Três dias depois que o presidente Jair Bolsonaro anunciar que o Ministério da Educação estuda “descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia” no Brasil, a socióloga e diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), Maria Arminda do Nascimento Arruda, foi convidada pelos alunos para falar sobre as perspectivas da faculdade – um dos principais centros de pesquisas em ciências humanas do país.

Durante palestra, ela citou indiretamente pensadores como Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e Theodor Adorno, mas seu prognóstico final se valeu de uma canção de Chico Buarque: “Para nós, qualquer desatenção pode ser a gota d’água”. Arruda conversou com a DW.

DW: Qual é o impacto material do plano anunciado pelo governo?

Maria Arminda do Nascimento Arruda: Há uma proposta de controle de recursos e de orçamento, com a ideia de que as universidades não podem ser gratuitas, e de que deve haver um corte diferenciado: cortar o que eles acham que é inútil, o que nos atinge. Por trás disso há a ideia de que as universidades são perdulárias, enquanto não está em questão a importância civilizatória, de reflexão, de conhecimento, de ciência que elas produzem. Para eles, a universidade tem que dar resultados imediatos e apenas o que eles consideram absolutamente útil deve ser preservado. Eles acham que a universidade é só um estorvo. É uma visão obscurantista.

Maria Arminda Nascimento Arruda, socióloga e diretora da FFLCH-USP

“Não conheço nenhum curso na USP na área de de humanidades que seja um curso montado para fazer doutrinação política”, diz diretora da FFLCH

A senhora espera pelo corte de bolsas para alunos de ciências humanas?

Não sei se haverá, mas é possível. O CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico ] já avisou que só pode pagar bolsas até setembro, porque passou por um corte orçamentário enorme. Isso está em questão. E quando eles cortarem, vão fazer de forma diferenciada, e nossas áreas serão as prioritárias [as bolsas para estudantes de ciências sociais consumiram 1,4% dos recursos do CNPq no ano passado]. A universidade tem que se preparar e construir políticas para enfrentar isso, mas eu não tenho ilusão que eles achem que somos importantes.

Qual é a relevância que as afirmações do presidente Bolsonaro e do ministro da Ecucação, Abraham Weintraub, têm para o debate social e político atual?

São relevantes porque eles constroem as políticas para a área de educação. Na medida em que essas opiniões, essas visões se transformam em políticas, todo um setor fundamental da reflexão da vida científica, cultural e intelectual do Brasil é minimizado. Isso mostra toda uma concepção sobre a educação, a universidade e, sobretudo, em relação às ciências humanas e sociais.

Como você vê a acusação de que as universidades públicas brasileiras promovem uma doutrinação de esquerda?

É uma tolice absoluta. Isso é uma invenção, porque a universidade é o lugar da diversidade e de várias opiniões. Não conheço nenhum curso na USP na área de humanidades que seja um curso montado para fazer doutrinação política. Isso é uma construção que está sendo usada politicamente. O que acontece no caso das ciências sociais é que nós somos disciplinas cuja operação de conhecimento implica uma relação entre aquele que pesquisa e o seu objeto pesquisado. Nós não somos ciências experimentais, e nessa relação se estabelece uma empatia e o sujeito, o que não quer de maneira nenhuma dizer daí deriva uma doutrinação ideológica. A universidade tem um compromisso plural e um compromisso com o conhecimento.

Mas a crítica é que há um “marxismo cultural” embutido nas ementas dos cursos de Humanas.

Essa construção da ideia de um marxismo cultural é uma construção muito discutível porque é uma vulgarização da contribuição do [filósofo italiano Antonio] Gramsci, que era um marxista. Ele fez uma crítica à noção do socialismo como resultado de uma revolução do partido que alteraria a sociedade. Ele diz que isso não adiantava, que era preciso uma mudança de direção. A revolução não seria simples, mas necessitaria de uma construção de legitimidades que aconteceria no universo da cultura. É isso que ele fala. Agora daí a dizer que as universidades e as ciências humanas estão montadas para fazer isso eu desconheço. É uma má leitura interessa da questão.

O ministro da Educação também argumentou que cursos como o de Filosofia são para as elites. Como você responde a essa crítica?

O curso de Filosofia da USP hoje tem um dos recrutamentos sociais mais democráticos da universidade. Ele não se dá entre as elites. É claro que poder estudar Filosofia pressupõe uma perspectiva diversa: você não está pensando em uma profissão diretamente ligada ao mercado, mas em outros valores.

Como você vê a última discussão levantada por Weintraub sobre o direito dos alunos em gravar as aulas?

A princípio, não vejo nada de errado em gravar uma aula, mas se for com o objetivo de denunciar, agredir ou com má intenção, sou contra. O ambiente da universidade deve ser o da liberdade de expressão e de pensamento, não o de patrulhar os professores. Além do mais, gravar implica consentimento: não se pode gravar ninguém escondido, se não tem nenhuma investigação em curso. Aqui ninguém é criminoso. Quanto mais eu vejo essas declarações, mais eu me revolto e me assusto.

Como os professores estão reagindo ao momento?

Até agora não recebi nenhum relato de professor, mas a sociedade está assistindo tudo “bestializada”, para usar a expressão do [jurista] Aristides Lobo. Temos pouca capacidade de reação, mas não adianta: precisamos superar o temor e o medo.

Fonte: Deutsche Welle

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