Professor: profissão perigo - A anatomia da violência escolar

Por Marco Aurélio Jacob

A agressão covarde, desferida pelas costas contra um professor em sua própria sala de aula por um aluno de ensino médio, em Palmas, Tocantins, é a crônica de uma tragédia anunciada. O ato físico, seguido por ameaças, transcende o perímetro da escola e se torna um espelho sombrio da sociedade brasileira. Não se trata de um mero desvio de conduta juvenil, mas da consequência palpável de um processo complexo de desintegração social, desvalorização profissional e falência estrutural que transformou a sala de aula, antes um santuário do saber, em um palco de medo e risco iminente.

A Epidemia Silenciosa em Números

O que ocorreu em Palmas é um dos incontáveis focos de uma epidemia que se alastra pelo país. O Brasil, segundo dados históricos compilados pelo G1, figura como um dos países mais perigosos do mundo para o exercício da docência. A violência contra professores assumiu contornos sistemáticos. Uma pesquisa nacional detalha a frequência alarmante dos ataques: a agressão verbal, com 48% dos casos, tornou-se uma rotina cruel, um ruído de fundo que mina a saúde mental. Ela é seguida pelo assédio moral (20%), pelo bullying (16%), que expõe os mestres à mesma humilhação que deveriam combater entre os alunos, pela discriminação (15%) e, finalmente, pela agressão física (5%), a expressão mais brutal da perda de respeito.

A percepção de insegurança é tão concreta que, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2019, 11,4% dos estudantes já deixaram de ir à escola por não se sentirem seguros. Este dado revela que o ambiente escolar adoeceu para todos os seus protagonistas. Ciente da escalada, o Ministério da Educação lançou, em junho de 2024, uma nova e urgente pesquisa para mapear a profundidade desta crise, um reconhecimento oficial de que o problema atingiu um ponto crítico. A consequência direta é a transformação da docência em uma das profissões que mais afastam profissionais por transtornos psíquicos, um êxodo silencioso de talentos que não suportam mais o fardo do adoecimento.

As Raízes da Violência: Desinformação, Famílias sob Pressão e o Fracasso das Falsas Soluções
A autoridade do professor não foi perdida, ela foi sistematicamente demolida. Este processo se ancora em uma campanha difamatória contínua. A demonização de Paulo Freire, um dos educadores mais respeitados do planeta, e a construção de uma narrativa falaciosa que retrata professores como “doutrinadores ideológicos” criaram um clima de suspeita e hostilidade. Essa desinformação, amplificada por discursos de ódio, arma parte da sociedade contra a escola, corroendo a confiança que é a base de qualquer processo pedagógico. O professor, despojado de sua legitimidade, torna-se um alvo fácil.

Simultaneamente, a estrutura familiar brasileira enfrenta uma crise sem precedentes. Com a inadimplência atingindo recordes históricos, como aponta a Veja, e a precarização do trabalho, as famílias estão esgotadas. Em um ambiente de estresse financeiro e desestruturação, a educação dos filhos é frequentemente terceirizada. A escola passa a ser vista não como uma parceira, mas como a única instituição responsável por impor limites e regras, uma função que ultrapassa sua capacidade e seu propósito.

É neste cenário de ansiedade social que ganham força propostas autoritárias e ineficazes, como a das escolas cívico-militares. Artigos publicados em veículos como a Ponte e a CartaCapital demonstram, com base em especialistas, por que este modelo é um retrocesso. Ele não cultiva a disciplina consciente e o pensamento crítico; pelo contrário, impõe uma cultura de medo, obediência cega e punição. Ao tratar o sintoma (a indisciplina) com um remédio que ataca a própria essência da formação humana integral, essas escolas falham em preparar os jovens para a complexidade da vida em democracia.

