Foto – Leo Martins

Quando Gilberto Gil fala ou compõe, é muito raro que faça alguma referência negativa à velhice. Os 80 anos completados neste domingo trazem plenitude, sabedoria e gratidão. E também movimento — intenso até.

A idade deu a Gil uma capacidade única. “Você poder reger sua orquestra inteira: você entra no mundo da regência mais plena, mais próxima do Absoluto”, afirma ele no recém-relançado “Todas as letras” (Companhia das Letras), livro que reúne transcrições de suas letras, comentadas pelo próprio.

Não pergunte, portanto, o que o cantor, compositor e imortal da Academia Brasileira de Letras tem feito nos últimos meses. É mais fácil perguntar o que ele não está fazendo. Neste domingo mesmo, Gil e sua família se apresentam na Alemanha. A turnê se estenderá até final de julho por Dinamarca, Marrocos, França, Itália e Inglaterra, entre outros países.

A reunião familiar rendeu ainda um reality show, “Em casa com os Gil”, que estreou esta semana no Amazon Prime. E fala-se também de uma possível volta dos Doces Bárbaros, grupo que o baiano criou com Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia nos anos 1970.

— A idade tem acomodações próprias no plano espiritual, emocional e psíquico — diz Gil, em uma entrevista no seu escritório na Gávea. — O tempo do homem velho é diferenciado, tudo tem um peso diferente. Não é como o da infância, da juventude ou da vida adulta. Como diz o Caetano: “O homem velho é o rei dos animais.”

Alô, Rio de Janeiro

Mesmo viajando pelo mundo, Gil se diz ligado à sua concha (“como bom canceriano”, justifica). A esposa, Flora, com quem é casado há 40 anos, conta que, para o marido, férias é deixar a mala desfeita e curtir o seu apartamento de 344m² no mítico Edifício Chopin, em Copacabana. Um de seus prazeres cotidianos são as caminhadas na Avenida Atlântica, não muito longe do ninho. Ele comenta:

— É bom sair e fazer coisas, mas nada melhor do que voltar para casa.

O cantor revela que, com a idade, o seu lado caseiro se intensificou. Nos últimos anos, a quarentena forçada pela pandemia lhe tirou o costume do mundo exterior. Quando eventualmente saía de casa, após longos períodos confinado, sentia-se amedrontado com o movimento da cidade:

— Ficava em pânico com a rua, a barulheira, o trânsito, a passagem dos ônibus, dos carros… Só agora voltei a me habituar.

Apesar de tudo, ele ainda sabe apreciar o fluxo urbano e encontrar a paz em todos os cantos. Um caso de graciosidade sob pressão.

— Gosto até do trânsito amarrado — diz Gil. — Mas deixei de dirigir. Não tenho mais aquela coisa do volante do carro, de tentar entender para onde ir, quando frear, quando acelerar. Isso me dá uma possibilidade de andar pelas ruas, nos lugares onde há concentração de gente. E eu sempre acho um jeito de estabelecer uma atitude meditativa nesses lugares. Consigo meditar em qualquer lugar.

Foto – Leo Martins

Eu só quero um xodó

Todo esse equilíbrio seria impossível sem a parceria com Flora, uma paulistana de 62 anos. Eles se conheceram em 1978, em uma rua de Salvador. Saindo de um show de Baby do Brasil (então Consuelo) na capital da Bahia, ela pediu carona. Um carro parou: eram a atriz Regina Casé e Gilberto Gil.

Desde então, um complementa o outro. Gil é mais caseiro, Flora é mais da rua, gosta de sair com as amigas. Gil é o sonhador, Flora “a operacional”, segundo o marido. Foi ela que, durante a pandemia, teve a iniciativa de levar o acervo do artista ao Google Arts & Culture.

O material deu origem a “O ritmo de Gil”, primeira retrospectiva sobre um artista vivo feita pelo Google. Lançado na semana passada, o museu digital recuperou e disponibilizou um álbum em inglês, preparado pelo artista em 1982 e dado como perdido.

— Flora é uma zeladora exemplar das questões da minha vida — diz Gil. —Ela toma conta da família inteira e toma conta de mim com naturalidade, sem senso de sacrifício. Assim como ela nasceu para ser casada comigo e me encontrar, eu encontrei ela.

Curiosamente, a organizadora da dupla se apoia em uma máxima do marido para tocar os projetos adiante.

— Gil tem uma frase que levo para a vida: toda solução é um problema para outra pessoa — lembra Flora. — Gil é uma das pessoas mais corretas e generosas que conheço: ele nasceu bom e gosta de cultivar a bondade.

A família de Gilberto Gil — Foto: Divulgação/Prime Video

A família de Gilberto Gil — Foto: Divulgação/Prime Video

São todos sãos

Os laços familiares são uma forma de Gil se manter atualizado com as novidades. A turnê “Gilberto Gil & Family: Nós a gente” reúne quatro filhos (Bem , José, Preta e Nara) e quatro netos (João, Flor, Sereno e Francisco).

