Por  Mario Lúcio Avelar

As ameaças do presidente da República contra os demais Poderes (Legislativo e
Judiciário, representado pelo STF) fazem há algum tempo parte do quotidiano da Nação.
Não foram poucas as vezes que o primeiro mandatário, filhos e militares que gravitam o
seu entorno proferiram ataques às instituições de Estado. Para “fechar o STF basta um
cabo e um soldado” – disse um dos filhos.

A última sexta-feira (22) vai entrar para história. Não sabemos se por privilégio ou má
sorte, foram necessários mais de 130 anos desde a proclamação da República para o Brasil
assistir a dois atos num mesmo dia que bem resumem a cena política descortinada pelo
menos desde 2013”.

Vamos ao primeiro deles: ainda no meio da tarde daquele dia, o ministro-chefe do GSI
(Gabinete de Segurança Institucional), general Augusto Heleno, divulgou nota criticando
o ato do ministro Celso de Mello, do STF (Supremo Tribunal Federal), que encaminhou
à PGR (Procuradoria-Geral da República) pedidos de partidos e parlamentares de
oposição para que o celular do presidente fosse apreendido e periciado.

O general da reserva tinha visto na determinação do decano do Supremo – ato próprio de
ministro que conduz um inquérito – algo “inconcebível” e “inacreditável”. Para ele, “seria
uma afronta à autoridade máxima do Poder Executivo e uma interferência inadmissível
de outro Poder, na privacidade do Presidente da República e na segurança institucional
do país”. O ato do general ganharia um dia depois apoio do ministro da Defesa, Fernando
Azevedo, que fala aparentemente pelo conjunto das forças armadas.

O segundo evento: se a evidência de ameaça explícita de golpe já tinha elevado a
temperatura do ambiente político, o choque com a desfaçatez viria algumas horas depois.
A divulgação do vídeo da reunião ministerial no mesmo dia 22 de abril por ordem do
ministro do STF Celso de Melo revelaria ao país um pouco de tudo: palavras de baixo
calão, agressões a governadores e a ministros do STF, ameaças de rupturas institucionais
e um plano macabro do Ministro do Meio Ambiente de destruição da Amazônia.

Fanatismo, sectarismo, falta de pudor e talvez não expressem tudo o que se viu na reunião
ministerial. Foram precisos mais de 130 anos de República para que o povo brasileiro
pudesse ver e ouvir a mais alta da administração do país apropriar-se das instituições e
tramar a proteção policial para amigos e familiares do presidente, além de para ele
próprio, contra investigações criminais.

O excesso de grosserias e cafajestadas somente não encontrou ressonância maior que a
falta de projetos para afastar o país da grave crise econômica, social e sanitária. À mesa
da reunião faltou a compaixão com o povo brasileiro. Sobraram a sabotagem do Ministro
do Meio Ambiente contra a proteção da Amazônia e o oportunismo explícito de como
desmonta a legislação ambiental no instante em que o país tem sua atenção voltada à
crescente perda de vidas humanas para a Covid-19.

Ao conhecimento público também veio a indiferença do ministro da economia Paulo
Guedes para com as pequenas e médias empresas. É grave para o conjunto de empresários
e trabalhadores o fato de a pandemia destruir emprego e renda pela falta de crédito
público. Do conjunto da obra nada se compara, porém, ao desejo explicitado pelo
presidente da República de levar o país à guerra civil: “Por que eu tou armando o povo?
Porque eu não quero uma ditadura! (…) É escancarar a questão do armamento aqui. Eu
quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado” – disse o
presidente em meio a miseráveis adjetivos.

O macabro projeto do presidente de quebrar as regras do jogo democrático e de estimular
a violência nas ruas não se resumiu às palavras: “Eu peço ao Fernando (Ministro da
Defesa) e ao Moro (Ministro da Justiça) que, por favor, assine essa portaria hoje que eu
quero dar um puta de um recado pra esses bosta!” O qualificativo rastaquera tinha alvo
certo: os governadores e os prefeitos que cumprem a Lei e protegem a população contra
a propagação da pandemia. Já a portaria seria publicada no dia e tratava de elevar a
quantidade de munição que poderia ser comprada por um civil de 200 unidades por ano
para 550 por mês.

Menos pelo palavrório e mais pelas ameaças de ruptura a reunião expôs o único programa
do presidente da República: o de construção de um estado miliciano e autoritário. Assim
como Luiz XIV, monarca francês que viveu no século XVII, o pretenso déspota dos
trópicos vê na Constituição Federal a expressão da sua personificação. “A Constituição
sou eu”, disse ele.

Nada mais natural, portanto, a ideia de que o estado deve ser utilizado para proteção da
família e de seus amigos; natural também a ideia de fechar o Congresso Nacional e o
Supremo Tribunal Federal. Por que não interferir na Polícia Federal? Por que não
aparelhar o serviço de informações do Estado ou mesmo criar seu o seu próprio? O
objetivo do déspota é sempre o mesmo: perseguir minorias, silenciar a oposição, atacar
jornalistas, censurar a cultura, concentrar poder. Vale aqui a máxima de Alexis de
Tocqueville, 1835, sobre a autoridade do déspota: “Seus filhos e seus bons amigos
constituem para ele a totalidade da espécie humana”.

Em entrevista ao Le Monde de domingo (24), o Diretor Executivo do Observatório
Político da América Latina e Caribe (Opalc) Gaspard Estrada, disse: o “único projeto de
Bolsonaro é destruir as instituições da Nova República que saíram da Constituição de
1988”. Ele lembrou a propósito a declaração dada em março de 2019 por ninguém menos
que o próprio Bolsonaro durante evento da embaixada do Brasil em Washington.
A reunião ministerial serviu também para desmistificar o que os principais analistas
políticos da imprensa corporativa até há pouco martelavam: Jair Bolsonaro está longe de
ser controlado pelas elites econômicas e pelas instituições que o criaram. O processo de
degradação institucional segue avançando e com ele o desejo do presidente de mais poder,
de armar milícias e de eliminar a oposição.

Depois da divulgação do vídeo ministerial parece que não poucos mais duvidam que está
em curso no País a instituição de uma ditadura. De nada adianta dizer que o presidente
foi eleito; que as instituições funcionam e quejando. Se olharmos bem a história não será
difícil perceber que na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler o fascismo também
ascendeu ao poder pelo voto.

O ato do presidente de armar a população precisa ser levado a sério, como também suas
palavras; está em andamento no país um movimento fascista de estado; está em curso um
projeto de superação da deteriorada democracia por um regime de força. Os ingredientes
desse movimento estão presentes: um presidente reacionário, despótico e perigoso;
militares complacentes, quando não coniventes, ocupando mais de uma dezena de
ministérios; uma minoria fanática, mas barulhenta, que o segue disposta a sacrificar-se
pelo líder; um discurso profundamente conservador, superficialmente crítico dos
problemas nacionais, mas capaz de mobilizar setores da sociedade; o culto ao militarismo
e à violência.

Nunca a atuação do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal, das instituições
foi tão necessária. Esperar que o projeto de Jair Bolsonaro se consolide ou que o estado
autoritário seja proclamado no Diário Oficial pode não ser uma boa aposta.