O Transbordamento da Violência: Quando a Casa e a Sociedade Adoecem a Escola

A violência na escola raramente é um fenômeno que se origina nela. O Atlas da Violência 2025, do IPEA, é categórico: o lar é o principal palco de violência contra crianças e adolescentes. A edição de 2019 da PeNSE já havia registrado um aumento assustador de 111% na agressão sofrida por estudantes por parte de familiares, em relação a 2009. O mesmo estudo aponta que 40,5% dos alunos sofreram bullying e 62,5% se sentiram tristes e desamparados.

Esses jovens, vítimas em seus lares e massacrados em seus ambientes de convívio, chegam à sala de aula carregando um fardo de traumas e angústias. O IPEA levanta a hipótese de que o aumento dessas violências está diretamente associado ao recrudescimento do radicalismo político e de ideologias de extrema direita. A “machoesfera”, uma rede online que propaga misoginia e masculinidade tóxica, oferece um falso senso de pertencimento e poder a jovens em crise de identidade, normalizando a agressão como forma de autoafirmação. O resultado é devastador: entre 2013 e 2023, o Brasil assistiu ao suicídio de 11.494 crianças e adolescentes, um aumento de 42,7% no período, o mais trágico atestado do nosso fracasso civilizatório.

O Abandono Estrutural do Estado e a Insalubridade do Aprender

A crise é agravada pela omissão e pela “presença seletiva do Estado”, como define um relatório do Extra Classe. Onde deveriam existir políticas públicas de proteção e acolhimento, o Estado se manifesta através da coerção, mas falha em garantir condições dignas de trabalho e aprendizagem. A infraestrutura física das escolas é a prova material desse abandono. Dados de 2024 revelam um cenário desolador: apenas 81,4% das escolas públicas estaduais possuem bibliotecas. Em um país tropical, somente 38% das salas de aula da rede pública estadual são climatizadas, tornando o ato de ensinar e aprender uma provação diária sob calor extremo.

A ausência de laboratórios, quadras cobertas, equipamentos de acessibilidade e acervos atualizados não é um mero detalhe, mas um fator que impacta diretamente a qualidade do ensino e a salubridade do ambiente, potencializando o estresse e o conflito. A precariedade do espaço físico é a metáfora da precariedade do valor dado à educação.

Uma Convocação para a Reconstrução

O professor agredido em Palmas é um retrato de todos os educadores brasileiros que se sentem desprotegidos e abandonados. Reverter esta crise exige mais do que notas de repúdio; exige uma ação coordenada e corajosa em múltiplas frentes.

É imperativo declarar um compromisso nacional com a reconstrução da infraestrutura escolar, garantindo que cada sala de aula seja um ambiente digno e propício ao aprendizado. Precisamos, com urgência, repovoar as escolas com equipes multidisciplinares – psicólogos, assistentes sociais – que possam oferecer suporte contínuo a alunos, famílias e aos próprios professores, tratando as causas da violência, e não apenas suas consequências.

Acima de tudo, é preciso refundar o pacto de respeito entre a sociedade e seus mestres. Isso passa por valorização salarial, formação continuada e, crucialmente, pelo combate incansável às narrativas de desinformação que transformaram educadores em inimigos. Proteger a integridade física e mental de um professor é proteger o futuro de gerações. É hora de o Brasil entender que, quando um mestre cai, é a promessa de um país melhor que tomba com ele.

Foto Marco Jacob 2023
Marco Jacob

Diretor Geral, COO, CFO e Colunista.

Marco Aurélio Jacob cursou Comunicação Social - Publicidade e Propaganda (UP - Curitiba), especializado em Comunicação e Semiótica pela PUC-PR e Cultura e Antropologia pela UFT. Produtor Cultural, atuou como professor universitário e tem publicações no Brasil e no exterior. Atua nas áreas de Web, Cinema, Rádio e Televisão.

Marco Aurélio Jacob cursou Comunicação Social - Publicidade e Propaganda (UP - Curitiba), especializado em Comunicação e Semiótica pela PUC-PR e Cultura e Antropologia pela UFT. Produtor Cultural, atuou como professor universitário e tem publicações no Brasil e no exterior. Atua nas áreas de Web, Cinema, Rádio e Televisão.