— A naturalidade de convívio, do estar junto em família, elimina a diferença da idade com filhos e netos — diz o artista. — Meus filhos adultos são como irmãos. Já os netos vejo como novos filhos. Está tudo ali, no plano da acomodação natural. Você continua sendo um mentor, no sentido de fazer uma curadoria natural na vida deles. A educação não termina nunca, vai até o túmulo.

No início do mês, Gil ganhou o apelido de “Avô Tiktoker” depois de aparecer com a neta, Flor Gil, na conta dela no TikTok. A rede chinesa virou sinônimo de cultura zennial ao incentivar dancinhas. A participação foi tímida — sentado, ele realiza com um “bater de asas” enquanto Flor executa uma coreografia da Galinha Pintadinha.

— O TikTok é o mundo dos meninos —define Gil. — Eu fui um apologeta dessas coisas todas. Fiz a saudação desse mundo contemporâneo, dediquei muito da minha reflexão às linguagens transformadoras.

Eu quero entrar na rede

Gil não é adepto das redes sociais, ainda que suas contas no Instagram e Twitter, administradas por sua equipe, contabilizem mais de dois milhões de seguidores cada uma. Mas ele usa WhatsApp “de vez em quando”.

Em 1996, Gil foi um dos primeiros artistas a lançar uma música nova na rede, “Pela internet”, período em que as tecnologias digitais eram vistas com certa inocência e esperança. Mais de 20 anos depois, o amigo Caetano Veloso compôs “Anjos tronchos”, que pinta o Vale do Silício como uma distopia aterrorizante. Gil está ciente do contraste entre as duas músicas e eras. Surpreso, não.

— A internet se tornou um pesadelo como o automóvel se tornou um pesadelo — diz ele. — A tecnologia traz novas possibilidades e novas aflições. Traz modos mais cômodos, mas também retira, inviabiliza, cancela…

“Cancela”? Gil se diz familiarizado com o termo, muito em voga, e que ele define como uma espécie de “censura”, um “banimento parcial ou integral de certos perfis”. Se Chico Buarque já caiu no radar dos canceladores… não poderia acontecer com ele algum dia?

— Não tenho medo disso, não — diz. — Já tenho um espaço garantido na configuração geral das pessoas. São 60 anos de trabalho. Já tenho uma permissão, um crachá para ir e vir. Não faço ideia do que seria um cancelamento que pudesse ser estabelecido (a ele).

Nossa turma é da verdade

Atualmente, uma das atividades preferidas de Gil é frequentar o chá da Academia Brasileira de Letras (ABL), na qual ingressou oficialmente em abril. De lá para cá, participou de eleições e posses de novos integrantes e ministrou palestras na casa. Na ABL, passou a conviver ainda mais próximo de velhos amigos como Zuenir Ventura, Geraldo Carneiro e Antonio Cicero, e criar novos vínculos, como Edmar Bacha, que conheceu agora no ambiente acadêmico. Para Flora, o marido entrou “na hora certa” na ABL.

— Costumo dizer que voltei à escola, uma escola da terceira idade — define o imortal, que ocupa a cadeira 20. — É uma comunidade com vários tipos, padrões de humor, de caráter, de humanidade. A maior parte é mais idosa, como eu. Você encontra pessoas mais austeras e outras mais abertas ao diálogo. Pessoas mais simpáticas e menos simpáticas.

Os acadêmicos, por sua vez, o veem como um colega zeloso com seus compromissos, muito participativo, mas ainda tímido na nova casa. Em resumo, uma grande aquisição.

— A gente pensa em outras personalidades oriundas de movimentos de vanguarda, que não tinham previamente espírito acadêmico, mas que, depois de se candidatar, se entusiasmaram e se tornaram membros assíduos. Nisso, ele lembra (o poeta) Ferreira Gullar — conta o acadêmico Antonio Carlos Secchin.

Andar com fé

A série de hospitalizações em 2016, devido a uma insuficiência renal, reforçou em Gil a crença de que a vida é um aprendizado contínuo. Superados os problemas de saúde, ele volta a seguir a sua máxima: “Conformidade conforme a idade.” Isso se reflete também em uma visão quase zen da situação social, política e cultural do país. Expoente do Tropicalismo, um dos principais movimentos contraculturais brasileiros dos anos 1960, Gil acredita que há, de fato, uma onda conservadora no Brasil e no mundo. Mas também vê o fenômeno como “parcial”:

— Há certos setores da sociedade que encontram mais conforto na retenção, em parar o fluxo, estabelecer controles. Mas esses conservadores estão com um problema sério, porque o conjunto da sociedade está cada vez mais receptivo ao novo, ao inusitado, à dinamização dos direitos. Nós continuamos cada vez mais afeitos ao trânsito, porque quem fica parado é poste.

O agora oitentão deixa um recado às novas gerações:

— Pra frente, que atrás vem gente.

Fonte – O Globo – Por Bolívar Torres