Membros das Nações Unidas na Assembleia Mundial da Saúde, em maio de 2019, e entrará em vigor no dia 1o de janeiro de 2022.
Coordenadora-geral de Promoção dos Direitos LGBT do Ministério dos Direitos Humanos, Marina Reidel comemora a decisão. “O fato de retirar a temática das doenças mentais já é um avanço, porque nós nunca nos reconhecemos como pessoas com doenças mentais. Era mais um problema a mais para a gente”, afirma. Agora, “nós temos que continuar avançando nesse sentido”, defende. Esses avanços, acredita, poderão ser expressos em mais políticas públicas que promovam o respeito à diversidade e que garantam direitos para a população trans.
No Brasil, já há reconhecimento formal da identidade trans. O Ministério da Educação, por exemplo, autoriza o uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares da educação básica. Já o Ministério da Saúde tem, desde 2011, a Política Nacional de Saúde Integral LGBT, que reconhece particularidades de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Não obstante, ainda é preciso avançar, reconhece Marina. Como exemplo disso, cita que apenas cinco hospitais em todo o Brasil são autorizados a fazer cirurgias de redesignação sexual. Os hospitais são vinculados a universidades e ficam nos estados do Rio de Janeiro, de São Paulo, Pernambuco, Goiás e do Rio Grande do Sul.
“A gente tem feito várias políticas para pensar a população LGBT como um todo. E temos uma preocupação com a temática trans, por ser uma população mais vulnerabilizada. A violência é muito forte contra a população trans, e temos feito várias ações nesse sentido”, afirma Marina, que cita como exemplo o recente anúncio do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência LGBTfóbica. Como a implementação do programa depende da adesão dos estados, Marina entende que o interesse dos Entes Federativos poderá ganhar força com a mudança promovida pela OMS. “Isso vai pressionar os estados brasileiros a repensar algumas políticas”, reitera.
Incongruência de gênero
Segundo a nova classificação (CID-11), as identidades trans deixam de ser consideradas “transtorno de gênero” e passam a ser diagnosticadas como incongruência de gênero, uma condição relativa à saúde sexual, que também passou a ganhar um capítulo próprio na classificação. Nela, a incongruência de gênero é apresentada como uma situação “caracterizada por uma incongruência acentuada e persistente entre o sexo experienciado de um indivíduo e o sexo atribuído”. Ainda de acordo com o texto, “comportamento variante de gênero e preferências, por si, só não são uma base para atribuir os diagnósticos neste grupo”.
A utilização do termo e a manutenção da questão de gênero na CID, ainda que não como doença, gera discussões. “Obviamente, nós queremos a despatologização por completo, mas a retirada dessas classificações como travestismo e transexualismo, para nós, já é bastante importante. A recondução desses termos e a retirada do número da CID que patologizava e colocava essas identidades como transtornos mentais é um avanço importantíssimo para continuarmos no debate sobre a despatologização”, afirma Keila Simpson.
De acordo com a OMS, a manutenção do termo “incongruência de gênero” busca garantir que a população trans tenha sua condição reconhecida pelos médicos e hospitais, no momento em que procurem atendimento nos diferentes sistemas de saúde. “A lógica é que, enquanto as evidências são claras de que não é um transtorno mental, e de fato pode causar enorme estigma para as pessoas que são transexuais, ainda existem necessidades significativas de cuidados de saúde que podem ser melhores se a condição for codificada sob o CID”, conforme o texto de divulgação das mudanças.
Por Helena Martins – Repórter da Agência Brasil