A luta de movimentos sociais negros nos anos 1970 fez das tranças uma exaltação da cultura afro no país, enquanto civilizações na África ainda as usam para demarcar religião, etnia e hierarquia social

 


Apaixonadas por tranças: da esquerda para a direita, a influenciadora Jéssica Gomes, de 25 anos, a minimodelo Gabrielly Nascimento, de 4 anos, e também influencer Jéssica Rezende, de 23 anos Divulgação/Ruan Walker/Divulgação

 

Nagô, fulani, box braids, dreadlocks… Nos mais variados estilos de tranças africanas está a marca das histórias de ancestralidade e resistência que se ressignificaram ao longo do tempo. Se nas civilizações da África elas ainda são usadas para demarcar religião, etnia e hierarquia social, no contexto brasileiro os penteados são tidos como uma das heranças afro que se conecta à autoestima e ao sustento para muitas pessoas negras que sobrevivem do ato de trançar.

Para a modelo e influenciadora Jéssica Rezende, os trançados se tornaram um “ritual sagrado” aos 14 anos. Ela escolhia um estilo e levava para a trancista reproduzir em sua cabeça. Quadradinho por quadradinho, os fios eram entrelaçados com jumbo (cabelo sintético) em uma obra de arte que leva cerca de oito horas para ficar pronta. Entre uma mecha e outra, conta, havia risadas e recuperação de uma autoestima que, por vezes, se perdia. Hoje, aos 23 anos, Jéssica vê nas tranças infinitas versões possíveis de si mesma.

— Comecei a trançar quando fiz a transição capilar. Na época, havia muito mais estigma porque as pessoas achavam que tranças eram sujas, e eu consegui desmitificar isso em casa. No início, elas eram um refúgio para eu ter o meu crespo mais controlado. Agora vejo como liberdade capilar e conexão com os meus antepassados — afirma.

 

A influencer Jéssica Rezende, de 23 anos, usa trança desde os 14 — Foto: Divulgação

 

Fases da vida

 

Antes do tráfico de civilizações africanas para o Brasil, os cabelos ocupavam no imaginário social um alto grau de relevância. De acordo com a socióloga Luane Bento, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), nos povos Iorubás trazidos no final do século XVIII, um dos usos das tranças é entre sacerdotisas de religiões afro para representar os orixás Oxum e Iansã.

 

Trança Sùkú, usada pelas sacerdotisas de Iansã dos povos Iorubás — Foto: J.D. ‘Okhai Ojeikere

 

Entre os Himba, que vivem na Namíbia, os trançados até hoje indicam ritos de passagem, que marcam a infância, adolescência e fase adulta de mulheres e homens. Com a escravidão e quebra dos vínculos entre pessoas negras de mesma etnia, no entanto, essas simbologias foram se perdendo no Brasil, mas ainda resistem como uma memória social e cultural.

— A luta de movimentos sociais negros nos anos 1970 fez das tranças uma exaltação da nossa cultura africana. Na década de 1980, eram organizados desfiles de penteados, onde trancistas e cabeleireiras deram sentidos de afirmação estética aos trançados — explica a pesquisadora.

Luane explica que a informação de que as tranças eram usadas como mapas de fuga para os escravizados não é um fato histórico comprovado. Assim como as sementes colocadas nos penteados, que supostamente serviriam para serem plantadas nos quilombos. De acordo com a socióloga, os grãos nos cabelos eram usados como enfeites em muitas civilizações africanas, assim como búzios e miçangas.

A relação com as tranças também é hereditária. A influencer Jéssica Gomes, de 25 anos, relembra que a mãe trançava seus cachos desde os primeiros anos de vida, assim como a avó penteava a mãe. A herança deu à jovem a habilidade de fazer a técnica nos próprios cabelos, em um processo que dura 12 horas.

— Eu me sentia uma criança maravilhosa e isso permanece. Me tranço como forma de autocuidado e quero que seja assim com as minhas filhas no futuro — diz.

