Foto –  Mariana Raphael

Nem toda violência sexual é explícita. Ao contrário do que se imagina, as formas mais comuns de violência se confundem nas sutilezas. São comportamentos que, a uma pessoa inexperiente, podem parecer um mero deslize ou esquecimento, como o ato de tirar a camisinha sem avisar a parceria.

Esse é o caso de Bianca (nome fictício) e de uma infinidade de mulheres e homens que, em relacionamentos hetero ou homoafetivos, foram expostos a uma relação sexual desprotegida sem seu consentimento.

O termo foi cunhado para descrever o ato sexual em que uma das partes retira o preservativo sem comunicar a parceria em 2017 em um revista acadêmica que discute questões legais associadas ao gênero da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos.

Violação da autonomia

 

A remoção não consensual do preservativo durante a relação sexual é considerada uma violência porque expõe às vítimas a doenças sexualmente transmissíveis e gravidez não-desejada.

Além disso, e principalmente, a prática do stealthing é uma grave violação da autonomia da parceria sobre o seu próprio corpo.

Bianca conta que já passou pela mesma situação em duas ocasiões diferentes com homens distintos. Em ambas situações, os homens desconversaram e afirmaram que não haviam notado que o preservativo havia saído.

“Eu fiquei nervosa, vi que eles estavam mentindo, tive que tomar remédios para me proteger das possíveis consequências, mas não havia entendido que era uma forma de estupro. Só fui entender dois anos depois da segunda experiência, assistindo uma série”, diz Bianca.

 

A série May I Destroy you, da HBO, apresenta, por meio das experiências dos personagens, questões nada simples envolvendo sexo, consentimento e abuso.

Agressor pode ser punido

 

Em outubro deste ano, o governador da Califórnia Gavin Newsom sancionou uma lei que proíbe remover a camisinha sem consentimento durante o sexo, e que torna este gesto um delito civil de agressão sexual. É a primeira lei deste tipo nos Estados Unidos.

No Brasil, a discussão ainda engatinha. De acordo com a defensora pública do Estado de São Paulo Mariana Bianco, não há no Código Penal um crime que tipifique especificamente esse tipo de violência.

“Existe, sim, uma lacuna na legislação brasileira para esse fato. Não existe um crime que trate especificamente dessa ação fática”, afirma Bianco.

 

Na ausência de um dispositivo certeiro que enquadre a violência, alguns especialistas afirmam que seria possível enquadrar o crime como fraude.

De acordo com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, o ato de retirar a camisinha durante o sexo, sem o consentimento da outra pessoa, pode caracterizar o crime de violação sexual mediante fraude e o agressor pode ser preso sob pena de 2 a 6 anos, conforme descrito no artigo 215 do Código Penal.

O ato pune a conduta de ter relação íntima com alguém, por meio de engano ou ato que dificulte a manifestação de vontade da vítima.

Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima:
(Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

Apesar de ser possível enquadrar o ato nesse dispositivo, não há garantias de que o judiciário entenderá da mesma forma.

“O artigo 215 retrata uma fraude que ocorre desde o primeiro momento. O stealthing não se encaixa perfeitamente nesse dispositivo porque a vítima concordou com a relação sexual. Ou seja, não é uma fraude que existe desde o início. O que ela não consentiu foi com a retirada do preservativo, e isso também é muito mais difícil de provar”, diz Bianco.

 

Segundo Bianco, a ausência de um artigo penal que enquadre essa violência em sua totalidade poderia levar a absolvição do agressor.

A falta de consentimento em qualquer momento da relação sexual, contudo, pode ser caracterizada como crime de estupro.

“Cabe ressaltar que mesmo que a o início da relação tenha sido consentido, a partir do momento em que há a falta de consentimento a conduta pode ser caracterizada como crime de estupro”, explica o site oficial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.

 

Mas chances de conseguir, de fato, punir o agressor com base no crime de estupro são igualmente baixas, ainda mais se ele for o marido ou namorado. Na maioria dos casos, provar a violência perante o judiciário se torna um duelo entre a palavra da mulher e do agressor.

Denunciar é importante

 

Embora exista a chance do agressor sair impune, Bianco reforça que é importante que as mulheres denunciem esse tipo de agressão.

“As denúncias levam o judiciário e a sociedade a entender que isso é uma prática violenta e que merece ser coibida. Eu acho que a longo prazo isso leva a uma mudança para entender que isso é errado, precisa ser combatido e punido, consequentemente”, afirma a defensora pública.

 

Outra ação indireta do aumento das denúncias é a dissipação da informação.

“Eu li registros de mulheres que se sentiram extremamente violentadas em decorrência dessa situação [stealthing], mas existia uma dificuldade por parte delas de entender que havia acontecido, de fato, uma violência sexual”

“Por isso, a denúncia fortalece a vítima, psicologicamente, porque ela entende que sofreu uma violência e que ela merece justiça, o que acaba incentiva e alertando outras pessoas”, diz Bianco.

Fonte – Globo.com