Texto: Ana Franco
Para as mais de 2.800 comunidades quilombolas resistentes em território brasileiro, a proximidade com a votação da ADI 3239, Ação Direta de Inconstitucionalidade que questiona a regulamentação e a titulação das terras dos quilombos garantida pelo decreto 4.887/2003, e que será julgada pelo Supremo Tribunal Federal em menos de 24h, é a proximidade real com a morte.
Fátima Barros, líder do Quilombo Ilha São Vicente, localizado na região do Bico do Papagaio no município de Araguatins-TO, carrega o olhar insone de quem há mais de 30 anos vela pela vida do seu povo, enfrentando uma batalha secular em defesa do território constantemente ameaçado pela política de Estado, pelas investidas de grandes empreendimentos capitais e do agronegócio, e pelo judiciário. O cerne da luta de Fátima Barros é, sobretudo, o reconhecimento legal do direito às terras onde hoje vivem e produzem 49 famílias. Território este que, de 1888 até aqui, foi ocupado permanentemente por 6 gerações de sobreviventes e remanescentes da escravidão do povo africano no Brasil. Território sem o qual o Quilombo não existe, pois é a própria identidade, história e elemento vital do seu povo.
Logo mais, a partir das 14h desta quarta-feira (18), o futuro do Quilombo Ilha São Vicente e de todas as demais comunidades quilombolas do país estará, mais uma vez, entre as pautas que serão julgadas pelo STF. Caso o decreto 4.887/2003 seja suprimido através da declaração de inconstitucionalidade (ADI 3239), todos os títulos de quilombos do país poderão ser anulados, assim como não será possível a concessão de novas titulações às mais de 6 mil comunidades que aguardam pela posse legal de seus territórios.
“O território acima de tudo não pertence aos quilombolas, são os quilombolas que pertencem ao território. Nós somos parte singular daqueles espaços, somos guardiões dos seus biomas, somos grandes responsáveis pelo pouco que resta à este país em preservação ambiental. Se a gente perde esse decreto, nós vamos ficar realmente à mercê dos inimigos que tem nos violentado e perseguido secularmente, que tem assassinado o nosso povo.”.
A voz já rouca mas ainda incisiva de Fátima Barros em defesa do seu Quilombo é um grito de socorro aos ouvidos surdos do mundo. A necessidade de que o STF reconheça a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003, mantendo assegurado o processo de regularização fundiária das comunidades quilombolas, é uma questão de garantia de vida para os povos tradicionais.
“Em 2016 nós fechamos o ano com 69 assassinatos de pessoas que lutam por terra. Esse ano, até o mês de setembro, já foram contabilizados mais de 70 assassinatos de pessoas que lutam por terra. Toda essa violência, sustentada pelo aparato jurídico e pela ambição de quem realmente deveria ter compromisso e responsabilidade com as comunidades tradicionais, é que faz com que a Comunidade Quilombola Ilha São Vicente entenda a necessidade de fazer a luta e a importância de dar visibilidade à ela, porque a sociedade não tem a menor noção do que nós passamos dentro do nosso território. Nós estamos sendo assassinados na base, nós estamos sendo violentados na nossa casa. Esse país é nosso, nós somos desse país, nós somos parte desse país. É lamentável a gente ter que chegar em 2017 e ainda ter que fazer depoimentos como este.”. (Fátima Barros, líder quilombola)
Não há dúvida de que se a ADI 3239 for aprovada hoje no Supremo Tribunal Federal, as desapropriações e despejos carregados de todo tipo de violência, a exemplo do que aconteceu em 2010 no Quilombo Ilha São Vicente, não demorarão a acontecer. Assim como também não há dúvida de que os Quilombos resistirão com a última defesa que lhes resta, a própria vida. Desta forma, está bem escurecido, que a Ação de Inconstitucionalidade 3239, assim como as tantas outras ameaças legais no campo jurídico, é mais uma investida a favor da dizimação legalizada da população negra no Brasil.