 

A influenciadora Jéssica Gomes, de 25 anos, usa tranças de quando era criança — Foto: Divulgação

 

A cabeleireira Thais Souza, mãe da pequena Gabrielly, de 4 anos, ensina desde cedo para a filha que seu cabelo pode ser lindo de várias formas. As tranças ora coloridas, ora cheia de miçangas na minimodelo, que tem mais de 230 mil seguidores nas redes sociais, inspira famílias a quebrarem o ciclo do preconceito estético.

— Desenvolvi meu instinto de mãe “negrona” e comecei a trançar o cabelo da Gaby para ela se sentir empoderada. Ela inspira outras crianças a amarem seus cabelos cacheados e crespos — relata Thaís.

 

A mini-influenciadora e modelo Gabrielly Nascimento, de 4 anos, usa tranças desde o primeiro ano de vida — Foto: Ruan Walker

 

Para tentar traçar o papel sociocultural das trancistas e trançadeiras, a mestranda da Universidade Federal de Brasília Layla Maryzandra desenvolveu o projeto Tranças no Mapa. Focado no Distrito Federal e em cidades do entorno, a pesquisa localizou 95 profissionais negras, a maioria delas moradoras de periferias, sendo 78,9% em áreas de maior vulnerabilidade. A trancista mais velha da região é Ana Akini, que tem 68 anos de idade.

Segundo a pesquisadora, esse mapeamento traz a possibilidade de dar visibilidade aos poderes públicos para a elaboração de políticas públicas de reconhecimento, proteção e garantia de direitos.

— Por eu ser a primeira pessoa da minha família que tem as tranças como renda, busquei entender na pesquisa os aspectos socioculturais da técnica que é muito comunitária e informal. Reconhecê-las como cultura é o primeiro passo para valorizar esse trabalho e a História — afirma Layla.

 

Fonte de renda

 

Reconhecido pelo Ministério do Trabalho desde 2009, o ofício de trancista se estabeleceu como ferramenta de subsistência e, em muitos casos, principal fonte de renda familiar nos últimos anos. O espaço Esponja Magic, em Madureira, na Zona Norte do Rio, acompanhou o boom da técnica e começou a oferecer, em 2017, cursos especializantes. E a procura é alta, conta a empresária Alessandra Silva, de 40 anos, proprietária do estabelecimento:

— As meninas estão vindo com tudo. Hoje é profissão. Nosso curso é pensado para as tantas mães que estão dentro de casa sem renda alguma, sem saber como vai fazer e como vai ser. Mulheres que estão precisando de um boom na vida. Trança dá dinheiro — enfatiza Alessandra.

Só em 2024, já foram formadas aproximadamente 200 novas trancistas pelo Esponja Magic, com direito a formatura e certificado. O pacote completo inclui oito aulas, distribuídas ao longo de dois meses, e custa entre R$ 700 e R$ 800.

Esllye Vitória, de 22 anos, se formou nas primeiras turmas e é hoje uma das instrutoras no espaço. Filha de cabeleireira, a jovem começou a colocar tranças informalmente aos 14 anos, na escola onde estudava. As clientes eram as próprias colegas, que pagavam de R$ 5 a R$ 10 por cada penteado.

— Dá para ter uma fonte de renda bem bacana. E eu nunca imaginei que isso viraria uma profissão reconhecida — pontua Esllye, que ressalta a importância da qualificação para ter um bom retorno na área. — Trancista é aquela que investe, faz curso e estuda novas técnicas.

Apesar do trabalho árduo — são horas em pé e com os punhos em movimento —, o retorno é promissor: os valores dos procedimentos podem variar de R$ 150 a mais de mil reais, dependendo do estilo, espessura, tamanho e materiais. A crescente busca pelo serviço foi o que levou o casal Gabriel da Veiga, de 31 anos, e Giovana Guimarães, de 29, a criarem o aplicativo Real Braids. Nele, a cliente cadastrada busca pela trancista mais próxima de sua localização, passa as informações necessárias para o penteado e solicita o agendamento. A plataforma tem mais de 1,3 mil profissionais de todo o Brasil.

— Além de ter grande representatividade, o app facilita no controle de clientes, a comodidade e a possibilidade de aumentar a renda mensal das profissionais — diz Gabriel.

 

(Fonte: O Globo)